José Mário Leite

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CIÊNCIA, CULTURA E DEMAGOGIA NA ARTE DE BEM GOVERNAR

Na mesma semana em que a Maria Mota fez publicar no Jornal Expresso um texto proclamando as virtudes da aplicação do método científico nas decisões políticas, a propósito da eleição de Claudia Sheinbaum Pardo para a Presidência do México, Ernesto Rodrigues edita mais um livro, com um título suges- tivo “o Bom Governo” e Rui Tavares desafia os partidos de esquerda para a constituição de uma plataforma política de combate à deriva direitista dos tempos correntes. Para além da coincidência temporal e da temática comum há uma referência espacial associada, nomeadamente a cercania da Estação Agronómica de Oeiras. É aí que tem morada o escritor nordestino e, igualmente, estão as instalações do antigo Instituto Gulbenkian de Ciência onde Maria Mota desenvolveu o seu primeiro pós-doutoramento em Portugal, na primeira década deste século e de onde veio Francisco Paupério, o candidato do Livre às eleições europeias. Rui Tavares é um político de verbo fácil, simpático, com um discurso bem fundamentado e com grande dose de razoabilidade, pouco habitual na área política onde se insere. Apesar de ter sido eurodeputado integrado no Bloco, de que, programaticamente, pouco se diferencia, fundou um partido, o Livre, com o objetivo primeiro de ser diferente, original e trazer para a política novas metodologias apregoadas como mais democráticas, mais acessíveis ao comum dos cidadãos, em concreto dos militantes e simpa- tizantes, afastando-o da tradicional estrutura partidária conhecida como o “aparelho”. Promoveu as diretas como método de escolha dos lugares de representação partidária, nomeadamente na elaboração das disputadas e desejadas listas de candidatos, porque, segundo o próprio, essa é a escolha correta… enquanto produzir os resultados esperados pela direção partidária! Porque o acerto no processo que levou Joacine a São Bento, foi assumido como um erro pela liderança do Livre, pouco tempo depois de eleita porque esta decidiu recusar ser correia de transmissão da Mesa do partido… razão invocada, precisamente, para a sua escolha. Para as europeias, Rui Tavares e companhia, quiseram impugnar a escolha de Francisco Paupério porque, pasme-se, teve um número “anormalmente” elevado de votos, nas diretas. Tal foi o inconcebível desconforto por este resultado, dentro das regras estabelecidas, que o líder partidário só apareceu em campanha quando as sondagens davam conta de um possível resultado histórico da formação. Resultado assinalável pois foi o único partido de esquerda a melhorar os resultados de 2019 em que, curiosamente, o cabeça de lista era o próprio Rui, que, ausente na rua, foi lesto a chamar a si tal feito, na noite eleitoral. E, enquanto Paupério regressa à bancada laboratorial de Oeiras, Tavares usa o seu trabalho para se arrogar em putativo federador da esquerda. Maria Mota, esperando que a formação científica da nova presidente mexicana a capacite para melhor formular as ações políticas para que sejam racionais e eficazes, para benefício das populações, vai alertando que tal não é, só por si, sinónimo de sucesso, lembrando o presidente norte-americano Herbert Hoover que apesar do seu desempenho, na observância desses pressupostos, não conseguiu a reeleição, pela sua inabilidade na comunicação. Mais radical parece ser Ernesto Rodrigues que, a avaliar pela sinopse disponível, “garante” que o bom governo precisa de cem mi- nistros a trabalhar à noite com cem funcionários em cada gabinete ministerial… ou o seu sucedâneo que, citando, Goethe, como sendo o melhor de todos, será “O que nos ensina a governar- -nos a nós próprios”.

CAMÕES EM CRUZEIRO LITERÁRIO

No passado dia 7 de junho o nordestino Ernesto Rodrigues apresentou, na Feira do Livro de Lisboa o seu livro mais recente “Cruzeiro Literário” editado pelo açoriano Vamberto Freitas, nas insulares edições Letras Lavadas. À novela, que deu título à obra, o escritor mirandelense acrescentou cinco contos. O leitor é convidado a percorrer os bastidores da produção e investigação literária desmascarando as recorrentes e recíprocas (quando não auto) citações que enformam e sustentam alguns curricula e promovem quem, para, precisamente, para promover, se promove. Lembra a cantiga do Sérgio Godinho “famoso, por ser famoso”. Depois de passagem breve por cinema “série B” encontramo-nos sentados à mesa do freixenista Guerra Junqueiro ouvindo-o esgrimir literários argumentos com cura minhoto escandalizado com as prosas dos contemporâneos João de Deus (e não São João de Deus), e, principalmente do autor das Farpas, Ramalho Ortigão. Antes, porém, de franquear a entrada em singular Cruzeiro, já referido e que igualmente abordarei, de seguida, Ernesto transporta-nos para a quinhentista Lisboa de há cinco séculos atrás, dando-nos por companhia Camões, a celebrar o seu quingentésimo aniversário. O Poeta acaba de chegar do seu epopeico périplo pelo oriente de onde trouxe, débil saúde e longo poema épico arrumado em dez cantos e cento e oitenta e seis folhas. A Lisboa que o recebia era bem diversa da que, fervilhando de vida, de ostentação, riqueza, mordomias e atividade cultural, deixara, duas décadas atrás. A capital do reino, fustigada e dizimada pela peste, definhava, em recessão, com a moeda em desvalorizações contínuas e, dirigida por fraco rei que a forte gente enfraquecia, preparava-se para dar cumprimento aos pueris sonhos do monarca, empenhando o que tinha e não tinha para organizar a desgraçada aventura em África a caminho da perdição nas escaldantes areias de Alcácer Quibir. Doente, frágil, cansado, Luís Vaz vivia já e só, para a sua obra que, cumpridos os requisitos mínimos, começava a ser impressa nas oficinas de António Gonçalves. “Rolava a máquina deste pequeno mundo, e não sabia se tocaria outros mundos. Morresse ele à míngua, doravante desapossados dos decassílabos, ganhassem estes a fortuna dos séculos.” De Paris chegavam notícias da chacina dos luteranos que, aos milhares, atapetavam o Sena enquanto no Palácio dos Estaus o Santo Ofício reforçava o seu poder, controlando e penalizando qualquer heresia ou desvio, por bem pequeno que fosse, ao catecismo instituído e imposto. Assim no-lo relata o autor “O clero vingava, pois – e vingava-se. Há vinte anos, só os alfaiates e ourives tinham mais porta aberta do que os ministros de Deus.” Felizmente o poema obteve o necessário imprimatur, e depois de termos celebrado em 1972 (andá- vamos nós por Bragança) os quatro séculos da sua edição, preparamos os quinhentos anos do nascimento do épico poeta, sob a orientação da camoniana Rita Marnoto, com quem, com orgulho e honra, partilho um lugar nos órgãos sociais do PEN. A obra encerra com a novela policial “Cruzeiro Literário”, uma sátira ao mundo editorial de que destaco um trecho que reconhecendo caracterizar o ecossistema literário, assenta que nem uma luva aos bastidores políticos locais que tive oportunidade de conhecer num passado próximo: “Estes foram sempre uma tribo convivial, falando mal de todos, menos de quem estava ao lado (enquanto não virava costas), e isso soltava a tensão em que vivíamos, com ajuda de um cigarro e décimo copo.”

A BOMBORDO, MARINHEIRO!

Eram inúmeras as razões para, em 1975, ainda antes de se adentrar por um verão escaldante, me filiar no Partido Socialista. A revolução estava em marcha, pela faixa esquerda da via, em direção ao socialismo; por ela caminhavam muitos dos meus amigos e companheiros de estudo e de vida (ou que era, naquela altura, quase o mesmo); o meu livro, Cravo na Boca, acabado de sair, era representado, pelas terras do nordeste por um grupo local da juventude socialista; todo o país avermelhava; no meu regresso a Bragança para cumprir a malfadada “obrigação” do inefável Serviço Cívico vi-me instalado no “meu velho” S. João de Brito lado a lado com cabeludos e barbudos militares que, chefiados pelo Fabião vinham alfabetizar (politizar/socializar) as rudes gentes nordestinas; barbudo e cabeludo, o Ernesto, vindo da libertária França, já a atapetar a vinda de Mitterrand para o Eliseu, garantia-me que o futuro lusitano era vermelho; cabeludos e revolucionários, os irmãos Vitorino, chegados igualmente da gaulesa pátria confirmavam a irreversibilidade da via socialista, para o futuro; por fim o mesmo S. João de Brito, que fora a minha casa, na juventude recente, era agora albergue de magalas revolucionários e de alguns refugiados políticos, um deles, chileno, não se cansava de me garantir que tal como na sua América natal a revolução portuguesa estava em perigo pois o braço longo de Pinochet estendia-se até este lado do Atlântico e a mais perigosa das suas ações escondia-se nos lugares menos visíveis pois a contra-revolução começava exatamente no PPD do fascista Sá Carneiro muito “convenientemente” substituído, provisoriamente (sublinhava) por Emídio Guerreiro. Até o Chave d’Ouro se movia para a esquerda. No mar agitado da política, a nau adornava à esquerda e quem quer que se encostasse ao outro lado era um sabotador do brilhante futuro comum que se abria para lá das alterosas vagas. No chão do barco havia uma larga faixa vermelha pintada para marcar bem o espaço a ocupar por quem estava ao lado da revolução e quem, pelo contrário, conspirava para a sabotar. E a verdade é que no extremo do estibordo havia gente pouco recomendável que fazia bombas e pegava em armas para tentar restabelecer o odioso regime da velha senhora. Que não era, obviamente, aceitável, fosse a que título fosse. Porém, mantendo-me ao centro, não podia alinhar na “óbvia” tendência da turba pois os riscos de naufrágio eram demasiados. Sem abandonar os princípios democráticos, já enraizados, mas também sem me deixar levar por quimeras demasiado arrojadas, revi-me num discurso sereno, racional e, à data, corajoso de Francisco Sá Carneiro e, sem me afastar demasiado do vermelho… alaranjei-me e por lá fiquei, sempre na ala esquerda, por mais de quatro décadas. Hoje que o fundador do PPD está pendurado num retrato em todas as sedes do partido que disputa mais bandeiras à direita do que as combate; que daquele lado surge, impantes, forças demagógicas e perigosas, que as cores na linha do horizonte já pouco têm de vermelho ou rosa, antes escurecem, ameaçadoramente, é tempo de, mesmo continuando no meio da embarcação, caminhar um pouco para o outro lado para que a nave não mergulhe pelo outro lado. A Lurdes que revê e opina sobre todos os meus textos, critica esta assunção de um suposto ziguezaguear. Para a tranquilizar (e a todos quantos pensem da mesma forma) pedi-lhe que em vez de me visualizara a caminhar de um lado para o outro, me imagine suspenso e imóvel, sobre o navio. Quando, em 1975 adornou à esquerda, naturalmente se aproximou de mim (e não eu dela) a amurada da direita. Agora que a turba se atropela na direção oposta, nada fazendo, mantendo-me exatamente na mesma posição onde sempre tenha estado, acabo por me ver deslocado para bombordo (o bordo bom, segundo a tradição dos navegadores portugueses).

A UNÇÃO PARTIDÁRIA

Não há qualquer racionalidade na admissão , sem contestação nem um questionamento sobre a sua razão de ser do que parece ser um dogma de gestão que nenhuma escola, teoria ou pensamento com fundamento reconhecido segundo o qual e de acordo com a opção de quem julga ou detém o poder de julgar, a competência está umbilicalmente ligada à cor partidária do seu portador. Se o Governo é socialista, só os portadores do cartão rosa são capazes de executar com aptidão as funções diretivas das inúmeras comissões executivas das instituições públicas ou sob a tutela governamental. Sê-lo-ão, na esmagadora maioria dos casos, desde o início da legislatura até ao seu final. Porém, se por qualquer percalço, incidente ou infortúnio, o governo cair antes do tempo regular e, por acaso ou qualquer outro motivo, fortuito ou intencional, mesmo que por curta margem, for o PSD a chegar a S. Bento, automaticamente todas aquelas pessoas ficam incompetentes, imediata e inexoravelmente. Caberá na cabeça de alguém que o uso de um cartão, em determinada altura, conceda, por obra e graça de São Thomas More (padroeiro dos políticos e cuja memória se celebrou no dia 19 de maio) aos correligionários dos detentores dos centros de decisão, aptidões encobertas até então por subtração a quem, até então, as tinha, por intermediação, igualmente miraculosa da detenção de um cartão de outra cor. Não está em causa a legitimidade de definição das políticas orientadoras da governação nacional por quem foi, para tal, incumbido pela expressão popular nas eleições legislativas. Mesmo que, como várias vezes aconteceu e, infelizmente acontecerá no futuro, as opções dos governantes não sejam as mais adequadas para atingir o benefício geral que todos juram prosseguir. Claro que é natural haver mudança de atuação política sempre que muda a direção partidária da governação. O que não é fácil de entender é a necessidade de ter uma determinada filiação política para exercer com a necessária competência um cargo técnico dirigente. Desde logo porque, no governo de Passos Coelho, com uma composição política idêntica à do atual, foi criada a Cresap precisamente para garantir que a admissão de dirigentes para os cargos superiores da administração pública era feita com base na qualificação e aptidão para o lugar e não por qualquer lealdade partidária. Das duas, uma: ou a Cresap está a desempenhar adequadamente a função para a qual foi criada e então não é aceitável que a mudança de governo implique uma tal dança de cadeiras, porque um quadro competente tem obrigação de executar a contento as opções governamentais ou afinal havia outros candidatos melhor preparados (a proximidade política ao ocupante de S. Bento não passará de uma estranha coincidência) e então a Cresap não cumpre a sua missão e a única atitude consequente é denunciá-la e acabar com ela. Uma última reflexão. Quando questionado sobre a afã demissionária do seu governo, Luís Montenegro, em vez de justificar com as razões substanciais (ou falta delas) para a catadupa de exonerações declarou que as achava normais. Desafiou os jornalistas a investigarem no passado e, pelos vistos, existiram efetivamente chefes de governo mais “exoneradores” do que ele. Porém qualquer um deles exerceu o seu consulado precisamente antes da Cresap (que foi, recordo, criada para por fim a esse despautério). Acresce ainda que se a ambição governativa de Montenegro se conforma em não fazer pior do que fizeram Santana e Sócrates diz muito (ou muito pouco) da ambição do atual inquilino de S Bento.

A LAMA E O PÂNTANO

Não se drena um pântano jogando lama para dentro das águas. Obviamente que o nível da água podre subirá e, transbordando, diminuirá o seu volume no recipiente pantanoso… mas, ao ser substituída por lodo não acrescenta vitalidade e renovação, antes pelo contrário, continuará a alimentar a fauna e flora que habita as regiões de solo apodrecido. Provavelmente haverá, inclusive, um reforço dos habitantes, animais e vegetais do atoleiro. Por isso, quando o cheiro a apodrecimento começar a incomodar os habitantes das redondezas a solução não passa pelo acréscimo de material putrefacto, mas pela sua substituição por rochas, terra boa, plantas sadias e extração dos líquidos fedorentos. De pouco adiantará, inclusive, fazer um muro a meio, para separar zonas se, na zona a que temos acesso e que confina com terra arável, depositarmos algo muito parecido ao que há do outro lado e, para piorar, garantindo a estanqueidade da parede… fazemos buracos a meia altura, distantes da vista geral que… para grande espanto, o seu bloqueio vem do lado errado. No Expresso da Meia-Noite o inefável e arrogante líder parlamentar do PSD, Hugo Soares veio “revelar” que terá negociado com o Chega não só a eleição para a presidência da assembleia da república, como ainda para a redução do IRS e para a abolição das portagens! Se isto é um cordão sanitário, se este é o entendimento de “não, é não”, vou ali e já venho. Para acrescer à “refundação” apregoada durante a campanha eleitoral e ao início do novo ciclo de transparência e cumprimento de todas as promessas eleitorais… começam a surgir no horizonte sinais deveras preocupantes. O superavit, reconhecido e certificado pelo ministério das finanças na véspera da “enorme” descida de impostos convertia-se em déficit num ápice, num passe de magia, num truque de ilusionismo! Que, extraordinariamente, não impede a demagógica e eleitoralista medida de abaixamento do IRS mas começa a ser um obstáculo à concretização prática da miríade de benesses tão claramente propaladas em campanha eleitoral e agora, tão maquiavelicamente revisitadas na altura das negociações, como parece estar a acontecer com os subsídios de risco das forças de segurança, a recuperação do tempo dos professores e a valorização das carreiras públicas dos enfermeiros, médicos e oficiais de justiça! Veremos. Porém do que já não há dúvida, diga o primeiro ministro o que quiser e entender é a grande ânsia de afastar, sem apelo nem agravo, sem contemplação nem respeito e consideração (que deve presidir, sempre, ao exercício do poder) quadros competentes, pessoas dedicadas e honestas, gestores e técnicos, antes de terminarem as comissões de serviço para que foram investidos legal e legitimamente. Instituições com notórias dificuldades não melhoram, por qualquer passe de magia, só por verem substituídas as suas lideranças. Dirá o bom senso que, substituições apressadas e sem o devido tempo de transição (se e quando justificável) irão sofrer e ninguém garante quanto tempo levará a sarar as feridas abertas com estas operações “de emergência”. O próprio Governo já se terá apercebido da “asneira” em afastar Fernando Araújo ao anunciar publicamente que a melhor alternativa ao projeto que o Diretor Executivo do SNS personalizava era… pasme-se… o projeto a elaborar pelo mesmo para ser executado por outrem! Obviamente que, para salvar a face, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa terá de apresentar, no imediato, resultados claramente positivos para justificar a inqualificável exoneração de Ana Jorge com caráter de inusitada urgência!

A FESTA, PÁ!

Foi bonita! No centro geométrico do mundo, na Praça da Sé, com alguma da “gente de bem” e toda a outra gente, no meio da vida de então, entre o Flórida, O Chave d’Ouro e o Cruzeiro, entre a vetusta Sé, a novíssima discoteca e o austero Banco de Portugal, equidistante do Seminário, do S. João de Brito, do Castelo, do Liceu, da preciosa Estação da CP e da atraente Florestal, e, dizia-o a televisão, por todo o país, na madrugada do dia inteiro e limpo, acordando o povo da longa e obscura noite fascista, chegou, a Democracia, vestida com as brilhantes cores da liberdade, para todos, sem quaisquer limitações ou exclusões. E, porque assim foi, hoje, um grupo de cidadãos “de bem” podem, livremente, manifestar ou seu saudosismo pelo tempo em que essa prorrogativa não os incomodaria porque era privilégio do grupo limitado onde se entregam. Mais de sessenta autores, agrupados à volta da associação “Farol”, coordenados por Paulo Jorge Teixeira e Rodrigo Pereira Coutinho, escreveram textos que, sob o título “Abril pelas Direitas”, queixando-se de serem censurados de forma mais opressiva do que a PIDE, por um novo regime totalitário, segundo regras de um jogo para as quais não foram consultados, pretendem manifestar o seu pensamento fora de linhas vermelhas e cercas sanitárias. Se as regras, tendo o sinal oposto, fossem idênticas às do tempo que saudosamente recordam só em silêncio poderiam “manifestar” o seu pensamento. E, mesmo assim, desde que um pidezeco qualquer, ou um abjeto bufo não descortinasse nos gestos e atitudes, indícios de um pensamento “perigoso” e “anti-patriótico”. Além de que, como tendo sido exaustivamente demonstrado, as regras que nos regem contam com a opinião de todos… desde que, em número suficiente para fazerem eleger quem as represente. Alertam ainda para a “ameaça” que paira sobre o português, causada pela “importação de turbas de culturas distantes”. Só pode causar espanto tais dislates vindos da casta que, há meio século atrás reclamava um estado único e uma única nacionalidade para um país unido e uniforme… do Minho a Timor! Com o regime de então a fomentar a expedição, para o continente africano, de turbas de colonos e de lá importar mão-de- -obra barata para alimentar a construção civil dos dormitórios à volta das grandes cidades da “metrópole”. Queixam-se, genérica e generalizadamente os autores de verem ideias e ideais a serem “impostos” por quantos reclamavam contra a imposição que existia no tempo da outra senhora. Afinal os “sagrados” conceitos de pátria e família não têm o devido respeito e veneração que, reclamam, lhes são devidos. E que a opinião pública está colonizada por ideias “adversas” à necessária bondade social que, garantem, é a mais adequada à nação. É provável (e ainda bem) que os seus ideais, ao contrário do que acontecia durante o regime salazarista, estejam secundarizados no seio dos portugueses. Havendo ideologias diferentes e, em vários aspetos antagónicas, não é possível que ambas tenham prevalência sobre a outra. Apenas uma poderá enquadrar a sociedade como um todo. A diferença é que agora (e tal não era possível, antigamente) a primazia é dada aquela que obtiver o apoio maioritário dos interessados e ainda, o que não é de somenos, às minorias não é sonegado o direito de se pronunciar nem de poder influenciar os restantes com a intenção clara e assumida de virar o jogo a seu favor. Foi bonita a festa, pá? Foi. Pena que alguns cravos tenham murchado e que algumas ervas daninhas secas tenham reverdecido.

A COLHER DE SANTA MARTA

No Museu Municipal do Crato, há uma imagem de Santa Marta que recebe a atenção de todos os visitantes porque tem na mão direita uma colher de prata, destoando totalmente do resto da imagem e, inclusive, de todo o espólio ali guardado e exposto. Questionado sobre o anacronismo, o técnico superior do município e principal responsável pela instalação e manutenção do espaço museológico, confirmou a “desconformidade” justificando-a com o facto de a estatueta ter sido doada ao Museu, com o referido adereço e não ver razão fundada para lho retirar. “A colher justifica-se pelo facto de Santa Marta ser cozinheira!” Acrescentou ainda que tal facto constitui um motivo de interesse adicional. “É normal, ao saírem, os visitantes perguntarem por que razão há uma imagem medieval com uma colher de prata na mão” o que aumenta a curiosidade do espaço. Surpreendido por qualquer uma das justificações, confesso, resolvi aproveitar tal facto para, com o título, chamar a atenção do leitor, para este texto que, obviamente, não pretende ficar por esta estranha ocorrência, mas ir um pouco mais além, como a seguir, farei. Guiados pelo credenciado especialista em história de arte, Jorge Rodrigues, técnico superior da Fundação Gulbenkian, aposentado e antes de rumar ao extraordinário Mosteiro de Santa Maria da Flor da Rosa (sede do priorado da Ordem do Hospital, e mais tarde de Malta), estendemos a visita à Igreja Matriz da vila alentejana. Entre várias curiosidades e motivos de interesse, a grande novidade aparece no telhado do templo com o remate dos vários pináculos com acrotérios devidamente decorados com figuras de anjos e santos. O mentor de tal “novidade” renascentista terá sido D. Luís de Portugal, Duque de Beja, grande mecenas da vila onde estava sedeada a Ordem de que era prior, por decisão real do seu irmão D. João III. “Em Portugal só existem num outro lugar: Torre de Moncorvo!” A pergunta era óbvia: “Porquê Moncorvo? Terá algo a ver com o facto de o culto e rico irmão do rei ter casado, nesta vila do nordeste, com Violante Gomes, a Formosa Pelicana?”. O historiador não soube responder embora tivesse, de imediato, aceitado a tese como boa e a justificar mais investigação. Em prol desta teoria surgem, nos estremos das goteiras do telhado e igualmente patrocinadas por D. Luís, Prior do Crato, exuberantes e assustadoras gárgulas, em tudo idênticas às que ornamentam os topos do telhado da Basílica de Moncorvo. Tendo em vista o poder económico do Duque, uma das figuras de proa do me- cenato artístico renascen- tista, sobretudo em obras de pendor religioso, tais factos podem contrariar teses sobre a promoção e financiamento da mo- numental Igreja de Nossa Senhora da Assunção, do sul do nordeste trans- montano, atribuída aos ricos cristãos-novos desta localidade, dado que, ao contrário da do Crato, esta foi planeada e começada a erguer durante a vida do ilustre fidalgo. Moncorvo, cuja afirmação contem- porânea passa muito pela exploração da sua histó- ria e cultura, muito teria a ganhar com o aprofundamento desta ligação histórica!

LA DOLCE VITA

Quem, em Parma, dos meus encantos, caminhe da Piazza Garibaldi em direção à Chiesa de San Giovani Evangelista, não pode deixar de tomar caminho pelo Borgo XX de Março, para alcançar o magnífico Battistero di Parma, na Piazza Duomo. É uma deslumbrante torre octogonal, em mármore cor de rosa de Verona “forrado” por um elevadíssimo número de esculturas em baixo relevo, ocupando toda a superfície externa, guardando no seu interior um considerável conjunto de pinturas, em fresco, alusivas à vida de Cristo. Regressando pelo mesmo caminho, em vez de voltar ao largo onde os parmagianos homenageiam o lendário herói revolucionário italiano, é recomendável que se atravesse a Strada della Reppublica, seguindo em frente, para o Borgo Giacomo Tommasini, uma rua estreita, pedonal com muitas lojas de moda no rés-do-chão dos edifícios de pequena altura, com uma cércea constante e alinhada. No topo destes, vários cabos de aço, en- trecruzados, sustentam vários espelhos gigantes onde os transeuntes apa- recem refletidos, de cabe- ça para baixo. As minha netas divertem-se a fazer caretas e movimentos que, divertidos em terra, ficam mais estranhos e cómicos quando vistos nas nuvens. Fiz esse trajeto no dia a seguir às eleições legislativas e a minha figura, sisuda, caindo do céu, de pernas para o ar, saltando de espelho em espelho, assumia um especial significado simbólico naquele 11 de março de tristes memórias, desde a abortada tentativa de golpe, em Lisboa em 1975 até ao horrendo atentado em 2004, na estação de caminho de ferro de Atocha, em Madrid, vinte e nove anos depois. O céu cinzento, ocultan- do o astro-rei, adensava o ambiente e a caminhada ensimesmada e absorta desenvolveu-se, mecani- camente, em direção ao rio Parma (afluente do imponente Pó) que se dis- tendia, preguiçosamente, num leito demasiado largo para o pequeno caudal de então. Pouco movimento nas ruas com a maioria das lojas fechadas, no perío- do da manhã, acentuava a melancolia das notícias chegadas, de Lisboa, na véspera. Na cabeça martelava uma canção com mais de meio-século, ouvida em segredo, a horas esconsas que, nessa altura, me enchiam a alma de fé e confiança mas que, agora, me lembram apenas que, nesta vida, sobretudo nos tempos conturbados que vivemos, nada pode ser dado como definitivamente adquirido. A voz do Adriano chegava com cristalina singeleza: “Per- gunto ao vento que passa, notícias do meu país…” Os passos, um atrás do outro, depois de passar pela Piazzale della Rosa, seguindo pelo Borgo Feli- no, retomando a Viale Solferino, levam-me, quem diria, à Piazza 25 de Aprile, dia de la liberation. Há sempre uma remissão para a juventude, em Bragança, na mítica Praça da Sé, ao Flórida e ao Chave D’Ouro, sempre que por aqui passo. Desta vez, por feliz coincidência, nas suas imediações, do alinhamento cinzento e monocromático das caixas de correio de um condomínio austero e tradicional, so- bressai uma mensagem, numa delas, em letras gordas e vermelhas (nenhuma outra cor seria mais apropriada) que chama a atenção de quem passa: “NO PUBLICITÀ. SOLO LETTERE D’AMORE. GRAZIE”. O regresso a casa da minha filha fez-se com um sorriso nos lábios e até o sol resolveu espreitar por entre as nuvens cinzentas. Apesar da angústia, uma onda conforto aconchegou-me a alma: a Esperança nunca morre, façam eles o que fizerem!

A LIBERDADE À JANELA

Escrevo este texto sábado, dia 9 de março de 2024, vésperas de eleições legislativas e, portanto, ignorando qual será o resultado do escrutínio. Não tenho nenhuma bola de cristal nem a capacidade de análise e previsão dos variados e eloquentes comentadores políticos da nossa praça e, como tal, não faço ideia do quadro político que vai preencher a próxima legislatura. Sei, porém, que, parafraseando La Palisse, teremos, em 11 de março, o cenário determinado pela expressão livre de todos os elei- tores que, na véspera, decidiram dirigir-se às assembleias de voto. Os entendidos adivinham um período conturbado, de instabilidade política e governativa, fruto de uma votação mais focada no passado e no voto de protesto do que numa vontade de ter uma governação tranquila e virada para o futuro. Será o que os portugueses, no seu todo, quiserem que seja porque, contrariamente ao que acontecia há meio século atrás, todos os votos são bons, sejam quais forem as consequências. É essa a maior conquista da Liberdade que, precisamente, há cinquenta anos, espreitava já à janela. Em meados de março de 1974 chegavam a Bragança, ecos de uma revolta que, a partir das Caldas, vinha dar ânimo aos que, no Liceu, no Mensageiro e no Chave D’Ouro ansiavam e, a seu jeito, davam o seu contributo para que, um mês mais tarde, a Praça da Sé se enchesse de gente, sobretudo jovens, empunhando bandeiras e cartazes rudimentares, dessem as boas vindas à Liberdade e Democracia, em todo o seu esplendor e brilho. Apesar de falhado, o Levantamento das Caldas, sobretudo por ter nascido num dos pilares em que a ditadura se sustentava, comentado à boca pequena mas, profusa e entusiasticamente, sinalizou que a abertura por onde espreitávamos para vislumbrar o mundo novo por que ansiávamos, melhor, mais equitativo, solidário e, sobretudo, pacífico era mais do que uma janela… era, afi- nal, o postigo da porta que estava já a ser des- trancada. Valia a pena continuar a insistir nas metáforas políticas do Mensageiro, procurar livros “de culinária” na Mário Péricles, pintar de tinta vermelha as escadas do Liceu, conspirar no Chave D’Ouro para fazer eleger a última Academia, de forma tão democrática quanto possível, mesmo que a Censura continuasse a truncar os textos e a cercear as ideias, os livros dos autores proibidos escasseassem, as mensagens espichadas no granito da entrada liceal e nos vidros da porta de entrada, não vissem a luz do dia tendo sido diligentemente apagadas durante a noite… afinal, contra tudo e contra todos, superando todos os obstáculos e pressões do poder estabelecido a última Academia do Liceu, absolutamente representativa e totalmente paritária foi eleita legitimamente por todos os alunos. De outra janela se fala agora: a que medeia entre setembro de 2024 e setembro de 2025 onde o Presidente da República pode dissolver a Assembleia da República. Que ela não seja usada para esconder a Liberdade. Que ninguém ouse fechar as janelas que abril abriu!

NÃO, PEDRO, NÃO É!

“Palavra fora da boca é pedra fora da mão”, diz-nos a sabedoria popular para nos lembrar que uma vez proferida, uma vez atirada, já não é possível reverter totalmente o seu efeito. Pedro Nuno Santos, no debate a oito, desta sexta-feira, veio emendar a mão dizendo de forma clara (ao contrário do seu principal opositor) quais as condições em que viabilizaria ou não um governo, outro que não o do PS. Mas vem tarde. Porque um remendo, por melhor que seja, é sempre um remendo! O líder do PS tinha iniciado uma caminhada no bom sentido, que apesar de ter começado num rotundo NÃO a qualquer governo à direita, compreensível como fator distintivo do seu opositor interno e para marcar uma posição de ancoragem para uma possível (se favorável) dramatização, mais à frente, na campanha, foi evoluindo para uma clarificação no debate com Montenegro onde, perante a insistente indefinição do seu oponente, ganhou mais pontos do que persistindo na irredutibilidade inicial. E foi precisamente quando tinha ganho avanço sobre a concorrência que se desorientou e resolveu olhar para trás e apesar de a caminhada o colocar em posição vantajosa para se lançar na campanha propriamente dita resolveu dar um passo atrás e tentar corrigir a rota e redesenhar as próprias pegadas. Provavelmente pressionado pela entourage interna descontente com um desfecho que, sendo apenas um cenário, não satisfazia, na totalidade, a enormidade dos grandes umbigos demasiado habituados à gamela governamental. Tentando agradar a gregos e troianos (ação de altíssimo risco em política, apesar de, obviamente, muito tentadora) Pedro Nuno quis abrir uma brecha no muro que tão eficazmente tinha construído na véspera: foi buscar para ferramenta de corte um pretenso valor: a reciprocidade! A reciprocidade é um valor no amor, na amizade, na interajuda e em várias outras atividades humanas mas não em política nem em justiça. A não reciprocidade é, precisamente, um elemento distintivo da democracia: a liberdade e tolerância dos democratas, para ser efetiva e consequente tem de se estender a todos, incluindo os que a não defendem nem praticam. A Lei de Talião, registada há quatro mil anos por Hamurabi, deixou de ser, felizmente, um marco referenciador da nossa civilização. Não, Pedro Nuno Santos, em democracia a reciprocidade (ou retaliação, para ser mais simples e direto) não é um princípio valorizável por quem defenda uma sociedade moderna, justa, evoluída e contemporânea. Por si só, mas muito menos, quando, para satisfazer as ambições partidárias, compromete a governabilidade de um país (isso sim, mais valioso) indo contra a vontade popular em urna, por muito “injusta” que possa parecer a qualquer um! Mesmo que o fosse, não devia. Não só por questões de conveniência do bem co- mum, mas também por oportunidade política do próprio partido socialista. Vendo bem, que vantagem pode ter o líder do PS ao exigir que o seu opositor tenha o mesmo comportamento que ele? Como quer convencer os eleitores a votarem em si, exigindo que escolham entre a sua pessoa e outra, que lhes apresenta como sendo igual em decisões primordiais do futuro pós-eleitoral, imediato… quando o que, historicamente os distingue é a herança de um desastrosa ingovernabilidade… mesmo depois de ter sido brindado com uma maioria absoluta?