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José Mário Leite

SAÚDE

Nas conversas com os residentes, nas minhas frequentes viagens ao nordeste, não encontro qualquer anseio em ter, na região, um aeroporto internacional, nem sequer, poder desfrutar de uma viagem a Madrid, em alta velocidade. Gostam de ver passar a volta, apreciam as feiras medievais e outros eventos mediáticos e, claro, não perdem as festas de verão, mas no que preocupa a nossa gente, sobressaem a apreensão com a educação e futuro dos filhos e, sobretudo a ansiedade com a saúde dos pais e demais membros da família. Das duas uma, ou as pessoas com eu falo não são ouvidas pelos responsáveis regionais ou quem os ouve não lhes dá a importância devida. Ao contrário do que acontece localmente, estes temas despertam a atenção governamental e não escapam ao escrutínio da oposição, sendo motivo de disputa verbal e pública, com propósitos e análises polémicas de variada interpretação e aceitação. Por razões óbvias: Quando a lista de utentes à espera de uma operação para lá do tempo máximo estipulado na lei aumenta (atingido um valor superior a 74.000), quando o programa para acabar com este excesso em doentes oncológicos deixa de fora 8.000, quando cresce o número de urgências encerradas e o plano conduzido por Fernando Araújo (homem de reconhecido mérito e competência com provas dadas) foi suspenso e ainda não há plano alternativo… os cuidados de saúde não estão melhores, diga o que disser o Primeiro Ministro. Quando, recorrentemente, não é possível contratar os especialistas que o SNS necessita e que nem as vagas abertas são preenchidas, quando os licenciados não compensam (a situação vai agravar-se nos próximos anos) as saídas para a reformas e para o crescimento natural das necessidades… não há médicos suficientes em Portugal, diga o que disser a Ordem dos Médicos. Quando, apesar do tremendo erro do abandono de um plano que estava já a dar sinais de estar no bom caminho, por questões de ordem pessoal ou política, que não de competência e empenho, o governo reconhece que, sejam quais forem as medidas no curto prazo, a médio e longo prazo a situação do SNS passa, necessariamente, pelo aumento da formação em saúde (licenciaturas, especializações e, é bom não esquecer, doutoramentos)… a política governamental está no bom caminho, diga o que disser a oposição. É bom ter na devida conta que não é o governo que aprova os cursos superiores, sejam licenciaturas, mestrados ou doutoramentos. Essa decisão é da competência da A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior) e o processo não é simples nem imediato nem é expectável que seja, sequer, célere. Não se espere que haja fumo branco antes de dois anos. Com um ensino tradicional (tudo indica que será esse o modelo de opção da UTAD) só dentro de uma década é que poderá começar a sentir-se a necessária e urgente mudança. De qualquer forma é motivo de alegria para os transmontanos, sendo devido um elogio às forças vivas de Vila Real que, por ação eficaz ou aproveitando a falta dela, em putativos concorrentes conseguiram a indicção do Primeiro Ministro. Enquanto nordestino, estou dividido: é bom ter o próximo curso de medicina em Trás-os-Montes, mas seria muito melhor tê-lo em Bragança. Porque a concentração de valências se opõe à necessária política de discriminação positiva pelo interior, por- que podia e devia ser um motivo de união das vontades nordestinas à volta de um motivo real e mobilizador, mas, sobretudo porque, sendo no IPB era o primeiro a ser atribuído a um Instituto Politécnico onde haveria abertura a um modelo capaz de formar competentes profissionais de saúde num prazo mais curto e, por consequência, mais adequado às necessidades.

OS INTERPOSTOS INCUMBENTES

Mark Twain garantiu que a história não se repete, mas rima, provavelmente para adequar a máxima atribuída a Confúcio: “Se queres prever o futuro, estuda o passado!” Mesmo sem garantia de qualquer bola de cristal, os políticos, a quem o futuro muitas vezes resolve surpreender, deveriam olhar para o passado tendo em vista abrir uma janela, mesmo que fosca, sobre o porvir. É, aliás, para condicionar os sufrágios vindouros que muitos eleitos em fim de ciclo, renunciam ao mandato deixando o seu lugar ao pretenso sucessor para que este possa usar, em seu proveito, as vantagens associadas à condição de incumbente. Porém, não é a mesma coisa porque um novo ciclo, com um novo protagonista normalmente, requer uma nova liderança, e, não raro, numa rutura clara e percetível, nem sempre fácil. Veja-se o caso recente de Pedro Nuno Santos que andou toda a campanha a balançar entre a necessidade de afirmar um programa novo e diferente, para o país, sem querer renegar a herança dos governos de António Costa. Não há forma de garantir que uma rutura clara lhe tivesse granjeado melhor resultado. Há quem pense que se tivesse podido tomar-lhe o lugar, antes das eleições, teria sido bem melhor. Com Santana não foi, bem pelo contrário! Em vésperas de autárquicas olhemos para os registos distritais, mais recentes. Quem recebeu, de bandeja, a presidência da Câmara teve sucesso no escrutínio imediato, mas não garantiu o e esperado ciclo de três mandatos. Veja-se o que aconteceu em Carrazeda, Macedo, Mirandela e Vila Flor. Veremos o que acontece em Alfândega da Fé. Para já a atenção volta-se para Moncorvo e Bragança onde os edis em fim de mandato renunciaram deixando os seus lugares nas mãos dos seus vices. Apesar de terem a mesma origem, os processos são substancialmente diferentes. Enquanto Paulo Xavier se impôs, desde o início do ciclo de três mandatos e integrou a equipa autárquica sempre no segundo lugar, José Meneses, apesar de ser, desde a primeira hora, o maior e mais fiel apoiante do ex-presidente, apenas fez parte da lista na última candidatura e só ascendeu à vice-presidência depois da desistência do inamovível Vítor Moreira. O que, ao contrário do que possa parecer, não é uma desvantagem. A rutura com a anterior gestão au- tárquica, já iniciada pelo atual presidente, de for- ma inteligente, passando pelo necessário aumento de transparência e suavização de fraturas inúteis e desgastantes acabou por receber um contributo positivo na forma miserável como foi deixado “suspenso”, durante meses, apenas para dar cumprimento a um reles capricho do agora deputado, desde que não caia na tentação de exagerar na vitimização. Na arte, ciência e cultura bastará, no meu entendimento, cumprir com os mínimos. É, precisamente, na cultura, arte e ciência que reside o maior desafio do ocupante da cadeira presidencial do forte de S. João de Deus, em Bragança. Por três razões: em primeiro lugar, na capital do distrito essa área assume, naturalmente, uma importância acrescida numa larga franja do eleitorado; em segundo porque é grande a probabilidade de aparecer, a disputar-lhe o lugar, alguém com créditos firmados, nessa matéria; por último, e não menos importante, os vários executivos a que pertenceu, liderados pelo agora Secretário de Estado, neste campo, não fez nada de relevo, limitando-se a cuidar da grande herança recebida de Jorge Nunes não tendo sequer conseguido, até agora, concretizar o maior pro- jeto em curso – O Museu da Língua.

“UMA ILHA, MAS EM VEZ DE MAR, TERRA.”

Pela mão da minha filha Inês, tive a oportunidade de ler, com prazer, emoção e alguma comoção o livro de Susana Moreira Marques “Agora e na Hora da Nossa Morte” editado pela Tinta da China. A jornalista/escritora registou as histórias, os comentários e as suas impressões, de várias visitas às terras de Miranda entre junho e outubro de 2011. Estava no terreno um projeto idealizado por Jorge Soares e Sérgio Gulbenkian, diretor e diretor adjunto do Serviço de Saúde e Desenvolvimento Humano da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi o Sérgio que, pela primeira vez me falou dele, por saber dos laços familiares e de proximidade ao Planalto e tive oportunidade de ouvir detalhar ao Jorge, numa das várias reuniões de diretores na Praça de Espanha. Figura relevante neste desígnio de democratizar, estender e melhorar os cuidados paliativos em Miranda, Vimioso e Mogadouro foi Jacinta Fernandes, coordenadora da Unidade Domiciliária dos Cuidados Paliativos daquela região. Encontrei-a no início de 2014, em Bragança por ocasião da reunião da Assembleia Distrital, tinha eu sido eleito para a presidência da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo e ela reeleita para a de Miranda do Douro. Trocámos breves, mas interessantes, impressões sobre este projeto consolidando a impressão que trazia da sua relevância e interesse para a região. Falei, logo que tive oportunidade, com o António José Salgado, coordenador do Centro de Saúde de Moncorvo que me acompanhara lista e na campanha autárquica e, tendo obtido a sua concordância, empenhei-me, no meu regresso a Lisboa, em explorar a possibilidade de extensão deste projeto às terras de Mendo Corvo. Não foi uma tarefa fácil não só por causa da rigorosa gestão orçamental, mas, igualmente, porque era necessário obter a concordância de Jacinta Fernandes. Tudo isso foi ultrapas- sado com a boa vontade do responsável do Centro de Saúde de Moncorvo disponibilizando os re- cursos adicionais necessários, por reconhecer a mais valia do projeto para a população e, logo, para a unidade que dirigia. De Miranda veio, igualmente, um generoso e solidário sim e, em Lisboa, começou a ganhar forma a extensão da experiência ganhando com isso dimensão e, igualmente, trazendo crédito para a iniciativa, por funcionar como uma espécie de avaliação positiva, intermédia, antes do seu termo. O próprio executivo da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo reservava já, para o novo orçamento, uma verba adequada para o apoio domiciliário… Porém, a forma como o Presidente da Câmara moncorvense idealizara este apoio não se coadu- nava com o forma opera- cional daquele que estava já em curso, com os resultados conhecidos e com as normais expetativas. O projeto da Câmara de Moncorvo era outro: não tinha nada a ver com Miranda e o apadrinhamento da Gulbenkian apenas seria aceite se passasse pelo apoio da Santa Casa da Misericórdia de Torre de Moncorvo. Como tal não aconteceu, em Moncorvo nasceu um novo projeto liderado pela Misericórdia e financiado pela Câmara. Desconheço qualquer avaliação e nunca tive conhecimento da publicação dos resultados obtidos. Seguramente serão relevantes e bons, mas duvido que, sozinhos, tenham ido tão longe quanto poderiam ter ido se pudessem acrescentar valor ao que já estava no terreno. Daí que, de todo o livro da Susana Marques, a frase que mais me tocou é a do final da página 24 e que escolhi para titular este texto: “Uma ilha, mas em vez de mar, terra.”

O MICROBIOMA COMUM (O Cidadão Cientista)

Sob orientação da Maria João Leão, promovido pela GIMM e com o apoio da Câmara Municipal de Oeiras, um grupo de investigadores, liderados por Isabel Gordo, Karina Xavier e Luís Teixeira, apelou aos cidadãos da região de Lisboa para participarem num projeto inovador: identificar, estudar e caracterizar o Microbioma Intestinal Humano em Portugal, começando pelo concelho de Oeiras, alargado às zonas circundantes e, mais tarde, se houver apoios, estendê-lo a todo o país. Para tal e, não podendo levar os cidadãos à bancada do laboratório, pede-se-lhes que sejam eles a executar as primeiras tarefas observando, obviamente, o protocolo científico que permita a validação das amostragens que estarão na base do estudo. É mais um passo no caminho da Ciência Mais Cidadã, continuando a abrir-se à comunidade ultrapassando já a etapa da comunicação e indo mais longe do que as visitas aos locais de investigação, levando o laboratório a casa de cada um. A equipa de investigação vai enviar para casa de cada família aderente tantos kits quantos os componentes do agregado e são estes que farão a recolha do material biológico e genético da sua própria microbiota que lhe será entregue pelo Gabinete de Ciência e Inovação do Município de Oeiras, para fazer, por um lado, a análise da composição microbiológica e, por outro, a sequenciação dos respetivos genes. O objetivo é caracterizar a diversidade microbiológica comum em Portugal (que, segundo declarações da cientista Isabel Gordo, será, seguramente, mais rica que a americana por causa da nossa variedade alimentar típica, em contraposição com a dieta mais restrita e menos natural dos norte-americanos) e, a partir daí, identificar os microrganismos que, perante uma doença, a promovem ou previnem. É possível reconhecer, entre os milhões de bactérias que vivem no nosso intestino, aquelas cuja atividade pode ajudar a criar um ambiente propício ao aparecimento de um cancro e, igualmente, aquelas que o dificultam e combatem. Depois “bastará” diferenciar quais os alimentos ou componentes destes que são apreciados por umas e rejeitados por outras e assim condicionar a dieta alimentar portuguesa para prevenir, mesmo antes de tratar, o aparecimento de várias doenças oncológicas. A própria macrobiota pode ser alterada, enriquecendo-a ou diminuindo-a, de acordo com as conveniências de saúde de cada um mas isso, como alertou a investigadora da GIMM, é já um ato médico que poderá ter lugar, num estágio posterior e levado a cabo pelos profissionais de saúde, depois de concluído este estudo e divulgadas as conclusões, devidamente fundamentadas, cientificamente. Por razões logísticas, este projeto tem de ficar, nesta fase, restringido ao município de Oeiras e, excecionalmente, a alguns dos concelhos vizinhos. Porém, a sua extensão a outras regiões do nosso território será de grande importância, para o projeto em si mas, mais do que isso, para as populações estudadas pelos benefícios que daí poderão, num futuro próximo, recolher. Perante uma pergunta sobre a operacionalidade desta expansão, as responsáveis manifestaram grande abertura condicionando apenas ao apoio logístico local que passará, seguramente, pelo empenho municipal em colaboração com a rede de farmácias concelhias. Estou certo que os autarcas ficarão sensibilizados por esta oportunidade e que não deixarão de aproveitar o ensejo de beneficiarem as populações que pretendem servir. Sempre, mas, porque não admiti-lo, com frontalidade?, sobretudo neste período pré-eleitoral que se abre, dentro de pouco tempo. Sobretudo porque, havendo uma capacidade limitada de análise e estudo, quem primeiro se pronti- ficar, ganhará, necessariamente, vantagem sobre os seus concorrentes.

CIÊNCIA, CULTURA E DEMAGOGIA NA ARTE DE BEM GOVERNAR

Na mesma semana em que a Maria Mota fez publicar no Jornal Expresso um texto proclamando as virtudes da aplicação do método científico nas decisões políticas, a propósito da eleição de Claudia Sheinbaum Pardo para a Presidência do México, Ernesto Rodrigues edita mais um livro, com um título suges- tivo “o Bom Governo” e Rui Tavares desafia os partidos de esquerda para a constituição de uma plataforma política de combate à deriva direitista dos tempos correntes. Para além da coincidência temporal e da temática comum há uma referência espacial associada, nomeadamente a cercania da Estação Agronómica de Oeiras. É aí que tem morada o escritor nordestino e, igualmente, estão as instalações do antigo Instituto Gulbenkian de Ciência onde Maria Mota desenvolveu o seu primeiro pós-doutoramento em Portugal, na primeira década deste século e de onde veio Francisco Paupério, o candidato do Livre às eleições europeias. Rui Tavares é um político de verbo fácil, simpático, com um discurso bem fundamentado e com grande dose de razoabilidade, pouco habitual na área política onde se insere. Apesar de ter sido eurodeputado integrado no Bloco, de que, programaticamente, pouco se diferencia, fundou um partido, o Livre, com o objetivo primeiro de ser diferente, original e trazer para a política novas metodologias apregoadas como mais democráticas, mais acessíveis ao comum dos cidadãos, em concreto dos militantes e simpa- tizantes, afastando-o da tradicional estrutura partidária conhecida como o “aparelho”. Promoveu as diretas como método de escolha dos lugares de representação partidária, nomeadamente na elaboração das disputadas e desejadas listas de candidatos, porque, segundo o próprio, essa é a escolha correta… enquanto produzir os resultados esperados pela direção partidária! Porque o acerto no processo que levou Joacine a São Bento, foi assumido como um erro pela liderança do Livre, pouco tempo depois de eleita porque esta decidiu recusar ser correia de transmissão da Mesa do partido… razão invocada, precisamente, para a sua escolha. Para as europeias, Rui Tavares e companhia, quiseram impugnar a escolha de Francisco Paupério porque, pasme-se, teve um número “anormalmente” elevado de votos, nas diretas. Tal foi o inconcebível desconforto por este resultado, dentro das regras estabelecidas, que o líder partidário só apareceu em campanha quando as sondagens davam conta de um possível resultado histórico da formação. Resultado assinalável pois foi o único partido de esquerda a melhorar os resultados de 2019 em que, curiosamente, o cabeça de lista era o próprio Rui, que, ausente na rua, foi lesto a chamar a si tal feito, na noite eleitoral. E, enquanto Paupério regressa à bancada laboratorial de Oeiras, Tavares usa o seu trabalho para se arrogar em putativo federador da esquerda. Maria Mota, esperando que a formação científica da nova presidente mexicana a capacite para melhor formular as ações políticas para que sejam racionais e eficazes, para benefício das populações, vai alertando que tal não é, só por si, sinónimo de sucesso, lembrando o presidente norte-americano Herbert Hoover que apesar do seu desempenho, na observância desses pressupostos, não conseguiu a reeleição, pela sua inabilidade na comunicação. Mais radical parece ser Ernesto Rodrigues que, a avaliar pela sinopse disponível, “garante” que o bom governo precisa de cem mi- nistros a trabalhar à noite com cem funcionários em cada gabinete ministerial… ou o seu sucedâneo que, citando, Goethe, como sendo o melhor de todos, será “O que nos ensina a governar- -nos a nós próprios”.

CAMÕES EM CRUZEIRO LITERÁRIO

No passado dia 7 de junho o nordestino Ernesto Rodrigues apresentou, na Feira do Livro de Lisboa o seu livro mais recente “Cruzeiro Literário” editado pelo açoriano Vamberto Freitas, nas insulares edições Letras Lavadas. À novela, que deu título à obra, o escritor mirandelense acrescentou cinco contos. O leitor é convidado a percorrer os bastidores da produção e investigação literária desmascarando as recorrentes e recíprocas (quando não auto) citações que enformam e sustentam alguns curricula e promovem quem, para, precisamente, para promover, se promove. Lembra a cantiga do Sérgio Godinho “famoso, por ser famoso”. Depois de passagem breve por cinema “série B” encontramo-nos sentados à mesa do freixenista Guerra Junqueiro ouvindo-o esgrimir literários argumentos com cura minhoto escandalizado com as prosas dos contemporâneos João de Deus (e não São João de Deus), e, principalmente do autor das Farpas, Ramalho Ortigão. Antes, porém, de franquear a entrada em singular Cruzeiro, já referido e que igualmente abordarei, de seguida, Ernesto transporta-nos para a quinhentista Lisboa de há cinco séculos atrás, dando-nos por companhia Camões, a celebrar o seu quingentésimo aniversário. O Poeta acaba de chegar do seu epopeico périplo pelo oriente de onde trouxe, débil saúde e longo poema épico arrumado em dez cantos e cento e oitenta e seis folhas. A Lisboa que o recebia era bem diversa da que, fervilhando de vida, de ostentação, riqueza, mordomias e atividade cultural, deixara, duas décadas atrás. A capital do reino, fustigada e dizimada pela peste, definhava, em recessão, com a moeda em desvalorizações contínuas e, dirigida por fraco rei que a forte gente enfraquecia, preparava-se para dar cumprimento aos pueris sonhos do monarca, empenhando o que tinha e não tinha para organizar a desgraçada aventura em África a caminho da perdição nas escaldantes areias de Alcácer Quibir. Doente, frágil, cansado, Luís Vaz vivia já e só, para a sua obra que, cumpridos os requisitos mínimos, começava a ser impressa nas oficinas de António Gonçalves. “Rolava a máquina deste pequeno mundo, e não sabia se tocaria outros mundos. Morresse ele à míngua, doravante desapossados dos decassílabos, ganhassem estes a fortuna dos séculos.” De Paris chegavam notícias da chacina dos luteranos que, aos milhares, atapetavam o Sena enquanto no Palácio dos Estaus o Santo Ofício reforçava o seu poder, controlando e penalizando qualquer heresia ou desvio, por bem pequeno que fosse, ao catecismo instituído e imposto. Assim no-lo relata o autor “O clero vingava, pois – e vingava-se. Há vinte anos, só os alfaiates e ourives tinham mais porta aberta do que os ministros de Deus.” Felizmente o poema obteve o necessário imprimatur, e depois de termos celebrado em 1972 (andá- vamos nós por Bragança) os quatro séculos da sua edição, preparamos os quinhentos anos do nascimento do épico poeta, sob a orientação da camoniana Rita Marnoto, com quem, com orgulho e honra, partilho um lugar nos órgãos sociais do PEN. A obra encerra com a novela policial “Cruzeiro Literário”, uma sátira ao mundo editorial de que destaco um trecho que reconhecendo caracterizar o ecossistema literário, assenta que nem uma luva aos bastidores políticos locais que tive oportunidade de conhecer num passado próximo: “Estes foram sempre uma tribo convivial, falando mal de todos, menos de quem estava ao lado (enquanto não virava costas), e isso soltava a tensão em que vivíamos, com ajuda de um cigarro e décimo copo.”

A BOMBORDO, MARINHEIRO!

Eram inúmeras as razões para, em 1975, ainda antes de se adentrar por um verão escaldante, me filiar no Partido Socialista. A revolução estava em marcha, pela faixa esquerda da via, em direção ao socialismo; por ela caminhavam muitos dos meus amigos e companheiros de estudo e de vida (ou que era, naquela altura, quase o mesmo); o meu livro, Cravo na Boca, acabado de sair, era representado, pelas terras do nordeste por um grupo local da juventude socialista; todo o país avermelhava; no meu regresso a Bragança para cumprir a malfadada “obrigação” do inefável Serviço Cívico vi-me instalado no “meu velho” S. João de Brito lado a lado com cabeludos e barbudos militares que, chefiados pelo Fabião vinham alfabetizar (politizar/socializar) as rudes gentes nordestinas; barbudo e cabeludo, o Ernesto, vindo da libertária França, já a atapetar a vinda de Mitterrand para o Eliseu, garantia-me que o futuro lusitano era vermelho; cabeludos e revolucionários, os irmãos Vitorino, chegados igualmente da gaulesa pátria confirmavam a irreversibilidade da via socialista, para o futuro; por fim o mesmo S. João de Brito, que fora a minha casa, na juventude recente, era agora albergue de magalas revolucionários e de alguns refugiados políticos, um deles, chileno, não se cansava de me garantir que tal como na sua América natal a revolução portuguesa estava em perigo pois o braço longo de Pinochet estendia-se até este lado do Atlântico e a mais perigosa das suas ações escondia-se nos lugares menos visíveis pois a contra-revolução começava exatamente no PPD do fascista Sá Carneiro muito “convenientemente” substituído, provisoriamente (sublinhava) por Emídio Guerreiro. Até o Chave d’Ouro se movia para a esquerda. No mar agitado da política, a nau adornava à esquerda e quem quer que se encostasse ao outro lado era um sabotador do brilhante futuro comum que se abria para lá das alterosas vagas. No chão do barco havia uma larga faixa vermelha pintada para marcar bem o espaço a ocupar por quem estava ao lado da revolução e quem, pelo contrário, conspirava para a sabotar. E a verdade é que no extremo do estibordo havia gente pouco recomendável que fazia bombas e pegava em armas para tentar restabelecer o odioso regime da velha senhora. Que não era, obviamente, aceitável, fosse a que título fosse. Porém, mantendo-me ao centro, não podia alinhar na “óbvia” tendência da turba pois os riscos de naufrágio eram demasiados. Sem abandonar os princípios democráticos, já enraizados, mas também sem me deixar levar por quimeras demasiado arrojadas, revi-me num discurso sereno, racional e, à data, corajoso de Francisco Sá Carneiro e, sem me afastar demasiado do vermelho… alaranjei-me e por lá fiquei, sempre na ala esquerda, por mais de quatro décadas. Hoje que o fundador do PPD está pendurado num retrato em todas as sedes do partido que disputa mais bandeiras à direita do que as combate; que daquele lado surge, impantes, forças demagógicas e perigosas, que as cores na linha do horizonte já pouco têm de vermelho ou rosa, antes escurecem, ameaçadoramente, é tempo de, mesmo continuando no meio da embarcação, caminhar um pouco para o outro lado para que a nave não mergulhe pelo outro lado. A Lurdes que revê e opina sobre todos os meus textos, critica esta assunção de um suposto ziguezaguear. Para a tranquilizar (e a todos quantos pensem da mesma forma) pedi-lhe que em vez de me visualizara a caminhar de um lado para o outro, me imagine suspenso e imóvel, sobre o navio. Quando, em 1975 adornou à esquerda, naturalmente se aproximou de mim (e não eu dela) a amurada da direita. Agora que a turba se atropela na direção oposta, nada fazendo, mantendo-me exatamente na mesma posição onde sempre tenha estado, acabo por me ver deslocado para bombordo (o bordo bom, segundo a tradição dos navegadores portugueses).

A UNÇÃO PARTIDÁRIA

Não há qualquer racionalidade na admissão , sem contestação nem um questionamento sobre a sua razão de ser do que parece ser um dogma de gestão que nenhuma escola, teoria ou pensamento com fundamento reconhecido segundo o qual e de acordo com a opção de quem julga ou detém o poder de julgar, a competência está umbilicalmente ligada à cor partidária do seu portador. Se o Governo é socialista, só os portadores do cartão rosa são capazes de executar com aptidão as funções diretivas das inúmeras comissões executivas das instituições públicas ou sob a tutela governamental. Sê-lo-ão, na esmagadora maioria dos casos, desde o início da legislatura até ao seu final. Porém, se por qualquer percalço, incidente ou infortúnio, o governo cair antes do tempo regular e, por acaso ou qualquer outro motivo, fortuito ou intencional, mesmo que por curta margem, for o PSD a chegar a S. Bento, automaticamente todas aquelas pessoas ficam incompetentes, imediata e inexoravelmente. Caberá na cabeça de alguém que o uso de um cartão, em determinada altura, conceda, por obra e graça de São Thomas More (padroeiro dos políticos e cuja memória se celebrou no dia 19 de maio) aos correligionários dos detentores dos centros de decisão, aptidões encobertas até então por subtração a quem, até então, as tinha, por intermediação, igualmente miraculosa da detenção de um cartão de outra cor. Não está em causa a legitimidade de definição das políticas orientadoras da governação nacional por quem foi, para tal, incumbido pela expressão popular nas eleições legislativas. Mesmo que, como várias vezes aconteceu e, infelizmente acontecerá no futuro, as opções dos governantes não sejam as mais adequadas para atingir o benefício geral que todos juram prosseguir. Claro que é natural haver mudança de atuação política sempre que muda a direção partidária da governação. O que não é fácil de entender é a necessidade de ter uma determinada filiação política para exercer com a necessária competência um cargo técnico dirigente. Desde logo porque, no governo de Passos Coelho, com uma composição política idêntica à do atual, foi criada a Cresap precisamente para garantir que a admissão de dirigentes para os cargos superiores da administração pública era feita com base na qualificação e aptidão para o lugar e não por qualquer lealdade partidária. Das duas, uma: ou a Cresap está a desempenhar adequadamente a função para a qual foi criada e então não é aceitável que a mudança de governo implique uma tal dança de cadeiras, porque um quadro competente tem obrigação de executar a contento as opções governamentais ou afinal havia outros candidatos melhor preparados (a proximidade política ao ocupante de S. Bento não passará de uma estranha coincidência) e então a Cresap não cumpre a sua missão e a única atitude consequente é denunciá-la e acabar com ela. Uma última reflexão. Quando questionado sobre a afã demissionária do seu governo, Luís Montenegro, em vez de justificar com as razões substanciais (ou falta delas) para a catadupa de exonerações declarou que as achava normais. Desafiou os jornalistas a investigarem no passado e, pelos vistos, existiram efetivamente chefes de governo mais “exoneradores” do que ele. Porém qualquer um deles exerceu o seu consulado precisamente antes da Cresap (que foi, recordo, criada para por fim a esse despautério). Acresce ainda que se a ambição governativa de Montenegro se conforma em não fazer pior do que fizeram Santana e Sócrates diz muito (ou muito pouco) da ambição do atual inquilino de S Bento.

A LAMA E O PÂNTANO

Não se drena um pântano jogando lama para dentro das águas. Obviamente que o nível da água podre subirá e, transbordando, diminuirá o seu volume no recipiente pantanoso… mas, ao ser substituída por lodo não acrescenta vitalidade e renovação, antes pelo contrário, continuará a alimentar a fauna e flora que habita as regiões de solo apodrecido. Provavelmente haverá, inclusive, um reforço dos habitantes, animais e vegetais do atoleiro. Por isso, quando o cheiro a apodrecimento começar a incomodar os habitantes das redondezas a solução não passa pelo acréscimo de material putrefacto, mas pela sua substituição por rochas, terra boa, plantas sadias e extração dos líquidos fedorentos. De pouco adiantará, inclusive, fazer um muro a meio, para separar zonas se, na zona a que temos acesso e que confina com terra arável, depositarmos algo muito parecido ao que há do outro lado e, para piorar, garantindo a estanqueidade da parede… fazemos buracos a meia altura, distantes da vista geral que… para grande espanto, o seu bloqueio vem do lado errado. No Expresso da Meia-Noite o inefável e arrogante líder parlamentar do PSD, Hugo Soares veio “revelar” que terá negociado com o Chega não só a eleição para a presidência da assembleia da república, como ainda para a redução do IRS e para a abolição das portagens! Se isto é um cordão sanitário, se este é o entendimento de “não, é não”, vou ali e já venho. Para acrescer à “refundação” apregoada durante a campanha eleitoral e ao início do novo ciclo de transparência e cumprimento de todas as promessas eleitorais… começam a surgir no horizonte sinais deveras preocupantes. O superavit, reconhecido e certificado pelo ministério das finanças na véspera da “enorme” descida de impostos convertia-se em déficit num ápice, num passe de magia, num truque de ilusionismo! Que, extraordinariamente, não impede a demagógica e eleitoralista medida de abaixamento do IRS mas começa a ser um obstáculo à concretização prática da miríade de benesses tão claramente propaladas em campanha eleitoral e agora, tão maquiavelicamente revisitadas na altura das negociações, como parece estar a acontecer com os subsídios de risco das forças de segurança, a recuperação do tempo dos professores e a valorização das carreiras públicas dos enfermeiros, médicos e oficiais de justiça! Veremos. Porém do que já não há dúvida, diga o primeiro ministro o que quiser e entender é a grande ânsia de afastar, sem apelo nem agravo, sem contemplação nem respeito e consideração (que deve presidir, sempre, ao exercício do poder) quadros competentes, pessoas dedicadas e honestas, gestores e técnicos, antes de terminarem as comissões de serviço para que foram investidos legal e legitimamente. Instituições com notórias dificuldades não melhoram, por qualquer passe de magia, só por verem substituídas as suas lideranças. Dirá o bom senso que, substituições apressadas e sem o devido tempo de transição (se e quando justificável) irão sofrer e ninguém garante quanto tempo levará a sarar as feridas abertas com estas operações “de emergência”. O próprio Governo já se terá apercebido da “asneira” em afastar Fernando Araújo ao anunciar publicamente que a melhor alternativa ao projeto que o Diretor Executivo do SNS personalizava era… pasme-se… o projeto a elaborar pelo mesmo para ser executado por outrem! Obviamente que, para salvar a face, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa terá de apresentar, no imediato, resultados claramente positivos para justificar a inqualificável exoneração de Ana Jorge com caráter de inusitada urgência!

A FESTA, PÁ!

Foi bonita! No centro geométrico do mundo, na Praça da Sé, com alguma da “gente de bem” e toda a outra gente, no meio da vida de então, entre o Flórida, O Chave d’Ouro e o Cruzeiro, entre a vetusta Sé, a novíssima discoteca e o austero Banco de Portugal, equidistante do Seminário, do S. João de Brito, do Castelo, do Liceu, da preciosa Estação da CP e da atraente Florestal, e, dizia-o a televisão, por todo o país, na madrugada do dia inteiro e limpo, acordando o povo da longa e obscura noite fascista, chegou, a Democracia, vestida com as brilhantes cores da liberdade, para todos, sem quaisquer limitações ou exclusões. E, porque assim foi, hoje, um grupo de cidadãos “de bem” podem, livremente, manifestar ou seu saudosismo pelo tempo em que essa prorrogativa não os incomodaria porque era privilégio do grupo limitado onde se entregam. Mais de sessenta autores, agrupados à volta da associação “Farol”, coordenados por Paulo Jorge Teixeira e Rodrigo Pereira Coutinho, escreveram textos que, sob o título “Abril pelas Direitas”, queixando-se de serem censurados de forma mais opressiva do que a PIDE, por um novo regime totalitário, segundo regras de um jogo para as quais não foram consultados, pretendem manifestar o seu pensamento fora de linhas vermelhas e cercas sanitárias. Se as regras, tendo o sinal oposto, fossem idênticas às do tempo que saudosamente recordam só em silêncio poderiam “manifestar” o seu pensamento. E, mesmo assim, desde que um pidezeco qualquer, ou um abjeto bufo não descortinasse nos gestos e atitudes, indícios de um pensamento “perigoso” e “anti-patriótico”. Além de que, como tendo sido exaustivamente demonstrado, as regras que nos regem contam com a opinião de todos… desde que, em número suficiente para fazerem eleger quem as represente. Alertam ainda para a “ameaça” que paira sobre o português, causada pela “importação de turbas de culturas distantes”. Só pode causar espanto tais dislates vindos da casta que, há meio século atrás reclamava um estado único e uma única nacionalidade para um país unido e uniforme… do Minho a Timor! Com o regime de então a fomentar a expedição, para o continente africano, de turbas de colonos e de lá importar mão-de- -obra barata para alimentar a construção civil dos dormitórios à volta das grandes cidades da “metrópole”. Queixam-se, genérica e generalizadamente os autores de verem ideias e ideais a serem “impostos” por quantos reclamavam contra a imposição que existia no tempo da outra senhora. Afinal os “sagrados” conceitos de pátria e família não têm o devido respeito e veneração que, reclamam, lhes são devidos. E que a opinião pública está colonizada por ideias “adversas” à necessária bondade social que, garantem, é a mais adequada à nação. É provável (e ainda bem) que os seus ideais, ao contrário do que acontecia durante o regime salazarista, estejam secundarizados no seio dos portugueses. Havendo ideologias diferentes e, em vários aspetos antagónicas, não é possível que ambas tenham prevalência sobre a outra. Apenas uma poderá enquadrar a sociedade como um todo. A diferença é que agora (e tal não era possível, antigamente) a primazia é dada aquela que obtiver o apoio maioritário dos interessados e ainda, o que não é de somenos, às minorias não é sonegado o direito de se pronunciar nem de poder influenciar os restantes com a intenção clara e assumida de virar o jogo a seu favor. Foi bonita a festa, pá? Foi. Pena que alguns cravos tenham murchado e que algumas ervas daninhas secas tenham reverdecido.