Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 18 Francisco Santiago e Castro, fabricante de meias
Tal como hoje os farmacêuticos, também os boticários gozavam de bastante prestígio (e proveito) na sociedade seiscentista. Aliás, a sua formação profissional era bastante exigente e prolongava-se por 4 anos. Foi o caso de Francisco Santiago e Castro, filho de outro boticário e com vários profissionais do mesmo ofício na família. A sua formação foi feita em Bragança, com o mestre Manuel Cardoso e teve Manuel da Costa Miranda como companheiro na aprendizagem e em cerimónias judaicas, como Francisco confessaria mais tarde:
- No decurso de 4 anos em que assistiram na dita casa de seu mestre Manuel Cardoso, boticário, fizeram alguns jejuns judaicos de segundas-feiras. (1)
No entanto, Francisco Santiago trocou esta sua profissão pela de fabricante de meias, (2) certamente porque era mais rentável, apesar de exigir nova aprendizagem com um mestre tecelão. E como também vendia as meias de seda que fabricava, juntamente com outros produtos que apareciam, ele era ainda apresentado como tratante. E certamente que o trato fez dele um homem de capital, o que lhe permitiu ascender à classe dos rendeiros e contratadores.
Mas voltemos atrás, aos tempos da juventude quando Francisco começou a aprender a arte e começou também a aprender as coisas da lei de Moisés. Terá sido a sua tia Filipa de Santiago que o doutrinou e lhe ensinou muitas orações, nomeadamente a que segue:
- Alto Deus e bom Senhor Forte Deus de Israel Tu que ouviste a Daniel Ouve a minha oração. Tu que nas grandes alturas Ouves a mim pecador Que te chamo das baixuras. Tu que fizeste o céu e a terra Me fizeste e me criaste, Permite Senhor, salvar a mi nha alma
E perdoa os meus pecados.
Ámen. (3)
Porém “o cântico dos 3 jovens que saíram ilesos do forno da Babilónia” aprendeu-o lendo por “um livro de horas”. Embora seja menos concreta, esta informação mostra que entre a “nação de Bragança” circulavam livros proibidos. Aliás, também ele nos informa que “em muitas ocasiões encontrou os ditos seus primos (Fernando Rodrigues Damas, médico e Francisco de Novais, advogado) lendo pela Escritura Sagrada”. E também contou aos inquisidores que Jerónimo Rodrigues, ourives da prata lhe deu “um livro a que chama Ramalhete de Flores”.
Por 1695, contando uns 27 anos, casou em Bragança, com Isabel de Morais, filha de Francisco Novais da Costa, de quem se falou no texto anterior. E então começou trabalhando com seu cunhado Luís Novais na cobrança de rendas que a comenda de Leça tinha no lugar da Granja, termo de Vila Real. No ano seguinte encontramo-lo na aldeia de Edral, termo de Vinhais, judaizando em casa de Eliseu Pimentel, com um filho deste, que depois se ausentou para fora do reino. Narrando a cena, diria Francisco:
- Estiveram juntos, em pé, rezando cada um por si ao Senhor do Céu, para o qual céu estiveram fazendo cortesias com o pé para trás. (4)
E encontramo-lo também a morar em Nuzedo, empenhado na cobrança das rendas que ali tinha o comendador Conde de Vale dos Reis, em rede familiar de negócios partilhada com seu sogro e cunhados. Desse tempo, Francisco recordaria uma cena, cheia de lirismo e religiosidade. Vejam:
- Há 8 anos, indo de Nuzedo, comenda do Conde de Vale dos Reis, para Bragança, na estrada entre o lugar de Quintela e Soeira, termo da vila de Vinhais, em companhia de sua cunhada Mécia de Morais, solteira, filha de Francisco de Novais, rendeiro em Torres Novas, e na estrada foram rezando orações judaicas… (5)
E recordaria outra ocasião, em que foi à feira dos Chãos, junto à vila de Chacim, em companhia de João da Costa Vila Real, pormenorizando:
- E indo juntos, foram repetindo as orações judaicas que dito tem em suas confissões, e no caminho se apearam a oferecê-las ao Deus do Céu. (6)
Estas seriam rendas de pouca monta e Francisco queria voar mais alto. Deixou a casa de Nuzedo e mudou-se com a família para Lisboa, onde os contratos geralmente se celebravam. Morava em Lisboa mas andava quase em permanência, “de casa movida”.
Assim, “o réu assistiu no celeiro de Alviobeira nos meses em que o pão se recolhe e entrega, pela maior parte, costuma ser do fim de Julho até princípio de Novembro” – conforme testemunho do “olheiro e escrivão do lagar d´El-Rei e dos lagares dos Montes” em Tomar, Baltasar Freire Brandão, que acrescentou:
- Conhecera muito bem Francisco Santiago que fora sócio, com os sobreditos, nas rendas do celeiro e tulha (…) o mesmo viera a esta vila no mês de Novembro do ano de 1700 alguns dias, nos quais fizera o trespasse da dita tulha, com os mais sócios a António Rodrigues Gameiro, desta vila (…) e também nos meses e Janeiro, Fevereiro e Março de 1701, vinha o réu a esta vila tratar das conduções dos azeites e pousava nas estalagens de Miguel do Porto e Manuel dos Santos (…) e também morou nesta vila em umas casas de aluguer, na Rua Nova… (7) A recolher e vender pão do celeiro de Alviobeira e da comenda da Póvoa de Além Ribeira, a assistir à entrega da azeitona nas tulhas do lagar e ao fabrico do azeite e cobrança das décimas nos lagares de Tomar, a administrar as rendas do almoxarifado, mas também nas vilas de Ourém e Torres Novas, como diria Manuel Dias Pereira, que, juntamente com seu pai, foram os principais denunciantes de Francisco Santiago:
- Há 2 anos, se achou com (…) Francisco Santiago, rendeiro, sócio das rendas deste arcebispado, que tem sua mulher e casa na vila de Ourém, com filhos e ao presente ficava em Torres Novas aonde veio assistir às vindimas, como rendeiro das terças desta vila. (8)
Vimos Francisco a cobrar rendas para comendadores em Vinhais; em Tomar para o rei; em Ourém era “rendeiro das terças do cabido de Lisboa e dos padres da Companhia que têm nesta Colegiada” – segundo informação do Dr. António de Matos, chantre da Colegiada de Ourém. Ou seja: a terça parte dos impostos (décima) que se pagavam no concelho de Ourém, era para os cónegos da Sé de Lisboa e para os padres da Companhia de Jesus, que asseguravam o culto na igreja matriz da vila. Por vezes os rendeiros subarrendavam a cobrança das rendas, usando critérios de natureza geográfica (os ramos de cima ou de baixo, daqui e dalém…) ou de produções (a farinha dos moinhos, o vinho das tabernas, os salpicões e presuntos, as pedras de linho…). Seria o caso, como resulta do inventário que fez dos seus bens quando o prenderam, perante os inquisidores:
- Ele declarante tomou as miúças da Colegiada de Ourém aos cónegos, em 310 mil réis, dos quais lhe é devedor e lhos deve pagar por dia de S. João próximo futuro; a qual renda arrendou às vintenas a 10 ou 12 pessoas (…) e que Francisco, moleiro do moinho da Surieira lhe é devedor de 28 mil réis procedidos das miúças e rendas (…) do moinho que traz; e que Guilherme Luís, alfaiate da dita vila de Ourém, lhe é devedor de 6 500 réis de outra vintena… (9) Terminamos com mais uma pequena oração que Francisco costumava rezar: - Não creio em pau nem pedra, Nem em coisa desta terra, Senão na misericórdia do Senhor Que fez o céu e a terra.
Notas:
1-Inq. Lisboa, pº 2003, de Francisco Santiago e Castro, p. 222.
2-De referir o elevado número de fabricantes de meias que naquela altura surgiram, entre os homens da nação de Bragança emigrada em Lisboa.
3-Pº 2003, p. 210.
4-Idem, p. 215.
5-Idem, p. 211.
6-Idem, p. 248.
7-Idem, pp. 158-160.
8-Idem, p. 114-15.
9-Idem, pp. 39-40