CAMÕES EM CRUZEIRO LITERÁRIO

PUB.

No passado dia 7 de junho o nordestino Ernesto Rodrigues apresentou, na Feira do Livro de Lisboa o seu livro mais recente “Cruzeiro Literário” editado pelo açoriano Vamberto Freitas, nas insulares edições Letras Lavadas. À novela, que deu título à obra, o escritor mirandelense acrescentou cinco contos. O leitor é convidado a percorrer os bastidores da produção e investigação literária desmascarando as recorrentes e recíprocas (quando não auto) citações que enformam e sustentam alguns curricula e promovem quem, para, precisamente, para promover, se promove. Lembra a cantiga do Sérgio Godinho “famoso, por ser famoso”. Depois de passagem breve por cinema “série B” encontramo-nos sentados à mesa do freixenista Guerra Junqueiro ouvindo-o esgrimir literários argumentos com cura minhoto escandalizado com as prosas dos contemporâneos João de Deus (e não São João de Deus), e, principalmente do autor das Farpas, Ramalho Ortigão. Antes, porém, de franquear a entrada em singular Cruzeiro, já referido e que igualmente abordarei, de seguida, Ernesto transporta-nos para a quinhentista Lisboa de há cinco séculos atrás, dando-nos por companhia Camões, a celebrar o seu quingentésimo aniversário. O Poeta acaba de chegar do seu epopeico périplo pelo oriente de onde trouxe, débil saúde e longo poema épico arrumado em dez cantos e cento e oitenta e seis folhas. A Lisboa que o recebia era bem diversa da que, fervilhando de vida, de ostentação, riqueza, mordomias e atividade cultural, deixara, duas décadas atrás. A capital do reino, fustigada e dizimada pela peste, definhava, em recessão, com a moeda em desvalorizações contínuas e, dirigida por fraco rei que a forte gente enfraquecia, preparava-se para dar cumprimento aos pueris sonhos do monarca, empenhando o que tinha e não tinha para organizar a desgraçada aventura em África a caminho da perdição nas escaldantes areias de Alcácer Quibir. Doente, frágil, cansado, Luís Vaz vivia já e só, para a sua obra que, cumpridos os requisitos mínimos, começava a ser impressa nas oficinas de António Gonçalves. “Rolava a máquina deste pequeno mundo, e não sabia se tocaria outros mundos. Morresse ele à míngua, doravante desapossados dos decassílabos, ganhassem estes a fortuna dos séculos.” De Paris chegavam notícias da chacina dos luteranos que, aos milhares, atapetavam o Sena enquanto no Palácio dos Estaus o Santo Ofício reforçava o seu poder, controlando e penalizando qualquer heresia ou desvio, por bem pequeno que fosse, ao catecismo instituído e imposto. Assim no-lo relata o autor “O clero vingava, pois – e vingava-se. Há vinte anos, só os alfaiates e ourives tinham mais porta aberta do que os ministros de Deus.” Felizmente o poema obteve o necessário imprimatur, e depois de termos celebrado em 1972 (andá- vamos nós por Bragança) os quatro séculos da sua edição, preparamos os quinhentos anos do nascimento do épico poeta, sob a orientação da camoniana Rita Marnoto, com quem, com orgulho e honra, partilho um lugar nos órgãos sociais do PEN. A obra encerra com a novela policial “Cruzeiro Literário”, uma sátira ao mundo editorial de que destaco um trecho que reconhecendo caracterizar o ecossistema literário, assenta que nem uma luva aos bastidores políticos locais que tive oportunidade de conhecer num passado próximo: “Estes foram sempre uma tribo convivial, falando mal de todos, menos de quem estava ao lado (enquanto não virava costas), e isso soltava a tensão em que vivíamos, com ajuda de um cigarro e décimo copo.”

José Mário Leite