NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Rodrigues Ferreira (c. 1692 – depois de 1749)
Era um dos 12 filhos (5 rapazes e 7 raparigas) de Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues. O irmão Gabriel casou na família de Luísa Bernarda, a matriarca dos Raba; a irmã Luísa com o Dr. Gabriel Ledesma; a Isabel com Tomé de Leão e a Maria foi casar em Vinhais com Diogo Ferreira. (1) Ligavam-se assim os Ferreira a uma boa parte da “nação marrana” de Bragança.
E “entre as pessoas da nação, Francisco Ferreira era o melhor reputado” – no dizer do Fidalgo Francisco Xavier de Sousa. O próprio assumia essa condição destacada, provando que tinha amizade com gente da maior nobreza do Reino, como o Conde de S. Vicente ou o trinchante mor do reino D. José de Vasconcelos e Sousa. E até “ia pousar a casa de António de Brito Távora”, pai do inquisidor Manuel Varejão de Távora.
Terá nascido em Bragança, por 1692. E contava 22 anos quando foi preso pela inquisição de Coimbra, em Novembro de 1714. (2) Saiu em 28 de julho de 1718, não sendo presente a qualquer auto de fé. Aliás, esses foram anos terríveis para os marranos de Bragança que, manifestamente entupiram aquele tribunal. Disso nos dá notícia o próprio Francisco Ferreira:
- Naquele tempo foram presos e apresentados todos os cristãos-novos de Bragança.
Francisco e os irmãos dedicavam-se ao fabrico e comércio de sedas. E ele seria o mais expedito e já então acrescentava ao “curriculum” de “torcedor de seda” o de “homem de negócio”. E a sua vida desenrolava-se entre Bragança e Lisboa conduzindo cargas de seda que ali vendia.
António Dias Pereira, (3) um mercador brigantino que às vezes o acompanhava diria que ele “foi sempre homem de negócios graves (…) e pela sua verdade e inteireza adquiriu cabedais grossos”.
Terreno propício para investidores de “capitais grossos” era a arrematação de rendas. E esse foi o caminho seguido pelo rendeiro e contratador Francisco Ferreira que "adquiriu grande crédito e cabedal, com o que se fez conhecido em todo este reino e foi em todos os anos até 1745 à cidade de Lisboa, aonde não só se achava nas arrematações das comendas vagas das três ordens militares, mas ainda em vários tribunais como são a Junta dos 3 Estados, a Casa de Bragança, o Conselho da Fazenda e casas de fidalgos particulares aonde arrematavam publicamente vários negócios". Citemos alguns dos negócios que Francisco trouxe arrematados:
As comendas de S. Miguel de Poiares e a de Algoso, que eram da Ordem de Malta.
A comenda de Santo André de Ousilhão, da Ordem de Cristo.
A comenda de Santalha, que era do Conde de Salzedas e a de Santa Marinha da Carregosa, do tenente-coronel Francisco José Sarmento.
A comenda de Torgueda e os foros de Margaride que eram dos religiosos do convento de Belém.
O assento (fornecimento de géneros às tropas) de Trás-os-Montes, certamente o contrato mais vultuoso.
Sendo preso segunda vez pela inquisição, em 20 de Abril de 1747, (4) Francisco Ferreira inventariou os seguintes bens:
Umas casas na Rua Direita da cidade de Bragança, na esquina da Travessa do Corpo da Guarda, que valiam 300 mil réis.
Na mesma Travessa outras duas casas avaliadas em 200 mil réis.
Mais 2 moradas de casas junto à cadeia que valeriam 100 mil réis.
Uma casa na Rua dos Oleiros arrendada por 8.500 réis/ano.
Outra casa, pequena, na Rua do Paço, arrendada por 4.000 réis/ano.
Uma casa, um celeiro e uma adega, na aldeia de Edral que valeriam 200 mil réis.
Na aldeia de Santalha outra casa avaliada em 100 mil réis.
No sítio da Candaira, Bragança, era proprietário de uma vinha que valia 200 mil réis.
Na aldeia de Sobreiró de Baixo tinha metade de um alambique de aguardente e respetivas instalações, valendo a sua parte 240 mil réis.
Devemos esclarecer que nessa altura eram já falecidos os 3 irmãos que ficaram solteiros e ele vivia com duas irmãs igualmente solteiras, tal como ele próprio. Do ponto de vista formal, aqueles bens pertenceriam aos três, o que até convinha, no caso de a inquisição ordenar o seu confisco.
Falámos no assento de Trás-os-Montes. Vejamos, a propósito a quantidade de cereal que lhe foi arrolado à data da prisão:
Em Ousilhão tinha 4 000 alqueires; em Santalha 2 500; em Vimioso 1 500; em casa de Pascoal Ramos 350; na de José de Sá 300.
Não falaremos de débitos e créditos, que eram muitos e avultados, naturalmente, nem dos muitos contos de réis envolvidos nos contratos. Diremos que ele tinha ainda outros diversos negócios, como a exportação de vinhos para o Norte da Europa.
Que culpas lhe imputaram para o prender? Fundamentalmente duas: participar em “reuniões de sinagoga” em casa de seu cunhado Ledesma e fazer enterrar seus dois irmãos amortalhados à maneira judaica e em terra virgem, na igreja de S. Vicente.
Foram muitas e gradas as testemunhas de acusação e muitas mais e de superior categoria as testemunhas de defesa: cavaleiros fidalgos professos da Ordem de Cristo, quantidade de padres, familiares do santo ofício… o próprio comissário da inquisição em Bragança, condutor das averiguações para o processo, deixaria nele o seu próprio testemunho:
- Do réu Francisco Rodrigues Ferreira conheço por falar com ele muitas vezes, assim nesta cidade como em Lisboa e outras partes e nunca lhe vi fazer coisa alguma que tivesse laivos de cerimónia judaica.
Francisco Ferreira defendeu-se dizendo que estava fora de Bragança quando dos funerais referidos pelo que não tinha qualquer responsabilidade nas mortalhas e nos enterros. Além de que, no falado enterro de um dos irmãos estiveram presentes 7 padres e 2 comissários do santo ofício e nenhum deles viu qualquer cerimónia judaica. E desafiou os inquisidores a que mandassem abrir a sepultura. Se o seu irmão foi a enterrar “com uma granacha de seda com bocais de veludo a modo de desembargador”, então a seda devia estar lá intacta, pois se não corrompe facilmente…
Porém, o mais significativo do processo inquisitorial de Francisco Ferreira, como aliás, de outros cristãos-novos brigantinos da mesma época, é a luta política e as questões sociais que abalaram a cidade de Bragança naqueles anos.
Nos anos de 1730 o rei D. João V instituiu o monopólio da venda do sabão “industrial”. Em Trás-os-Montes o monopólio foi entregue a João Evangelista de Morais Sarmento e o ramo da comarca de Bragança ficou em mãos de uma sociedade constituída por Francisco Xavier da Veiga Cabral, governador de armas da província de Trás-os-Montes, Lázaro Jorge de Figueiredo Sarmento, alcaide-mor de Bragança e Roque de Sousa Pimentel, comissário regional da inquisição – todos três ligados por estreitos laços familiares.
Tal monopólio fazia aumentar os preços e prejudicava principalmente os fabricantes de seda, cristãos-novos na grande maioria. Estes promoveram muitas iniciativas tentando impedir a instalação de tal monopólio. Uma delas foi uma grande manifestação em 5 de Maio de 1731 a que aderiu quase todo o povo da cidade, (5) inclusivamente as freiras dos dois conventos que seguiram na cabeça da manifestação. Os manifestantes só pararam quando atiraram pelas muralhas o sabão do monopólio que estava armazenado no castelo.
Outra iniciativa foi uma exposição enviada à Corte e que terá sido escrita por André Lopes dos Santos, irmão da “matriarca” dos Raba. Para além do preço, queixavam-se os fabricantes de seda que o sabão do monopólio não era tão bom como o sabão que eles usavam, importado de Castela. E conseguirem que o “governo” de Lisboa se decidisse por uma prova real, lavando-se a seda com os dois tipos de sabão, na presença de um desembargador da Relação que julgaria o caso e cada uma das partes nomearia o seu representante. A experiência foi feita. Os fabricantes de seda venceram a causa. E o homem que os representou na foi exatamente o nosso biografado.
Escusado será dizer que os homens da nobreza e da governança da terra não ficaram parados, antes mudaram de tática e escolheram o tribunal da inquisição como palco de luta política, para ele canalizando quantidade de denúncias de judaísmo. E assim se explica que, nos anos que se seguiram, entre 1747 e 1752, pelo menos 128 marranos de Bragança fossem arrastados, em vagas sucessivas para as cadeias da inquisição. Como aconteceu com Francisco Rodrigues Ferreira.
NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 6977, 1699. Diogo Ferreira faleceu no cárcere.
2-IDEM, pº 8558, de Francisco Rodrigues Ferreira.
3-IDEM, Coimbra, pº 6304, de 1716: pº 6304-1, de 1743, de António Dias Pereira.
4-IDEM, inq. Lisboa, pº 8558-1.
5-ALVES, Francisco Manuel – Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança, tomo II, p. 258.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães