José Mário Leite

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Análises isoladas não são válidas

Que mal tem? 
Esta vai ser, provavelmente, a pergunta que mais se irá ouvir, nos próximos tempos. 
Nenhum. Provável e aparentemente nenhum, mas é proibido.
E bem.
Porque neste regresso do confinamento não podemos fazer uma análise casuística mas sempre grupais ou universais. Não há risco nenhum em que alguém esteja deitado na areia da praia a tomar banhos de sol. Mas o direito individual, devendo ser universal, perde-se por causa dessa característica, globalizante. Uma pessoa a banhos, não representa qualquer ameaça, mas milhares delas, sim.
Tal como acontece em tantas outras atividades da nossa vida. Sempre que as consequências de um ato são desproporcionadas, a precaução tem de compensar essa desproporção. O exemplo mais claro, frequente e generalizado é o do seguro automóvel. Para causar um grande dano não é necessária uma ação continuada, esforçada e musculada. Nada disso. Basta um pequeno descuido. Por isso a compensação tem de vir da extensão. Visto à lupa e de forma isolada, provavelmente não há razão para forçar a maioria dos condutores ao pagamento obrigatório da sua prestação anual. Mas a análise global da sinistralidade, não a dispensa. 
O mesmo se passa com o uso obrigatório de capacete de proteção, quando aos comandos de um motociclo. Não é só a análise casuística como o próprio histórico, demonstram poder ser dispensável o seu uso. Nada de grave acontece numa pequena viagem, nenhum risco concreto se incorre na esmagadora maioria das restantes. Foi, contudo, a enorme quantidade de acidentes de consequências muito graves que impuseram essa medida de segurança. O gesto de colocar o capacete, desde que generalizado, poupa muitas vidas mesmo quando não seja possível ou evidente vislumbrar, como, antecipadamente. 
Como alguém que me é próximo alertou, recentemente, o vírus não foi embora nem o risco de contaminação desapareceu. O achatamento da curva garantiu-nos “apenas” mais camas disponíveis nos Cuidados Intensivos. Não serei tão dramático. É realista reconhecer que há hoje outras medidas que diminuem a possibilidade de contágio... desde que não se baixe a guarda. É bom ter presente que a máscara de uso generalizado não garante a imunidade... aumenta a proteção, o que não sendo tudo, não é pouco, nem de somenos. 

Vamos ter de conviver com o risco de infeção, que é real e permanente, independentemente do achatamento da curva e da dimensão do famoso R. Este risco nunca é zero, porque seria impossível viver com cada um de nós dentro de uma bolha assética e isolada. O nosso papel é minimizá-lo. E, em cada gesto, em cada ação não podemos questionar a sua consequência direta para nós mas julgá-la, com base em dois critérios:
- Contribui para diminuir ou aumentar o risco?
- Mesmo que o meu gesto e atitude seja aceitável, sê-lo-á, igualmente se repetido por milhares de cidadãos.

Nota final. É verdade que a vida moderna já não dispensa as viagens aéreas e todos nós ansiamos pelo seu regresso nas condições a que nos habituámos. Mas a diminuição das exigências de distanciamento num ambiente confinado e de convivência próxima, durante várias horas não é uma boa medida e muito menos um exemplo para outros processos de desconfinamento igualmente sedentos de regresso à normalidade.

EGOÍSMO E SOLIDARIEDADE (Privacidade e Segurança)

Ninguém se salva sozinho.

Durante o recente confinamento lembrei-me, a propósito do uso das máscaras e não só, dos primeiros anos da minha vida profissional. O meu primeiro emprego foi numa das maiores empresas têxteis do Vale do Ave. Como morava no Porto ia, com vários colegas meus, nas mesmas circunstâncias, diariamente da Cidade Invicta até Pevidém, nos arredores de Guimarães. Fazia parte do entretenimento da hora de viagem tentarmos adivinhar, até chegarmos à Trofa, qual a cor com que o rio Ave se apresentaria, nesse dia.

No início dos anos oitenta a têxtil ressurgia depois de uma crise (e antes de outra) e não havia preocupações ambientais, dignas desse nome. No rio Ave e seus afluentes eram despejados os resíduos das secções de acabamento e tinturaria das inúmeras estamparias da região. Os cursos de água ficavam tão poluídos que a utilização da água, por cada uma delas tinha de ser precedida da passagem por adequadas estações de tratamento de água. Cada unidade tinha de despoluir a água que usava e despejava depois, diretamente no esgoto em direção ao mar. Com o aumento da sensibilidade social para este problema aliada à necessidade de mudar o panorama por causa da nossa adesão à então CEE foi necessário mudar o cenário. Podia parecer ser necessário um investimento brutal para, mantendo a atividade económica, alterar radicalmente o problema. Parecia mas não era tanto assim. Afinal, cada empresa têxtil tinha já uma estação de tratamento de água. Se todas, sem exceção, usassem o equipamento existente para despoluir, todos tinham acesso à água limpa e o rio Ave libertava-se, automaticamente da horrível e pesada poluição.

O mesmo se pode passar com a COVID. É óbvio que o interesse mais importante de cada um é não ser contaminado. Mas, se cada um de nós impedir contaminar quem quer que seja, ficamos todos protegidos e o ambiente à nossa volta também! É por isso que todos devemos usar máscara.

Mas isto aplica-se, igualmente a outras ações. A propósito da possibilidade de serem usados os telemóveis com a finalidade de se rastrearem, retroativamente, os contactos de alguém infetado. Tendo em vista preservar a confidencialidade, o desencadear do processo de advertência tem de se iniciar apenas a partir da informação, para o sistema de quem for diagnosticado como positivo. Todos os restantes ficarão a saber que alguém, não identificado, com quem teve um contacto próximo, está infetado com o coronavirus.

Um amigo meu, com quem discutia o assunto, disse-me que não iria aderir, mesmo garantindo os seus direitos, porque não acreditava que os outros comunicassem. Eu aderirei. Porque se for detetado como positivo, comunico. Mais do que por solidariedade... por puro egoísmo. Porque a melhor e mais eficaz forma de garantir que todos informam passa pelo compromisso de cada um informar.

Nesta situação particular, (tal como acontece com a necessária recuperação económica na união europeia) quando começar a pensar egoísta e exclusivamente em mim... nesse mesmo momento deixei de tratar do meu próprio interesse!

 

A segunda vaga

Tal como prometido na minha crónica anterior e com as cautelas necessárias, procurando a maior objetividade possível, à luz do que se vai conhecendo, tentarei analisar as razões das opções tomadas pelos decisores.
Embora o tenha referido, nos meus últimos textos publicados na imprensa, é bom não esquecer que a pandemia nos apanhou de surpresa e que mesmo alguns especialistas, conhecedores do fenómeno e dos seus mecanismos tinham dificuldade em apontar, com certeza, os caminhos certos e adequados, sem deixarem de manifestar muitas dúvidas e incertezas. Mas também desenhando alguns cenários possíveis, prováveis e inevitáveis. 
No início deste mês a Fundação Gulbenkian organizou uma tele-conferência com vários e distintos convidados internacionais para além dos meus conhecidos Mónica Dias, Miguel Soares e Gabriela Gomes. Esta última, especialista em epidemiologia, criadora do modelo Gripenet, surpreendeu com o anúncio da inevitabilidade do surgimento de uma segunda vaga, de valores muito elevados, como consequência do achatamento da curva atual. Ao susto inicial seguiram-se as justificações e explicações sobre os cenários possíveis. Entre estes uma certeza, aceite por todos os que têm conhecimentos credenciados na matéria: uma primeira vaga dura e agressiva e pouco reprimida, causando grandes estragos e sacrifícios atuais, evitará uma segunda, devastadora... se nada de extraordinário acontecer.
A segunda vaga vai acontecer. Como acontece sempre com estes fenómenos epidemiológicos. Terá, esperamos, condições de defesa reforçadas. Mas encontrará, igualmente, não o esqueçamos, situações que lhe são favoráveis. Os focos de infeção estarão mais dispersos e será mais difícil a contenção. A auto-disciplina será mais difícil de implementar. Quem não tenha seguido as determinações com rigor, nesta fase, e dela saído incólume, dificilmente se convencerá a adotá-las depois. Quem sofre muito com as condições atuais, terá grande relutância em iniciar um novo ciclo. Muitas empresas vão sair do vigente confinamento muito debilitadas sabendo bem que um segundo impacto parecido ser-lhes-á fatal. Muitos sentir-se-ão desanimados porque os sacrifícios da primeira investida não evitaram a segunda.
Por isso mesmo é necessário ter muita cautela antes de sentenciar já outras opções, como a ensaiada pelo Reino Unido e implementada pela Suécia. É verdade que o custo em vidas e em esforço do Serviço de Saúde é enorme, mas, em boa verdade, também enorme pode ser, no futuro, a poupança, nesses mesmos domínios. Uma vida não tem preço, logo não é possível determinar qualquer parcela da mesma, medida em anos poupados ou em baixas futuras. É uma matemática impossível de fazer. Por outro lado, esse cenário que nos espera, ameaçador, poderá ser minimizado, com o aparecimento de uma vacina, com uma alteração dramática, com uma descoberta fantástica. A esperança de hoje, existe e deve ser mantida!
À luz do que se sabe, ouvindo e valorizando quem efetivamente sabe, não é fácil tomar decisões! Não queria estar na pele de quem tem de o fazer! Angustiado, deprimido, fragilizado, sinto-me bem e confortável a seguir à risca o guião desenhado por quem tem de o fazer e o faz, não duvido, pensando no que é melhor para mim e para todos nós!

Mónica Bettencourt-Dias (Instituto Gulbenkian de Ciência – Moderadora)
Akiko Iwasaki (Yale School of Medicine)
Filipe Froes (Hospital Pulido Valente)
Gabriela Gomes (Liverpool School of Tropical Medicine)
Miguel Soares (Instituto Gulbenkian de Ciência)
Stewart Cole (Pasteur Institute)

Qem só sabe de futebol Nem de futebol sabe

A frase aparece com várias formulações mas a ideia é de Manuel Sérgio, conhecido como o filósofo do futebol. O Professor e antigo Deputado na Assembleia da República tem chamado à atenção do erro que é tentar resolver questões complexas com olhares unidirecionais, por mais complexos e “competentes” que estes possam ser, na sua especialidade. É assim não só no futebol como, praticamente, em todas as áreas da vida contemporânea.

A sociedade moderna impõe a existência de especialistas nas mais variadas áreas do conhecimento e da gestão societária. É verdade que a complexidade dos temas, a grandiosidade das variáveis e a importância das consequências, para o bem e para o mal, exigem uma especialização crescente. Paradoxalmente, a multidisciplinaridade dos assuntos mais importantes, impõem a partilha e abertura a várias áreas e conhecimentos complementares diversificados. Idealmente, os especialistas deveriam ter um perfil, nascido na renascença, mas há muito extinto por impossibilidade prática: o homem enciclopédico. O volume de conhecimento a multiplicidade de temas e profundidade dos seus requisitos tornou essa quimera impraticável. Essa é a razão pela qual a liderança do conhecimento humana, personalizada nos melhores cientistas, nas mais diversas áreas, deixou de se fazer de forma individual (nem tão pouco em grupo) mas alargadamente, em ampla cooperação. Apesar disso continua a haver áreas em que, pensando com isso aumentar a competitividade e concorrência internacional, algumas pastas são entregues a “especialistas” cuja reputação foi feita com abundantes provas dadas na matéria de que é suposto cuidarem mas, por tão especializados e focados, esquecem totalmente as disciplinas adjacentes, algumas delas bem próximas, influenciadas e influenciadoras daquela a que se dedicam. Conheço exemplos de mulheres e homens geniais, líderes mundiais nos estudos que promovem e incapazes de reconhecerem normas banais e pouco mais do que bom senso em áreas de suporte e de menos complementaridade. Felizmente, nesses casos, a inteligência geral que possuem, leva-os a confiarem em terceiros, permitem que, nesses campos outros, menos geniais mas mais c omp e tente s para o efeito os substituam, com ganho de causa. Não há qualquer drama nem isso representa qualquer menorização dos vários intervenientes. Em ciência é essa a norma e todos a respeitam, honram e aceitam.

Infelizmente não é assim quando passamos para o campo da política. Senhores de verdades absolutas, treinados para liderarem sem “desvios”, acostumados a que todas as críticas são oposicionistas, todos os reparos são penalizantes, quando especializados numa pasta e nela têm sucesso são tentados (muitos persistem) a esquecerem tudo o resto, menorizarem o que não é do seu domínio independentemente das consequências mesmo para este.

É o que se passa com o cargo de Ministro das Finanças na Holanda. As suas repugnantes declarações não são apenas uma inaceitável demonstração de falta de solidariedade. São igualmente estúpidas e ignorantes. Numa pandemia, no limite, (quase) todos vamos ser infetados. A melhor forma de defender e proteger os cidadãos holandeses passa pela contenção da contaminação galopante em Itália e Espanha.  

EXPLORAÇÃO MINEIRA: Porque sim ou porque não?

O crescimento exponencial do fabrico e uso de telemóveis e o crescente recurso à mobilidade elétrica veio aumentar a procura de elementos constitutivos das baterias, sobretudo os que lhes conferem durabilidade, aumento de capacidade e recuperação, bem como a possibilidade de cargas rápidas, como é o caso do lítio. Por isso é compreensível que a sua mineração aumente e que haja uma acrescida procura dos locais onde pode ser explorado. É essa a razão pela qual as serranias de Montalegre são agora cobiçadas por empresas e empresários que ali pretendem estabelecer unidades de extração mineral. Tudo bem, não fora a agressão ambiental que a abertura de enormes crateras a céu aberto vai causar, bem como a ofensiva ao justo e merecido bem-estar das populações ali residentes desde sempre. Argumentam, entre outras coisas, e com razão que tendo sido abandonados pelas forças vivas e poderosas, só são lembrados para lhes trazerem, não as verdadeiras melhorias de condições de vida, mas incómodos, poluição e transtornos válidos. Não só, é verdade, mas, segundo eles (e é a eles que compete avaliar o que lhes convém ou não), as melhorias que chegam não pagam nem compensam, minimamente as malfeitorias. Pois bem, se a vida moderna e o progresso das grandes urbes impõem o aumento brusco de novos materiais, que os procurem noutros locais ou, precisando dos que ali estão, o façam de outra maneira, respeitando a natureza e os naturais.
As frequentes crises financeiras têm vindo acrescentar valor ao ouro. É natural que apareçam candidatos à sua exploração em todos os cantos onde se suspeite possam existir reservas naturais. Os pressupostos são os mesmos.
Igualmente se poderia replicar o mesmo argumentário para o caso do ferro. Mas há, neste caso concreto, dois aspetos adicionais que não é possível ignorar, nem tão pouco minimizar. O primeiro e mais evidente é que a sua extração é mais agressiva, mais poluente e mais intrusiva para a vida dos cidadãos das suas redondezas; a segunda é a falta de racional que justifique o aumento da mineração, sobretudo a retoma onde fora fechada por causa da baixa rentabilidade.
Para melhor entender pesquisei várias publicações e relatórios da especialidade, em lado nenhum encontrei qualquer indício de crescimento da procura, atual ou futura. Mas há, como não podia deixar de haver, um aumento crescente do preço. Os especialistas apontam, como causa, não o aumento da procura, mas a diminuição da oferta... de um dos maiores produtores, a China... por causa de problemas ambientais!
Tempos houve em que muitos nordestinos procuravam os escuros e poluentes ambientes mineiros, para fugirem ao pão que o diabo amassou. 
Tempos idos, felizmente.
Haverá quem entenda que o futuro se resolve com trocadilhos com as palavras que ache estranho possuir uma das maiores jazidas de ferro da Europa, sem a explorar. 
Estranho, acho eu, é haver quem pense que o desenvolvimento das regiões de baixa densidade (seja ou não de alta intensidade, o que quer que se pretenda significar com isso!) passa por ter de comer o pão que o próprio diabo chinês se recusa já a amassar...

O Alfa Romeo e os caretos de Podence

Desde a sua fundação, em Portello, nos arredores de Milão a Alfa (mais tarde Alfa Romeo quando adquirida por Nicola Romeo) produziu carros de raça desportiva fomentadora da paixão automobilística nos adeptos das quatro rodas. Quem não se lembra da pontinha de inveja que o possuidor de um mítico exemplar Alfa Romeo Giulietta causava nos seus pares, nos idos anos 70 do século passado. A marca do quadrifoglio teve durante largos anos, um nicho de mercado muito próprio, fiel e apaixonado. O Cuore latino tinha a magia de entusiasmar e despertar o espírito desportivo com a sua raça. Há alguns anos, a direção da marca entendeu que a forma de crescer e aumentar o seu prestígio passava pelo alargamento do público alvo e resolveu apostar fortemente nos utilitários de forma a chegar a um público mais vasto e indiferenciado. O resultado é conhecido: perdeu o elã de largas décadas e não teve grande êxito no mercado generalista estando em risco de ser, brevemente, ultrapassada pelo fabricante espanhol SEAT.

Num mundo cada vez mais globalizado, em que tudo está acessível, a todos, em todo o lado, não ter algo distintivo, é uma desvantagem considerável. Num mundo generalista onde a padronização invadiu o dia a dia e todos os mercados, onde a robotização produz artefactos absoluta e perfeitamente iguais, aos milhares, as maiores mais-valias estão na diferença, na genuinidade, na individualização. Mesmo que pequena, mesmo que tivesse sido negligenciada, até há bem pouco. Foi o que aconteceu com os caretos do nordeste, especialmente com Podence que persistiu em representar insistentemente a sua tradicional festa do Entrudo, resistindo às modas que outros importaram do outro lado do Atlântico. A aposta foi certeira e acertada como a sua elevação ao Património Imaterial da Humanidade veio demonstrar e que originou a recente deslocação a esta aldeia de Macedo de Cavaleiros do mais alto magistrado da Nação.

Destino totalmente diverso, tiveram as mais variadas tentativas de promover, pelas nossas terras, outros carnavais incluindo aqueles que despejaram sacos de dinheiro (público, com certeza) no “engrandecimento e modernização” dos corsos com ritmos de samba e cores tropicais. Outra foi, em boa hora, a opção das gentes nordestinas. Seria bom que a lição fosse compreendida e implementada, noutras manifestações culturais. Em vez de imitarem os demais e de quererem destacar Podence no “panorama dos carnavais nacionais”, seja isso o que for, mantiveram-se fiéis à tradição, insistiram na manifestação popular de velhos hábitos e, sobretudo, interpretaram adequadamente o sentimento secular, dedicaram-se ao que efetivamente sensibiliza e se adequa à tradição e forma de sentir da gente da aldeia e, também, das suas redondezas.

Por muito diferente que pense quem, temporariamente, preside aos destinos locais e pode, por legitimação eleitoral, dispor de recursos consideráveis, dando-lhe uma errada sensação de grande poder sem significativas limitações, a tradição não se fabrica por decreto, os costumes não se importam e a relevância não se compra!

 

O terrível e misterioso COVID 19

As potências mundiais possuem hoje uma capacidade de intervenção, nos mais diversos domínios, espantosa e de uma eficácia inimaginável há algumas décadas atrás. Os líderes políticos, religiosos e económicos têm a capacidade de, num ápice, determinarem, condicionarem e até destruírem a forma de vida, de subsistência e bem-estar de milhões de pessoas. Uma decisão, mais ou menos pensada, mais ou menos orientada, de Mark Zuckerberg pode contribuir decisivamente para o futuro político (ou outro) de dirigentes, partidos e fações em todo o mundo; um capricho, mais ou menos conveniente quando a braços com graves acusações internas, de Donald Trump, facilmente implica a execução, sem julgamento nem possibilidade de defesa, de uma alta patente militar no Médio Oriente; uma birra, sem qualquer outra justificação, para lá da alimentação do seu enorme ego, de Kim Jong-un faz tremer os poderosos exércitos vizinhos; uma fátua emitida por um dos aiatolas iranianos chega para condenar críticos religiosos, políticos, meros comentadores, humoristas e ilustradores, semeando o pânico nas sociedades livres que os albergam e obrigando as unidades de combate ao terrorismo a trabalho reforçado e empenhado. Vivemos um tempo em que se concentram em indivíduos ou grupos dominantes, poderes imensos sobre a natureza, sociedades e cidadãos. E, contudo, um organismo primário, com uma estrutura constitutiva muito simples, invisível a olho nu e mesmo aos microscópios óticos, um vírus do tipo corona, agora batizado por Covid 19, ridiculariza todos esses poderes e capacidades, espalhando o terror por todo o mundo. Pelo simples facto de existir e de se multiplicar, tal como acontece com todos os seres vivos, colocou as principais potências mundiais em estado de alerta, rindo-se dos seus sofisticados sistemas de segurança e de defesa: a China está em estado de sítio, a América está receosa como nunca e titubeia ao tentar repatriar alguns compatriotas “presos” num cruzeiro no oriente e a Rússia fechou a fronteira com o seu imperial vizinho do sul. Curiosamente, perante a incapacidade da tecnologia moderna e super-sofisticada da actualidade, os líderes tecnológicos, económicos e científicos recorrem a técnicas e metodologias medievais: isolam cidades, colocam doentes e suspeitos em quarentena, esperam a produção natural (ou artificial, sendo este o “único” toque de modernidade) de anticorpos capazes de lhe dar réplica efetiva e eficaz. Por isso a atenção redobrada nos que conseguem sobreviver à infeção.

É neste campo que surge um aspeto misterioso deste micro-organismo: a aparente imunidade das crianças a esta pandemia. Nos casos pretéritos tudo se passava ao contrário. Em muitas epidemias verificava-se haver um grupo etário, que não era afetado pelos agentes patogénicos. A característica comum desse grupo era ter mais do que uma determinada idade. Isso tem uma explicação

científica: em determinada altura terá havido um surto de doença causado por um vírus da mesma família e as pessoas que, tendo sido infetadas e lhe sobreviveram, por ação das defesas naturais ou por causa de vacinação a que tenham sido sujeitas, acabaram por adquirir a imunidade que depois lhes servia para uma luta eficaz ao novo agente.

Inexplicavelmente, agora, acontece o contrário. São os humanos situados abaixo de uma determinada faixa que estão a ser preservados da infeção. Não se conhece justificação lógica para isso. Há de ser encontrada, assim esperamos, pois não pode ser por simples “capricho” do molestador microscópico oriental. Para já é apenas mais uma característica misteriosa deste estranho e mortífero vírus!

 

A Nova Guerra Mundial

A guerra, a fome e a doença foram, desde os primórdios da história humana, as maiores ameaças à sobrevivência dos indivíduos e dos grupos onde se integravam. Foi a promessa de proteção contra elas, sobretudo a primeira que conferiu aos líderes históricos, o poder, reconhecido pelos seus pares.

A troco da segurança, a comunidade prestava vassalagem e pagava o respetivo trubuto ao chefe militar. Este mandou construir fortalezas para se proteger dos atacantes e ali dar igualmente, abrigo aos seus protegidos. A estratégia, tendo evoluído, ao longo dos séculos manteve, no essencial a estrutura consagrada e estruturada por Sun Tzu, no século IV AC no tratado “A Arte da Guerra” que, com mais ou menos variantes passava sempre pelo confronto direto com o agressor/invasor. Por muito importante que fosse a conquista a defesa foi sempre a principal preocupação pois era dela e da sua garantia que dependia, em última análise, a sustentabilidade dos exércitos. A proteção passou inicialmente pela construção de paliçadas, muralhas, cidades fortificadas, navios couraçados, fronteiras eletrificadas, escudos de defesa, antí-mísseis e... estamos no dealbar da guerra cibernética. Recentemente um general iraniano foi morto por um drone teleguiado. Contudo, a principal guerra, a vital batalha defensiva trava-se no ciberespaço, nos bunkers tecnológicos das Agências Nacionais de Informação. As guerras mundiais deixaram de acontecer, até agora, não pela diminuição dos equipamentos bélicos, não pela menorização dos exércitos e muito menos pela índole pacifista dos generais. Não há mais guerras à escala planetária porque, diariamente, constantemente, estão a ser monitorizados, vigiados, anulados e eliminados, preventivamente milhares de agentes bélicos e das suas continuadas ações.

O mesmo se passou com a saúde. Os combates às doenças têm, tal como outras atividades humanas, seguido caminhos paralelos aos da atividade marcial. O ataque aos agentes patogénicos, dificultado pela sua característica microscópica, dando-lhe por isso uma vantagem natural superior à dos exércitos tradicionais. As pandemias (guerras mundiais desta espécie) eram combatidas com quarentenas, isolamento de cidades, bandeiras negras demarcadoras e refúgio em zonas “limpas”. A evolução veio com o reconhecimento individual e científico do inimigo e com o uso da arma letal: os antibióticos; e muitas medidas preventivas: as vacinas. Contudo, ao contrário da outra, que nos últimos tempos se foca em eliminações cirúrgicas dos inimigos mais poderosos e mais perigosos, o uso maciço de antibióticos dedicou-se a eliminações indiscriminadas de todos os agentes patogénicos, logo, abatendo de imediato, os mais frágeis. Os que resistiram (cumprindo uma quota estatística, mesmo que pequena) foram sem dúvida, os mais fortes resultando portanto num reforço exponencial do inimigo! Por outro lado a globalização veio eliminar barreiras proporcionando viagens universais e gratuitas: os vírus não têm passaportes nem pagam bilhetes. E, ao contrário dos exércitos modernos, são democráticos: não escolhem as suas vítimas. Para complicar não reconhecem nem se detêm perante fronteiras, bunkers ou outros “esconderijos”. As poderosas lideranças dos tempos modernos não atemorizam os microscópicos vírus e bactérias que evoluem, continuamente, se reproduzem eficazmente e se disseminam rapidamente. Os custos em vidas e em recursos económicos e financeiros crescem exponencialmente e só tenderão a agudizar-se.

Tal como na guerra clássica, é necessário mudar radicalmente, o paradigma. Mais do que a proteção das pessoas que os mantêm, o que os ricos e poderosos têm em mãos, é a sua própria proteção. E, perante os riscos da ação curativa e da despesa associada ao combate às crescentes e frequentes pandemias, só se antevê uma atuação consequente e racional – apostar tudo na prevenção e no combate precoce. Para isso só se antevê uma solução: a implementação do Serviço Mundial de Saúde, eficaz, global, acessível e gratuito.

 

Mi bisabuelo vos saluda!

Ernesto Rodrigues publicou mais um livro. Trata-se de uma edição do CLEPUL, dirigido até há pouco tempo, pelo escritor de Torre de D. Chama – Mirandela. “LITERATURA EUROPEIA E DAS AMÉRICAS” traz-nos o olhar crítico do ensaísta sobre vários dos principais escritores mais recentes dos lados de cá e de lá do Atlântico. Recebi um exemplar diretamente das mãos do autor e não resisti – comecei de imediato a folheá-lo, agradado com as várias referências que iam saltando do interior das páginas à medida que as ia desfolhando fossem europeus (Sartre, Dino de Buzzati) ou latino-americanos (Vargas Llosa, Machado de Assis, Drummond de Andrade e Jorge Amado). E, claro o grande Jorge Luís Borges cujo texto li, de uma assentada, ao serão do mesmo dia em que recebi a obra deste meu velho amigo. Antes, tínhamos tido a oportunidade de relembrar os cento e vinte anos do seu nascimento, cumpridos a 24 de agosto do ano findo, sem que tal tivesse sido motivo para a merecida homenagem, na terra de onde, segundo o próprio, partiu no final do século XVIII, o seu bisavô Francisco Borges em direção à América do Sul.

Ernesto Rodrigues dedica-lhe um dos textos mais extensos e completos. Analisa não só a obra do autor argentino mas também vários ensaios entretanto publicados sobre ele, bem como alguns aspetos da sua vida, nomeadamente, as suas vindas a Portugal, com especial destaque para a de 1984, presenciada pelo mirandelense, tendo sido visitado por uma delegação de moncorvenses que lhe levou o título de Cidadão Honorário de Torre de Moncorvo e a quem terá dito a famosa frase «Mi bisabuelo vos saluda!»

Entre algumas “revelações” ressalta uma expressão usada pelo ficcionista sobre o maior romancista português «yo no sé português y he leído a Eça de Queiroz. Cuando no entendia una frase la leia en voz alta y el sonido me revelava su sentido.» Desconhecia completamente esta afirmação borgiana, contudo foi exatamente o que eu disse ao saudoso Amadeu Ferreira quando me defrontei com dificuldades para compreender os seus escritos, em mirandês.

Ernesto evidencia algumas das características relevantes de quem António Alçada Baptista disse ser (na altura) «o maior escritor vivo», nomeadamente e a par com a sua cultura enciclopédica, a sua atração pelo infinito, consagrada na incomensurável Biblioteca de Babel, concentrado no Aleph, no Livro Infinito e, mais ainda, no vocábulo sem medida mas de um poder tal que, uma vez pronunciado faz desaparecer o objeto (um palácio) que descreve e é, ao mesmo tempo, uma sentença de morte para quem o pronuncia, pois com essa expressão esgota todas as razões possíveis, para viver!

Revela-nos ainda um estudioso das ciências exatas, explorando alguns paradoxos matemáticos, nomeada e curiosamente o uso do conceito de infinito invocando Zenão no seu célebre Paradoxo de Aquiles e da Tartaruga.

Surpreendeu-me a revelação de uma afirmação feita no Salão Palmela do Hotel Estoril-Sol em 1980 «Os superlativos são uma forma de terrorismo cultural que se prestam à polémica».

A Alma e a Linha

Num artigo de opinião, no jornal Público, Rui Tavares lembra um episódio de 1932, na Alemanha pré-hitleriana. Klaus Mann (escritor, filho do célebre Thomas Mann) ouvindo uma conversa de Adolf Hitler, num café em Munique, enquanto se empanturrava de bolos, autocensurou-se pela forma como combatera o nazismo nascente. Um homenzinho, inculto, rodeado de acríticos admiradores e com um discurso simplista e baseado em falsidades não podia representar qualquer perigo na sua ambição de liderar a poderosa, culta e nobre Alemanha. Baixou a guarda. Combatê-lo seria conferir-lhe a importância que não tinha. Pouco tempo depois penalizava-se pelo seu flagrante erro de avaliação.

Quem não se lembra da forma, quase anedótica como há pouco mais de cinco anos, era comentada por vários dirigentes democratas (Barack Obama incluído) a possível (pouco provável, diziam) candidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Rapidamente se viram forçados, pelas circunstâncias, a reconhecer flagrante falha de apreciação.

Na sua edição de fim de semana, o Expresso traz entrevistas com dois dos candidatos à liderança do PSD. Pinto Luz, obtida a visibilidade, vem colar-se, mesmo que afirmando o contrário, às teses estratégicas de Montenegro. Para marcarem a diferença, relativamente a Rio, traçam ambos uma linha vermelha à esquerda. A afirmação do PSD passa pela alternativa absoluta e sem qualquer compromisso com o PS. Só assim, juram, podem chegar ao poder. Obtendo, obviamente, do eleitorado a confiança de uma maioria absoluta. O problema é que a realidade não acompanha as estratégias gizadas nos gabinetes sobretudo para convencer militantes, tradicionalmente mais radicais que os eleitores comuns. Contudo, mesmo as eleições internas não se vencem só com o apoio dos mais inflamados apoiantes. E para convencer os mais moderados é necessário trazer alguma razoabilidade ao discurso. Sendo as maiorias absolutas, cada vez mais raras e, tendencialmente, inacessíveis a um único partido, é preciso dizer onde se vão buscar os apoios necessários para a chegada à cadeira de S. Bento. Traçada uma fronteira inultrapassável à esquerda, só resta o espetro da direita para ir pescar à linha ou em aliança. De forma, quase ingénua, enunciam os pontos comuns com o neófito mas perigoso Chega! Para manter a lógica de diferenciação (não só do PS, mas sobretudo do atual presidente social-democrata) não hesitam em vender a alma ao mais radical dos populismos. Para não serem “muletas” dos socialistas, vão procurar quem, supostamente, se contentará em servir-lhe de “muletas” a eles!

Tal “ingenuidade” é quase confrangedora. O objetivo de todos os partidos, sem exceção, é alcançar ao poder, sozinhos, se possível, liderando, se for necessário ou servindo um outro partido maior se não houver outra alternativa. Os pretendentes à cadeira de São Caetano não podem alegar desconhecimento sobre a ambição, clara e explicitamente enunciada pela liderança de Assunção Cristas, ouvida e registada num passado bem próximo, do recente parceiro de coligação.

Obviamente que a defesa de propostas diversas e alternativas, favorece e fortalece a Democracia. Mas as linhas vermelhas, a existirem, devem situar-se nos extremos, nunca ao centro.