António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

PUB.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 18 Francisco Santiago e Castro, fabricante de meias

Tal como hoje os farmacêuticos, também os boticários gozavam de bastante prestígio (e proveito) na sociedade seiscentista. Aliás, a sua formação profissional era bastante exigente e prolongava-se por 4 anos. Foi o caso de Francisco Santiago e Castro, filho de outro boticário e com vários profissionais do mesmo ofício na família. A sua formação foi feita em Bragança, com o mestre Manuel Cardoso e teve Manuel da Costa Miranda como companheiro na aprendizagem e em cerimónias judaicas, como Francisco confessaria mais tarde:

- No decurso de 4 anos em que assistiram na dita casa de seu mestre Manuel Cardoso, boticário, fizeram alguns jejuns judaicos de segundas-feiras. (1)

No entanto, Francisco Santiago trocou esta sua profissão pela de fabricante de meias, (2) certamente porque era mais rentável, apesar de exigir nova aprendizagem com um mestre tecelão. E como também vendia as meias de seda que fabricava, juntamente com outros produtos que apareciam, ele era ainda apresentado como tratante. E certamente que o trato fez dele um homem de capital, o que lhe permitiu ascender à classe dos rendeiros e contratadores.

Mas voltemos atrás, aos tempos da juventude quando Francisco começou a aprender a arte e começou também a aprender as coisas da lei de Moisés. Terá sido a sua tia Filipa de Santiago que o doutrinou e lhe ensinou muitas orações, nomeadamente a que segue:

- Alto Deus e bom Senhor Forte Deus de Israel Tu que ouviste a Daniel Ouve a minha oração. Tu que nas grandes alturas Ouves a mim pecador Que te chamo das baixuras. Tu que fizeste o céu e a terra Me fizeste e me criaste, Permite Senhor, salvar a mi nha alma

E perdoa os meus pecados.

Ámen. (3)

Porém “o cântico dos 3 jovens que saíram ilesos do forno da Babilónia” aprendeu-o lendo por “um livro de horas”. Embora seja menos concreta, esta informação mostra que entre a “nação de Bragança” circulavam livros proibidos. Aliás, também ele nos informa que “em muitas ocasiões encontrou os ditos seus primos (Fernando Rodrigues Damas, médico e Francisco de Novais, advogado) lendo pela Escritura Sagrada”. E também contou aos inquisidores que Jerónimo Rodrigues, ourives da prata lhe deu “um livro a que chama Ramalhete de Flores”.

Por 1695, contando uns 27 anos, casou em Bragança, com Isabel de Morais, filha de Francisco Novais da Costa, de quem se falou no texto anterior. E então começou trabalhando com seu cunhado Luís Novais na cobrança de rendas que a comenda de Leça tinha no lugar da Granja, termo de Vila Real. No ano seguinte encontramo-lo na aldeia de Edral, termo de Vinhais, judaizando em casa de Eliseu Pimentel, com um filho deste, que depois se ausentou para fora do reino. Narrando a cena, diria Francisco:

- Estiveram juntos, em pé, rezando cada um por si ao Senhor do Céu, para o qual céu estiveram fazendo cortesias com o pé para trás. (4)

E encontramo-lo também a morar em Nuzedo, empenhado na cobrança das rendas que ali tinha o comendador Conde de Vale dos Reis, em rede familiar de negócios partilhada com seu sogro e cunhados. Desse tempo, Francisco recordaria uma cena, cheia de lirismo e religiosidade. Vejam:

- Há 8 anos, indo de Nuzedo, comenda do Conde de Vale dos Reis, para Bragança, na estrada entre o lugar de Quintela e Soeira, termo da vila de Vinhais, em companhia de sua cunhada Mécia de Morais, solteira, filha de Francisco de Novais, rendeiro em Torres Novas, e na estrada foram rezando orações judaicas… (5)

E recordaria outra ocasião, em que foi à feira dos Chãos, junto à vila de Chacim, em companhia de João da Costa Vila Real, pormenorizando:

- E indo juntos, foram repetindo as orações judaicas que dito tem em suas confissões, e no caminho se apearam a oferecê-las ao Deus do Céu. (6)

Estas seriam rendas de pouca monta e Francisco queria voar mais alto. Deixou a casa de Nuzedo e mudou-se com a família para Lisboa, onde os contratos geralmente se celebravam. Morava em Lisboa mas andava quase em permanência, “de casa movida”.

Assim, “o réu assistiu no celeiro de Alviobeira nos meses em que o pão se recolhe e entrega, pela maior parte, costuma ser do fim de Julho até princípio de Novembro” – conforme testemunho do “olheiro e escrivão do lagar d´El-Rei e dos lagares dos Montes” em Tomar, Baltasar Freire Brandão, que acrescentou:

- Conhecera muito bem Francisco Santiago que fora sócio, com os sobreditos, nas rendas do celeiro e tulha (…) o mesmo viera a esta vila no mês de Novembro do ano de 1700 alguns dias, nos quais fizera o trespasse da dita tulha, com os mais sócios a António Rodrigues Gameiro, desta vila (…) e também nos meses e Janeiro, Fevereiro e Março de 1701, vinha o réu a esta vila tratar das conduções dos azeites e pousava nas estalagens de Miguel do Porto e Manuel dos Santos (…) e também morou nesta vila em umas casas de aluguer, na Rua Nova… (7) A recolher e vender pão do celeiro de Alviobeira e da comenda da Póvoa de Além Ribeira, a assistir à entrega da azeitona nas tulhas do lagar e ao fabrico do azeite e cobrança das décimas nos lagares de Tomar, a administrar as rendas do almoxarifado, mas também nas vilas de Ourém e Torres Novas, como diria Manuel Dias Pereira, que, juntamente com seu pai, foram os principais denunciantes de Francisco Santiago:

- Há 2 anos, se achou com (…) Francisco Santiago, rendeiro, sócio das rendas deste arcebispado, que tem sua mulher e casa na vila de Ourém, com filhos e ao presente ficava em Torres Novas aonde veio assistir às vindimas, como rendeiro das terças desta vila. (8)

Vimos Francisco a cobrar rendas para comendadores em Vinhais; em Tomar para o rei; em Ourém era “rendeiro das terças do cabido de Lisboa e dos padres da Companhia que têm nesta Colegiada” – segundo informação do Dr. António de Matos, chantre da Colegiada de Ourém. Ou seja: a terça parte dos impostos (décima) que se pagavam no concelho de Ourém, era para os cónegos da Sé de Lisboa e para os padres da Companhia de Jesus, que asseguravam o culto na igreja matriz da vila. Por vezes os rendeiros subarrendavam a cobrança das rendas, usando critérios de natureza geográfica (os ramos de cima ou de baixo, daqui e dalém…) ou de produções (a farinha dos moinhos, o vinho das tabernas, os salpicões e presuntos, as pedras de linho…). Seria o caso, como resulta do inventário que fez dos seus bens quando o prenderam, perante os inquisidores:

- Ele declarante tomou as miúças da Colegiada de Ourém aos cónegos, em 310 mil réis, dos quais lhe é devedor e lhos deve pagar por dia de S. João próximo futuro; a qual renda arrendou às vintenas a 10 ou 12 pessoas (…) e que Francisco, moleiro do moinho da Surieira lhe é devedor de 28 mil réis procedidos das miúças e rendas (…) do moinho que traz; e que Guilherme Luís, alfaiate da dita vila de Ourém, lhe é devedor de 6 500 réis de outra vintena… (9) Terminamos com mais uma pequena oração que Francisco costumava rezar: - Não creio em pau nem pedra, Nem em coisa desta terra, Senão na misericórdia do Senhor Que fez o céu e a terra.

Notas:

1-Inq. Lisboa, pº 2003, de Francisco Santiago e Castro, p. 222.

2-De referir o elevado número de fabricantes de meias que naquela altura surgiram, entre os homens da nação de Bragança emigrada em Lisboa.

3-Pº 2003, p. 210.

4-Idem, p. 215.

5-Idem, p. 211.

6-Idem, p. 248.

7-Idem, pp. 158-160.

8-Idem, p. 114-15.

9-Idem, pp. 39-40

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 17 Francisco Novais da Costa, tratante e rendeiro

Ao findar do século de 1600, assistiu-se a uma verdadeira debandada da “nação de Bragança”, destacando-se Lisboa, como destino procurado. Foi também o caminho seguido por Francisco Novais da Costa. Contava uns 46 anos quando, “pela Páscoa do Espírito Santo de 1697”, abalou de Bragança com a família, sendo a filha mais nova de poucos meses ainda. Em Lisboa estabeleceram morada na Rua das Arcas, “junto das Comédias”, conforme se lê no processo de Manuel Lopes, natural de Torre de Moncorvo e que andou por Barcelona, Livorno, Sevilha e outras terras da diáspora e nos deixou o seguinte retrato de F. Novais:

- Será de 35 a 40 anos alto gordo cara larga moreno olhos negros e sobrancelhas bastante serradas entre brancas cabelo curto e liso.(1)

Francisco tinha larga experiência de trato comercial, não só na região de Trás-os-Montes mas também por terras de Castela. Porém, apesar da experiência e dos próprios recursos económicos, Francisco procurou certamente parcerias, como a de Elizeu Pimentel. E esta parceria traduzir-se-ia na arrematação da cobrança de rendas como as da comenda de Poiares, junto a Lamego. E traduzir-se-ia também no casamento de Luís de Novais, seu filho, com Maria Inácia, filha de Eliseu.

Mas se uma e outra situação facilmente se explicam, como havemos de interpretar o inventário de peças de ouro e prata que ele fez, quando foi preso pela inquisição, dizendo:

- As peças de ouro e prata que tem estão empenhadas na mão de Bento Rodrigues da Maia, mercador de retrós, na Rua Nova, na quantia de 220 mil réis, como constará da certidão do contrato que o mesmo tem em seu poder. (…) E que na dita quantia entram também três cordões de ouro que são de António Pimentel e um que é grande, de Eliseu Pimentel e um púcaro de prata, o que tudo pediu emprestado aos mesmos. (2)

Atente-se: pedir objetos de ouro emprestados para ir empenhar e levantar dinheiro em casa de um prestamista?! Não seria mais lógico pedir dinheiro? Sim, mas os Pimenteis também eram rendeiros e as necessidades obrigavam, por vezes a empenhar tudo o que se tinha e não tinha, para conseguir liquidez e ganhar os concursos. Naqueles tempos, a usura e os juros, eram prática apenas seguida pela gente da nação e condenada pela igreja católica. Hoje, existem os bancos para emprestar dinheiro às empresas, se bem que exijam também garantias e que o ouro continua sendo garantia universal, mesmo entre os bancos.

Voltando ao inventário, refira-se que o único bem de raiz apresentado por Francisco foi uma casa que herdou de seu pai, sita na rua de Santo António, intramuros de Bragança. De resto, apresentou dívidas e mais dívidas. E à cabeça dos credores, mais uma vez, aparece Eliseu Pimentel a quem ele devia 600 mil réis e com o qual tinha ajustado, por escrito, a forma de pagamento, com mercadorias que esperava receber do Rio de Janeiro, na frota que estava para chegar. (3)

Vimos já como Francisco Novais se tornou rendeiro da comenda de Poiares, em sociedade com Eliseu Pimentel. Processo diferente foi seguido em Torres Novas onde a cobrança das rendas estava adjudicada a António Gonçalves Drago, “que a largou a ele declarante” pelo valor de 533 mil réis.

 E se a cobrança das dívidas em Poiares ficou a cargo do genro de Francisco, estabelecido em Ourém, em Torres Novas estava o seu filho Luís de Novais, que para ali se transferiu e comprou pipas e tonéis para meter os vinhos das rendas e onde “pelo muito azeite que, diziam, havia pois lhe chegaram a oferecer 4 000 alqueires de azeite pela novidade”, esperavam ter bons lucros. E este é mais um exemplo de como a gente da nação trabalhava em redes familiares de negócios, devendo acrescentar que outro filho de Francisco, chamado Xavier, dirigia o estanco do tabaco em Penela. E já agora, veja-se mais uma dívida de Francisco Novais da Costa:

- Ele deve a Manuel Gomes Carvalho, morador ao Poço dos Negros, 6 barris de farinha, uns a 7, outros a 8 e 9 arrobas, que poderá importar em 35 ou 40 mil réis, porque ele declarante lhe havia de pagar a arroba a 850 e ele queria a 9 tostões. (4)

Este é o retrato possível do mundo empresarial de Francisco Novais, tanto quanto se colhe do seu processo na inquisição de Lisboa. Sobre a sua prisão, diremos que os seus grandes denunciantes foram João Dias Pereira, a mulher e o filho Pedro Dias Pereira, conhecidos em Lisboa com “os castelhanos” e que, vindo fugidos da inquisição de Espanha, se alojaram durante um mês em uma casa que Novais tinha arrendado para morada de uma filha que estava para casar. (5)

A propósito destes “castelhanos”, originários de Rebordelo e Lebução, tios de Manuel Lopes, atrás citado e sua ligação com Francisco Novais, o mesmo informador acrescenta:

- Francisco Novais (…) e sua mulher que não se recorda do nome nem apelido mas é prima segunda de Guiomar Lopes, mulher de João Dias Pereira, (…) eram também observantes da lei de Moisés, e por diferentes vezes se juntaram as ditas 3 famílias e na mesma casa, faziam de comer e beber e as mesmas cerimónias que tem expressadas em observância da lei de Moisés. (6)

Provavelmente a filha que então estava para casar era Mécia de Morais que depois casou com Pedro Álvares, homem de negócio e viveram em Cascais.

A esse tempo, dos 3 filhos e 4 filhas de Francisco Novais da Costa e Leonor Nunes sua mulher, apenas se encontrava casada a filha mais velha, Isabel de Morais e dela e de seu marido falaremos em próximo texto. Por agora voltemos à filha mais nova, Filipa Maria da Rosa que, pelo ano de 1720, foi casar com Luís Álvares Montarroio, uns 20 anos mais velho que ela, primo segundo de António José da Silva, o Judeu. A mãe deste era neta paterna de Miguel Cardoso e materna de Manuel Cardoso, seu irmão. Luís Álvares era neto materno de Inácio Cardoso, irmão dos anteriores. Esta família Cardoso, proprietária de um engenho de açúcar nas proximidades do Rio de Janeiro, era originária de Trás-os-Montes (Bragança e Torre de Moncorvo). Miguel Cardoso, o bisavô do Judeu, ocupou um cargo bem importante – o de administrador e tesoureiro da Companhia Geral de Comércio com o Brasil, no Rio de Janeiro. (7)

Informação: Acaba de ser editado mais um livro da nossa autoria, cuja capa e contracapa ilustram este texto.

NOTAS:

1-Inq. Lisboa, pº 630, de Manuel Lopes, p. 47.

2-Inq. Lisboa, pº 2101, de Francisco Novais da Costa, p. 9.

3-Embora não indique, certamente que os produtos que esperava receber do Brasil seriam açúcar e tabaco, comprados com o produto de tecidos que para lá tinha enviado, sendo Miguel Gonçalves Dortel o seu representante no Rio de Janeiro e Francisco Albuquerque, na cidade da Baía. Francisco Albuquerque, era natural de Bragança, irmão de Manuel de Albuquerque e foi denunciado como judaizante por Pero Nunes de Miranda, em 1732 – NOVINSKY, Anita, Rol dos Culpados, p. 37.

4-Pº 2101, p. 16.

5-ANDRADE e GUIMARÃES, Manuel Lopes um Judeu do tempo da Inquisição, in: Nordeste, nº 1226 e seguintes.

6-Pº 630, p. 45.

7-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós, Trasmontanos, Sefarditas e Marranos: Miguel Cardoso (n. Bragança, 1598), in Nordeste nº 1094, de 31.10.2017.

 

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 15 António de Santiago, tratante e rendeiro

No panorama económico de Bragança no século de 1700 a sericicultura apresenta-se como uma verdadeira indústria de ponta, extremamente rentável. Na montagem e gestão daquela indústria dominava a “gente da nação” que amealhava prata e ouro, em quantidades nunca vistas. Com ou sem ligação à seda, assistiu-se também ao florescer de uma outra indústria, também de ponta e que até hoje não foi tratada pelos historiadores locais – a ourivesaria. Na verdade é impressionante a quantidade de “ourives do ouro e da prata” que então apareceram no seio da “nação” brigantina e se meteram pelos caminhos da diáspora sefardita. Apenas a título de exemplo, diremos que só no processo de Fernando Fonseca Chaves, ao fazer a sua genealogia, ele menciona uns 16 parentes “ourives do ouro ou da prata”. Atente-se, no entanto, que a profissão, como qualquer outra, aliás, não impunha exclusividade e todos eles se dedicavam ao que aparecia e que dava dinheiro, para além da contínua procura de ascensão social. Com alguma frequência vemos curtidores e sirgueiros ascender a fabricantes e mercadores de seda e vemos multiplicar os ourives. E os ourives, tal como os médicos e advogados também se faziam mercadores, rendeiros e contratadores. Tanto quanto resulta da leitura dos processos da inquisição, ao longo de gerações, no seio da “nação de Bragança”, duas famílias se impõem no trato do ouro e da prata: a dos Albuquerque e a dos Pimentel, unidas, aliás, por vários casamentos. E essa era a linha familiar do mestre ourives Álvaro Vaz Castro, filho de Ana Pimentel, casado que foi com Josefa Pimentel, filha de Feliciano Albuquerque, a qual contava com 4 tios e vários primos ourives / prateiros. O casal teve 2 filhas e um filho, tendo a mais velha, Francisca Xaviela, nascido por 1679. Andaria nos 14 anos quando se contratou o seu casamento, contrato que o pai não pôde assinar, pois era já falecido. Vamos então para Lisboa, acompanhando Xaviela ao casamento, naquele ano de 1693. Na mesma altura, aliás, terão rumado também para a capital todos os membros do seu agregado familiar que era constituído pela avó, a mãe e os irmãos. É que, em Lisboa, eles tinham familiares que estavam muito bem de vida, como era o caso do contratador Dionísio Pimentel e do ourives da prata Francisco Morais Pereira, dois dos irmãos de Josefa. (1) Mas, vamos apresentar o noivo de Xaviela. Chamava-se António Santiago e era seu primo em 2º grau, pela parte materna. Nascido em Bragança por 1671, era filho de Manuel Santiago da Costa e Mécia de Morais, (2) dois dos signatários da petição de 1661, que se apresentaram em Bragança, perante o inquisidor Manuel Pimentel de Sousa e foram chamados a Coimbra em 1670 para serem sentenciados. Certamente que a lembrança das constantes vagas de perseguição inquisitorial inspirava a fuga de Bragança aos filhos da gente da nação. Seria o caso de António Santiago e da sua irmã Beatriz da Costa, casada com Gaspar de Faro que se mudou para Lisboa com seus 4 filhos. Todos acabariam por ser presos, tal como António e Xaviela, (3) pois que os olhos e os ouvidos da inquisição estavam por toda a parte; espiar e delatar judeus tornou-se mesmo uma obrigação moral, um dever dos cristãos. Tratante bem-sucedido, aos 32 anos, António Santiago tinha já nome feito na praça de Lisboa. Olhemos um pouco para os seus negócios e contratos. Um deles era a comenda de Arruda dos Vinhos, que ele trazia arrendada por 1 conto e 300 mil réis “livres para a Fazenda Real”. Outra comenda que ele arrendou, em parceria com 3 outros sócios, era a de Alcochete, pelo valor anual de 2 contos e 20 mil réis, livres para o Mestrado da Ordem de Santiago a quem pertencia. À cabeça da sociedade encontrava-se Manuel Mendes Nemão, familiar do santo ofício, em cujo nome se fez o arrendamento, com António Santiago como fiador. Um dos produtos cuja décima pertencia à dita comenda era o sal. António Santiago, falando da sua participação no contrato, dá-nos conta de um carregamento feito no navio de Pedro Robão, com destino a Bayonne, de França. E também nos diz que, na localidade, empregado na cobrança das rendas, traziam Manuel Gomes Peinado, que, possivelmente integrava também a “nação de Bragança” que “assistia” em Lisboa. Em um barco registado em Barcelona de França, (SIC) que dias antes zarpou de Lisboa, António Santiago tinha carregado 5 rolos de tabaco, com ordem ao capitão do barco para lho vender nos portos onde acostasse e, o dinheiro da venda o remetesse ao seu correspondente em Madrid, João Garcia de Guiné, com o qual havia combinado que lhe mandasse, em paga, um fardo de seda torcida para fazer meias, cujo preço andaria por 750 mil réis. Para o Rio de Janeiro tinha enviado mercadorias tão diversas como: bacalhau, azeite e serafinas, no valor de 1 conto e 600 mil réis, que esperava receber em açúcar e ouro. E já que falamos em ouro, repare-se na seguinte declaração por ele feita no inventário de seus bens: - Disse que algumas peças de ouro e prata que são dele confitente estão empenhadas em casa de António Nunes, sirgueiro que vende chapéus na Rua Nova, defronte do Chafariz, na quantia de 200 mil réis (…) e as ditas peças poderão valer ao todo 270 mil réis. (4) Como se vê, eram muito diversificados os negócios e contratos de António Santiago e bem dilatada a confiança nos correspondentes e parceiros comerciais. E estes eram os pressupostos do sucesso empresarial da gente da nação hebreia, o que agilizava a tomada de decisões empresariais e muito contribuía para o sucesso comercial. Falou-se atrás na compra de um “fardo de seda torcida” para fazer meias. Cumpre dizer que, naquela época, com as calças curtas que se usavam, as meias ganhavam também relevância no vestuário masculino e eram motivo de ostentação pelas classes da nobreza e da burguesia. Isso fazia o preço subir e o seu fabrico e venda uma atividade interessante para os homens da nação, que a dominavam. Já agora, refira-se que o irmão de Xaviela, Feliciano Albuquerque tinha exatamente a profissão de fabricante de meias, como, aliás, muitos outros brigantinos. No panorama económico de Bragança no século de 1700 a sericicultura apresenta-se como uma verdadeira indústria de ponta, extremamente rentável. Na montagem e gestão daquela indústria dominava a “gente da nação” que amealhava prata e ouro, em quantidades nunca vistas. Com ou sem ligação à seda, assistiu-se também ao florescer de uma outra indústria, também de ponta e que até hoje não foi tratada pelos historiadores locais – a ourivesaria. Na verdade é impressionante a quantidade de “ourives do ouro e da prata” que então apareceram no seio da “nação” brigantina e se meteram pelos caminhos da diáspora sefardita. Apenas a título de exemplo, diremos que só no processo de Fernando Fonseca Chaves, ao fazer a sua genealogia, ele menciona uns 16 parentes “ourives do ouro ou da prata”. Atente-se, no entanto, que a profissão, como qualquer outra, aliás, não impunha exclusividade e todos eles se dedicavam ao que aparecia e que dava dinheiro, para além da contínua procura de ascensão social. Com alguma frequência vemos curtidores e sirgueiros ascender a fabricantes e mercadores de seda e vemos multiplicar os ourives. E os ourives, tal como os médicos e advogados também se faziam mercadores, rendeiros e contratadores. Tanto quanto resulta da leitura dos processos da inquisição, ao longo de gerações, no seio da “nação de Bragança”, duas famílias se impõem no trato do ouro e da prata: a dos Albuquerque e a dos Pimentel, unidas, aliás, por vários casamentos. E essa era a linha familiar do mestre ourives Álvaro Vaz Castro, filho de Ana Pimentel, casado que foi com Josefa Pimentel, filha de Feliciano Albuquerque, a qual contava com 4 tios e vários primos ourives / prateiros. O casal teve 2 filhas e um filho, tendo a mais velha, Francisca Xaviela, nascido por 1679. Andaria nos 14 anos quando se contratou o seu casamento, contrato que o pai não pôde assinar, pois era já falecido. Vamos então para Lisboa, acompanhando Xaviela ao caVoltemos ao processo de António Santiago para dizer que logo que se viu preso, confessou a crença na lei de Moisés, dizendo que fora doutrinado ainda em criança, quando frequentava a escola dos Jesuítas, por seu tio materno, Francisco da Costa. Sofreu nos cárceres da inquisição durante um ano e pouco, saindo condenado em confisco de bens, cárcere e hábito a arbítrio. Pena igual teve sua mulher, Francisca Xaviela que apenas foi presa 4 dias antes do auto da fé de 12.9.1706, em que foi penitenciada, juntamente com 20 outros membros da nação de Bragança assistentes ou moradores em Lisboa, nomeadamente a sua mãe, Josefa Pimentel, a sua irmã, Luísa Maria, e o tio Francisco de Morais Pereira. (5) O irmão de Xaviela, fabricante de meias, atrás referido, seria preso anos depois, o mesmo acontecendo com o filho de Xaviela e António Santiago, batizado com o nome de Inácio Xavier de Morais e que no crisma alterou o nome para Alexandre Morais Silva.(6)

Notas: 1 - Inq. Lisboa, pº 5377, de dionísio Pimentel; pº 946, de Francisco de Morais Pereira. 2-Inq. Coimbra, pº 166, de Manuel Santiago da Costa; pº 10103, de Mécia de Morais. 3-Inq. Lisboa, pº 2093, de António Santiago; pº 4263, de Francisca Xaviela. 4-Pº 2093, p. 12. 5-Idem, pº 3036, de Josefa Pimentel; pº5780, de Luísa Maria; pº 946, de Francisco Morais Pereira. 6-Idem, pº 162.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 14 Ana Pimentel açoitada pelas ruas de Lisboa

Em 13 de Março de 1696, a inquisição de Lisboa decretou a prisão de Ana Pimentel, “mãe de Álvaro Vaz, já defunto, que foi ourives da prata em Bragança, de bom semblante e arte e tem um sinal de cabelos na barba, de 65 anos”. Era acusada de relapsia, pois que, tendo abjurado em Coimbra, em 1670, voltou a cometer crimes de judaísmo. Era uma acusação muito grave, já que o relapso “não poderá ser reconciliado e recebido ao grémio da igreja católica, posto que mostre sinais de penitência e conversão, antes será relaxado e entregue à justiça secular” – conforme estabelecia o regimento da inquisição ora em vigor, no seu livro III, título VI. Aconselhada ou não pelo seu procurador (advogado de defesa), Ana Pimentel não apenas negou que tivesse voltado a pecar, mas negou mesmo que tivesse cometido as faltas por que foi reconciliada em Coimbra 20 e tal anos antes. Mas como? – terão perguntado os inquisidores – como, se ela própria é que se apresentou voluntariamente a confessar que judaizara, sem ninguém a acusar? Estaria a brincar com o santo ofício? Aí, se o crime de relapsia já era muito grave, então ficaria em situação muito pior, acrescentando-se os crimes de falsária e de revogante. Ela, porém, afirmou, perentória: - Apresentar-se ao inquisidor em Bragança e ir à inquisição de Coimbra foi meramente para evitar o perigo de ser presa pelo santo ofício e não porque em sua consciência tivesse culpa contra a nossa santa fé católica, nem dela se apartara nunca, nem tivera crença na lei de Moisés. Explicou que quando o inquisidor Pimentel de Sousa foi a Bragança “todos os daquela terra se foram apresentar e confessaram culpas de judaísmo” porque todos temiam de ser presos, dada a quantidade de prisões que então se faziam em Bragança. Veja-se um pouco da sua confissão: - Somente lhe disseram os primos Manuel Pimentel Albuquerque e Feliciano Albuquerque, os quais no dito tempo tinham sido presos e penitenciados, e lhe disseram a ela ré que testemunharam contra ela, de que se haviam declarado com ela na lei de Moisés, para que assim se livrasse ela com eles, pois eles se livraram com o que contra ela tinham dito. Mais elaborada foi a justificação apresentada pelo seu procurador, o licenciado Francisco de Quintanilha para justificar a “confissão errónea e meticulosa” da ré: - Foi o tempo em que se principiavam a fazer muitas prisões na cidade de Bragança, que continuavam em excesso tão grande que quase despovoava a dita cidade. E de tal forma que os presos, os mais dos moradores, até viam seus filhos andar pelas ruas despidos e descalços, padecendo a necessidade, sem à noite terem onde se recolher. E vendo isso, aqueles que não estavam presos, temendo que os carcerados, ou por vingança, ou por se verem soltos, jurariam contra eles, se resolveram a fugir para Castela ou apresentar-se voluntariamente, declarando o que não haviam cometido. E achando-se ela ré naquele tempo viúva, com uma filha donzela, 2 filhos e uma sobrinha e um sobrinho, sem mais remédio do que a sua agulha de cosedeira (…) se resolveu apresentar-se também, fazendo a dita confissão em tudo falsa. Seguiu-se uma comissão a Bragança, interrogando-se várias testemunhas que corroboraram aquela descrição do ambiente que então se viveu na cidade. A título de exemplo veja-se o testemunho do padre Gonçalo Teixeira: - Andavam os seus filhos pelas ruas despidos e descalços, padecendo necessidades, nem havendo onde se recolhessem de noite. E por esta causa, se resolveram muitos a fugir para Castela. Ana foi bem apertada pelos inquisidores, em várias sessões. E uma e outra vez lhe perguntaram se sabia que “jurar falso era gravíssimo pecado” e porque foi jurar falso. E uma e outra vez, ela respondeu o mesmo, acrescentando pormenores: - Também a moveu ir-se apresentar o achar-se pobre sem ter quem a acompanhasse para se poder retirar para Castela, como outros fizeram (…) e foi para remir a vexação da prisão que temia e também não fez grande reparo em dizer falsamente de seus parentes, por eles assim lho haverem aconselhado. Perguntaram-lhe então os inquisidores porque demorou tantos anos a desfazer a sua mentira. Respondeu que antes “não lhe convinha fazê- -lo porque a prendiam, se assim fizesse e ficariam desamparados seus filhos; agora pode-lhe faltar, em razão de serem mortos seus filhos e ela se achar em idade em que sua vida não poderá ter muita duração e se resolveu a revogar”. Para além disso, acrescentou que “os seus primos também se apresentaram falsamente, com medo de serem presos”. Estranharam-lhe os inquisidores o ter confessado as cerimónias judaicas que fizera e agora dizer que sempre foi boa cristã. Nesse caso como sabia os preceitos e cerimónias e rituais da lei de Moisés? A resposta foi clara: - A notícia que teve das cerimónias foi por lha darem os ditos seus primos, quando a instruíram no que havia de confessar; e também teve notícia que os judeus as faziam por as ter ouvido repetir algumas vezes no edital da fé que todos os anos se costuma ler nas igrejas. As explicações dadas ao longo de mais de 2 anos e os argumentos do procurador não convenceram os 13 inquisidores e deputados que apreciaram o processo em reunião de Mesa, no dia 12 de Agosto de 1698 e votaram que fosse relaxada à justiça secular, como relapsa, negativa e impenitente. Quando a sentença lhe foi comunicada, Ana Pimentel pediu para estar com o seu procurador. E então, aconselhada por este, decidiu alterar as suas confissões dizendo que na verdade cometera as culpas por que fora penitenciada em 1670 mas, a partir daí, nunca mais judaizara, pelo que não incorreu no crime de relapsia. E explicou que a revogação que fizera foi “por tentação do demónio, que a fez persuadir a que com negar tudo a soltariam mais brevemente e poria em melhor estado a sua causa”. Obviamente que foi de novo sujeita a várias “sessões apertadas” com baterias de perguntas insidiosas dos inquisidores. Ana Pimentel manteve-se firme, como firme se mantivera por 2 anos, na condição de revogante. Decidiram os inquisidores submetê-la a tormento, no decurso do qual apenas gritava “ que não a matassem, que tinha desencarregado a sua consciência e chamando pelo senhor S. Vicente de Fora que lhe acudisse”. Foram vistos 3ª vez os autos, saindo condenada em “cárcere e hábito perpétuo sem remissão e seja açoitada pelas ruas públicas desta cidade e degredada por tempo de 5 anos para o Brasil”, no auto da fé celebrado no adro da igreja de S. Domingos em 9.11.1698. Imagine-se o espetáculo: uma mulher daquela idade, alquebrada pelo tormento que lhe aplicaram e por anos de sofrimento nas húmidas masmorras do santo ofício, a ser conduzida pelas ruas de Lisboa a golpes de chicote! Iria aguentar? Era castigo aceitável? Foram os médicos da inquisição chamados a pronunciar-se e ambos foram de opinião que “a ré, sendo levada em cadeira, não poderá ter perigo algum de vida”. De certo que ela aguentou e o espetáculo terá sido aplaudido por muito povo que se amontoava pelas ruas, sedento de sangue judeu. No final, Ana Pimentel foi recolhida na prisão do Limoeiro onde ficou aguardando que a metessem num barco que a levasse ao Brasil a cumprir o degredo. Também neste ponto sucederam anomalias e peripécias, como esta, referida em uma certidão do processo: - A ré, Ana Pimentel não foi, porquanto dando parte dela ao senhor Conde Regedor me ordenou a suspendesse, por ser cristã-nova e pertencer a Sua Majestade mandá-la exterminar do Reino. Terminou o processo com despacho favorável do requerimento feito pela ré em Janeiro de 1704, nos seguintes termos: - Diz Ana Pimentel, presa há 5 anos no Limoeiro por ordem desta santa casa, sendo condenada em 5 anos de degredo para o estado do Brasil, antes lhe valera mais ir cumprir o degredo e não estar metida em uma prisão, vexada dos incómodos dela, sendo uma mulher de mais de 80 anos, muito pobre, sem ter quem a favoreça na dita prisão, por ser já tão dilatada, nem quem lhe assista por ser mulher cheia de achaques causados pela sua velhice e tem feito a este tribunal vários requerimentos pedindo pelas chagas de Cristo a tirem da dita prisão.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 13 Celebraram o Kipur em casa de Ana Pimentel

Em 21 de Janeiro de 1691, foi metido nos cárceres secretos da inquisição de Lerena, Castela, um homem de 33 anos, “prateiro do ouro e da prata”, natural de Chacim, que disse chamar-se Ambrósio de Saldanha Sória (1) e “tendo-se feito inspecção, pareceu estar circuncidado”. Por mais de 4 anos se manteve negando todas as acusações de judaísmo que lhe eram feitas. Até que, em 13.3.1695, pediu audiência para “desencarregar a sua consciência”. E então, entre outras, fez a seguinte confissão: - Há 20 anos, ausentando-se de Bragança para Múrcia, para ver a sua mãe, que lhe parece se chamava Ana Gomes, presa pela inquisição daquela cidade, disse o seu mestre que o deixava encomendado a Álvaro Vaz, prateiro da cidade de Bragança; e este lhe disse que Ana Pimentel, mãe do dito Álvaro Vaz, tinha intimidade (parentesco) com Leonor de Sória, avó deste; e que se haviam declarado na lei de Moisés, pelo que lhe disse a sua avó; e que fizeram um jejum do dia grande em casa de Álvaro Vaz, a saber: Álvaro Vaz, Ana Pimentel sua mãe, Feliciano Albuquerque, tratante, sogro de Álvaro Vaz, juntamente com ele confessante; e vivia na Rua Direita e a casa era de António Pilas, estando os referidos e ele confessante em um quarto alto da dita casa, da parte de trás. (2) Temos assim que o mestre ourives Álvaro Vaz ficou sendo o responsável pela formação profissional de Ambrósio de Sória quando o mestre António Gomes abandonou a cidade de Bragança para ir ajudar a sua mãe, presa pela inquisição de Múrcia. E, como era costume, o aprendiz também frequentava a casa do mestre, e muitas vezes era nela que morava. Para além disso, havia “intimidade”, ou seja, parentesco, entre Ana Pimentel e Leonor de Sória, sua avó, as quais se terão declarado entre si como crentes da lei mosaica, segundo lhe disse a sua avó. Estamos, pois, em casa de Ana Pimentel e do filho, na Rua Direita de Bragança, participando na celebração do Kipur, por volta de 1675. Descrevendo o caso, Ambrósio acrescentou que durante o dia jejuaram e “se estiveram encomendando a Deus” rezando orações. E que, no decurso da celebração, Ambrósio falou de uma oração nomeando-a de “Bendito o cravo e a canela”. Ao que o seu mestre, Álvaro Vaz, desatou a rir, no que foi repreendido pelo sogro, Feliciano Albuquerque “que mostrava ser pessoa virtuosa na dita lei”. E então, o mesmo Feliciano Albuquerque recitou a oração referida e por ele apresentada como de “Alabanza (louvor) das criaturas a Deus”, na forma seguinte: Alabante (Louvem-te) Deus do Céu, os anjos, em coro, te bendigam Poderoso nosso Deus, de continuo o digam Alabante os anjos e os arcanjos Alabante os serafins e os querubins Alabante os profetas e patriarcas Alabante os monarcas, as esferas e as estrelas E as coisas mais belas e mais formosas Alabante a tua divina formosura Alabante o céu e a terra Alabante os ares e os mares Alabante os elementos e os tempos Alabante os ventos e as nuvens Alabante os sombrados e os airados Alabante as geladas e granizos Alabante os rozios e os trones Alabante raios e os trovões Alabante os rios furiosos Alabante as feras animais Alabante as águas caídas dos altos céus Alabante as aves que voam no ar com suas asas e cantares suaves Alabante o mar onde estão todos os peixes Te alabe, te bendiga poderoso nosso Deus de continuo te digo Alabante o cravo e açafrão, a pimenta e o gengibre e a canela Alabante o sal e o azeite Alabante os álamos verdes e os limoeiros e as laranjeiras Alabante os anis e os salgueiros Alabante os carvalhos e os montes Alabante as feras e as montanhas Alabante as oliveiras poríferas Alabante as daiarias Alabante las silvas nas silveiras E os frutos nas fruteiras As rosas nas roseiras Alabante as flores formosas olorosas Alabante os campos verdes e viçosos em que pastam os gados Alabante os campos que são criados para sustento das tuas criaturas Alabante todo o nascido e criado Alabante o homem circuncidado à tua semelhança Alabante tu divina Alabanza Alabante o pão e o vinho Alabante o povo de Israel escolhido Em este junto te alaben todas as gentes Os contrechos alabar a nosso Deus Pois é nosso Deus amado, bem merece ser alabado Servido com o coração Alabante a noite o dia Também te alabe esta alma minha sempre por ti amparada e socorrida pois és meu Deus que me alegra todo o tempo espero que me socorras. (3) Antes de prosseguirmos com a história de Ana Pimentel, um pequeno comentário sobre esta oração que não é original, antes se trata de uma adaptação do “cântico dos 3 jovens” judeus, amigos de Daniel, “ministros” do rei Nabucodonosor e que, depois, este mandou queimar num forno superaquecido. Esta sentença resultou do facto de eles se não ajoelharem perante uma estátua de ouro que o rei mandou fazer. Contudo, em vez de estarem feitos em torresmos quando abriram a porta do forno, os jovens estavam de pé, cantando e louvando o Deus dos céus. O facto de em Bragança se recitar este cântico, em finais do século XVII, é importante porque vem contrariar a tese muito divulgada, segundo a qual os cristãos-novos, à medida que os anos passavam e as gerações se sucediam, vendo- -se perseguidos, sem livros e sem rabis e sem a frequência das sinagogas, iam adulterando a doutrina e as cerimónias judaicas, esquecendo a lei fundamental expressa nos livros do Testamento Velho. Na verdade, apesar de todas as contrariedades, a nação de Bragança mantinha, com relativa pureza, o conhecimento da lei mosaica. Aliás, temos conhecimento de vários livros que clandestinamente circulavam entre eles e de “mestres” que vinham disfarçados de mercadores a dar instrução religiosa. E também eram frequentes as deslocações de homens de Bragança à França, Itália e Holanda onde iam instruir-se e circuncidar-se, sendo que a circuncisão era por eles considerada como essencial para a salvação. E não por acaso, no “cântico dos 3 jovens”, um dos versos diz: - Alabante o homem circuncidado, à tua semelhança. Curioso que este verso não pertence ao texto bíblico original e terá sido acrescentado em tempos de perseguição inquisitorial! A semelhança com Deus obtinha-se apenas com a circuncisão!

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 12 Ana Pimentel ao sábado ia para a vila em visitas aos parentes

Antes de falarmos de Francisca Henriques e sua filha Ana Pimentel, como prometemos no texto anterior, voltemos a Vinhais, à onda de prisões ali efetuadas na sequência da “visitação” do inquisidor Jerónimo de Sousa, em 1582. Entre os prisioneiros contou-se o casal constituído por Pedro Manuel, mercador, e Beatriz Nunes. De seguida foi presa Catarina Nunes, irmã de Beatriz, ambas filhas de Francisco Rodrigues e Violante Nunes. Catarina era casada com Manuel Pimentel, e estes foram os pais das citadas Francisca Henriques, Josefa Pimentel, Maria Nunes e outros irmãos de que não falamos. De referir que a profissão de Francisco Rodrigues era a de ourives da prata, profissão que seguiram muitos dos seus descendentes, nomeadamente o filho, António Nunes. Francisca Henriques foi casada com Álvaro Vaz de Castro, castelhano, natural da vila de Nos, termo de Zamora, mercador, o qual era já falecido por 1646. O casal viveu em Bragança e Ana Pimentel é a única filha do casal de que temos notícia. Ao início da década de 1660, quando a cidade de Bragança conheceu nova onda de prisões do santo ofício, Ana Pimentel andava nos 30 anos e estava casada com Manuel Mendes Henriques, mercador. Possivelmente receando ser preso, Manuel Mendes havia-se internado por Castela e em Bragança ficou a mulher e o filho, Álvaro Vaz Castro, de 17 anos, ourives da prata. E também um sobrinho e uma sobrinha, que ficaram a seu cargo. Em 7 de Janeiro de 1661, quando os brigantinos promoveram o abaixo-assinado de que falamos em texto anterior, dizendo que tinham culpas referentes ao santo ofício que desejavam confessar e pediam para ser ouvidos em Bragança, Ana Pimentel foi um dos signatários. Por isso, chegado a Bragança o inquisidor Manuel Pimentel de Sousa, acompanhado do escrivão Pedro Saraiva de Vasconcelos, ela foi recebida em audiência, no dia 31.3.1661, autuando-se as suas declarações que começaram deste modo: - Disse que haverá 16 anos, em Bragança, em casa de seus pais, Álvaro Vaz, mercador e Francisca Henriques, naturais e moradores em Bragança, agora defuntos; e estando só com a sua mãe, então já viúva, disse a mesma sua mãe a ela confitente se queria salvar sua alma, cresse na lei de Moisés, que era só a boa (…) e outrossim, depois que faleceu a dita sua mãe, fez pela alma da mesma o jejum judaico que lhe havia encomendado (…) fazendo tudo em observância da lei de Moisés; e a crença lhe durou até haverá 4 meses em que, alumiada pelo Espírito Santo, resolveu apresentar-se e o fez por petição… Aparentemente, tudo ficou resolvido e Ana ficou em Bragança tocando a vida para a frente, ela o filho, Álvaro Vaz Castro, de 18 anos, ourives da prata, já que o marido terá falecido pouco depois Porém, ao início de Junho de 1670, Ana Pimentel recebeu ordem para se apresentar no tribunal de Coimbra, sendo reconciliada em auto particular, no dia 1 de Julho seguinte. Vejam como ela descreveu mais tarde a cerimónia: - Em uma das casas da dita inquisição onde foi posta ela declarante de joelhos, um dos inquisidores lhe lançou água benta com um hissope sobre a cabeça e ela declarante, segundo sua lembrança, lhe parece que tomou o juramento dos santos Evangelhos (…) e a mandaram para a sua terra. De novo em Bragança, assistiu ao casamento do filho, com Josefa Pimentel, neta de outra Josefa, tia materna de Ana, de quem já se falou. Filho e nora ficaram morando com ela. Na casa em frente, do outro lado da rua, morava o padre José Fernandes de Meireles que sentia ser seu dever espiar os vizinhos. Em 8.2.1686, apresentou-se em casa do comissário da inquisição Martim Carneiro de Morais, abade de Gondezende, a denunciar, nos seguintes termos: - Disse que uns seus vizinhos de fronte, que é Ana Pimentel e sua filha (sic), mulher de Álvaro Vaz, prateiro, nos sábados iam de manhã para a vila, para casa de seus parentes; que 4 ou 5 sábados fez reparo nisso, haverá mais de um ano, por irem naquele dia sempre, sem trabalharem neles; e que ele testemunha tanto fez reparo nisso que o disse algumas vezes a suas irmãs; em cada sábado que iam para a vila e que iam estas e a mulher de Alexandre Pimentel e algumas vezes a de Alexandre da Costa, cujos nomes são sabe e que estão lá até à noite e nos outros dias as não via ir. Claro que o comissário mandou a denúncia para a inquisição, a qual foi registada no caderno 8º do promotor, a fl. 97. Aliás, esta era já a segunda denúncia. É que, um outro comissário do santo ofício, Belchior de Sá Cabral, de Alfândega da Fé, enviado a Bragança a fazer um sumário de averiguações, registara, em 14.6.1683, uma denúncia do tecedor João Gomes dizendo: - Sabe que Ana Pimentel e a sua nora, Josefa Pimentel, que mora com ela em sua casa, todos os sábados se compõem e andam em visitas. Não trabalhar ao sábado e andar composta e em visitas aos parentes indiciava que Ana continuava na prática da lei mosaica. A prova não seria conclusiva e os inquisidores eram pacientes, aguardando melhor prova. Repare-se, contudo, no paradoxo: enquanto o padre José Fernandes Meireles servia o santo ofício espiando os comportamentos da vizinha, Ana Pimentel, depois de ser presa, apresentá-lo-ia como testemunha primeira de defesa, em prova de seu bom comportamento cristão! Entretanto a vida em casa de Ana continuava animada, com o filho singrando na carreira profissional, alcançando o grau de mestre ourives. E um dos que ele acolheu em casa como aprendiz de ourives foi Ambrósio de Saldanha Sória, natural de Chacim, que depois se foi para Castela, fixando morada em Ciudad Real. A família também crescia, com o nascimento de 3 netos, filhos de Álvaro Vaz e Josefa Pimentel: Francisca Xaviela, Luísa Maria e Feliciano Albuquerque. Ao findar da década de 1680, em circunstâncias que não pudemos apurar, terá falecido Álvaro Vaz e a vida complicou-se para as duas mulheres que rumaram a Lisboa onde tinham parentes, nomeadamente alguns irmãos de Josefa, os quais as ajudariam e, inclusivamente, haveria já contratos concertados para casar os netos. Aliás, é a própria Ana Pimentel que nos informa, confessando para os inquisidores, em 10 de Setembro de 1696: - Viveu em Bragança e há 3 anos que veio para Lisboa acompanhar uma neta sua que veio para se casar; e daqui passou à vila de Aldeia Galega aonde actualmente assistia quando foi presa; e ali vendia tabaco por ordem de Alexandre Pimentel, contratador do estanco. No próximo texto falaremos da prisão de Ana Pimentel.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 11 - Os Albuquerque em Bragança com as raízes em Vinhais

Corria a segunda semana do mês de Setembro de 1589. Na cela do canto do corredor da cadeia da inquisição de Coimbra, estavam presas 5 mulheres Trasmontanas, por culpas de judaísmo. Uma delas chamada Ana Fernandes, 50 anos, era natural e moradora em Vila Real, outra era de Vimioso, dava pelo nome de Isabel Álvares e 3 eram moradoras em Vinhais. Vamos identificar estas: Maria Dias, natural de Miranda do Douro, viúva de Afonso Cardoso; Joana Barba, 17 anos, solteira, “cosedeira” de profissão, filha de Francisco Lopes e Filipa Serrão; Genebra Lopes, 19 anos, presa há mais de um ano, que acabara de ser mudada para aquele cárcere. (1) Naquele dia, as 5 mulheres foram alertadas por uma voz “que vinha pelo corredor” misturada com alguns espirros e que repetia: - O bem feito bem parece… Apurando o ouvido e impondo silêncio, Genebra Lopes, concluiu para as companheiras: - Eu conheço aqueles espirros… Aquela voz… parece a minha irmã! E depois, falando mais alto, respondeu: - Bicha. Deus vos deixe ver vosso esposo em bem. Bicha esperixilada, era a alcunha com que Genebra e os irmãos “crismaram” em criança a sua irmã Beatriz Nunes, que se apresentava como “cosedeira e aprendeu costura com sua irmã Genebra Lopes e se criou com sua mãe até ser mulher”. Nos dias seguintes as duas irmãs continuaram comunicando-se. Genebra perguntou à irmã se tinha já confessado seus pecados. Ela respondeu que não. A partir daí, Genebra, que era mais velha que a irmã, tudo fez para a convencer a que confessasse, conforme contou Francisca Dias, (2) solteira, 19 anos, também natural e moradora em Vinhais, companheira de cela de Beatriz: - Dali em diante, por espaço de 4 dias, falaram sempre sobre isso, até segunda-feira em que a dita Beatriz Nunes se determinou a confessar (…) até que ela declarante lhe disse que falasse e que dissesse “o que era bem feito bem parecia” para que Genebra Lopes entendesse que ela estava confitente; e Genebra Lopes deu sinais de folgar muito com isso dizendo-lhe que “boa bênção a cobrisse” (…) segunda- -feira deixaram de falar porque, sendo pressentidas, o alcaide lhes fechou a porta e as mudaram. (3) Vamos até Vinhais, ao ano de 1582, quando o abade de Vila Flor, inquisidor de Évora, andava por ali à “caça de judeus”. No caminho de Agrochão para Vinhais seguiam dois homens novos, que viriam a ser contra-cunhados: o médico Francisco Ramos e o seu amigo Bernardo Serrão, casado com Genebra Lopes. (4) E comentando a visita de Jerónimo de Sousa a Vinhais, os dois se declararam crentes na lei de Moisés. Isto contou o médico, 6 anos depois, aos inquisidores, estando preso em Coimbra. E acrescentou que, 4 anos depois, “foi ele denunciante a casa de Bernardo Serrão, em Vinhais, o qual já estava apartado com sua mulher e ele confitente ia a curar uma sua criada. E depois de curar, estando ele confitente com o dito Bernardo Serrão e a dita sua mulher Genebra Lopes e Beatriz Nunes, irmã da mesma, agora esposada com Pedro Vaz (…) e estando os 4, jejuaram todos naquele dia até à noite”. Esta foi uma das denúncias que levaram à prisão de Bernardo Lopes e sua mulher, em Junho de 1588, sendo moradores na Rua Nova de Vinhais e também à prisão de Beatriz Nunes, que então já morava “ao pé do castelo”, em Bragança, onde casara com Pedro Vaz, mercador e rendeiro. (5) Não vamos analisar estes processos. Diremos tão só que Beatriz Nunes saiu no auto da fé de 26.11.1689, condenada em confisco de bens, cárcere e hábito perpétuo, que lhe foi tirado em Julho de 1596, contra o pagamento de uma “esmola de 100 cruzados” – 40 000 réis! Melhor sorte teve Leonor Nunes, outra irmã de Beatriz e Genebra, a qual não terá sido incomodada pela inquisição. Viveu em Vinhais, casada com Francisco de Albuquerque, mercador e tiveram 2 filhas que foram casar e morar em Bragança. Situemo-nos então em Bragança no ano de 1661, quando a inquisição para ali deslocou o inquisidor Manuel Pimentel de Sousa a iniciar a instrução de processos, evitando que o tribunal de Coimbra ficasse “entupido” dada a quantidade de judaizantes brigantinos que desejavam apresentar-se. Pois, entre aquelas dezenas de processos, encontramos 5 instaurados a filhos e netos de António Albuquerque, irmão de Francisco, casado em Bragança com Josefa Pimentel. Um destes processos respeita ao filho, Manuel Pimentel Albuquerque, preso em Janeiro de 1661. Tinha 39 anos e era casado com Maria de Faro, a qual, vendo o marido preso, resolveu apresentar- -se ao inquisidor Pimentel de Sousa, em Bragança, em Março seguinte. Também ela acabou por ser presa, em Julho de 1662, saindo ambos condenados em confisco de bens, cárcere e hábito no auto de 9.7.1662. (6) Outro dos filhos, chamava-se Francisco de Albuquerque, como o tio paterno morador em Vinhais, acima referido. Era ourives da prata, uma profissão muito comum na família dos Albuquerque - Pimentel. Em 11.2.1661, contando uns 45 anos, Francisco Albuquerque apresentou-se na inquisição de Coimbra. (7) No dia seguinte foi-lhe dada ordem para regressar a Bragança, de onde não poderia ausentar-se, sem licença. Em 1685 foi novamente chamado a Coimbra com sua mulher, Filipa Serrão… mas seria já falecido, na cidade do Porto. No mesmo ano de 1661, foram também apresentar- -se na inquisição uma filha e um filho de Francisco Albuquerque. A filha chamava-se Catarina da Costa e era moradora em Mirandela, casada com outro Francisco Pimentel, ourives da prata. E também ourives da prata como o cunhado e o pai, António Albuquerque tinha 18 anos quando se apresentou em Coimbra, sendo igualmente mandado regressar a Bragança. Chamado de novo em Dezembro de 1665, foi sentenciado no auto de 9.2.1666. (8) Feliciano Albuquerque, um terceiro filho de António Albuquerque e Josefa Pimentel, contava 34 anos quando se apresentou, em 1661, juntamente com a sua mulher, Luísa Mendes, e foram autuadas as suas confissões. Anos depois, em 5.1.1666, foi preso pela inquisição e sentenciado no auto de 13.2.1667, enquanto a mulher seria chamada a Coimbra em Abril de 1670 para ser sentenciada em 14.3.1671. (9) De entre os irmãos de Francisco e Josefa Pimentel, uma referência para Maria Nunes que casou com João de Sória, membro de uma família que foi muito importante em Castela, chegando um dos seus membros, António de Sória, a tornar-se rendeiro, com o monopólio da venda do tabaco em Múrcia, bem como a cobrança dos “millones” (imposto sobre o pão e o vinho) e do imposto sobre “os currales de comédias”. Foi preso pela inquisição de Cuenca em 1654, no seguimento das exéquias, com cerimónias eivadas de judaísmo, de Manuel Cortiços, do qual, António de Sória foi representante e testemunhou a sua limpeza de sangue no processo para a entrada na Ordem de Calatrava. Para além de outras penas, António de Sória foi condenado a pagar mil ducados (1 conto e 600 mil réis). (10) A sua mulher, Maria de Sória, nascida em Madrid, fugiu para Bayonne. Maria Nunes e João de Sória tiveram um filho, chamado Francisco de Sória Pimentel, que foi homem de negócios em Toledo e trazia dois filhos a estudar em Salamanca. No próximo jornal falaremos de outra irmã, Francisca Henriques e sua filha Ana Pimentel.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 10 António Cardoso da Paz mercador em Lisboa

No dia 23 de Setembro de 1702, entrou na Ria de Vigo uma frota de galeões espanhóis vindos das Américas, carregados de ouro e prata, escoltados também por navios franceses. Uma frota de navios ingleses e holandeses conseguiu forçar a barra, e, no estreito de Rande, saquear e destruir a armada espanhola. Um golpe muito audacioso e um belo saque para os audazes marinheiros. Este foi um episódio da guerra da Sucessão de Espanha que muito impressionou o rei de Portugal, D. Pedro II, até então aliado dos franceses e espanhóis, e que tinha prometido ao Rei Sol (Luís XIV) fechar os seus portos aos barcos adversários. De imediato, iniciou conversações com os ingleses que, em verdade, nunca deixaram de frequentar os nossos portos e desenvolver ações de corço e pilhagem à mistura com alguns negócios. Um dos mercadores portugueses que tinha pratas nos galeões espanhóis trazidas das Índias, e que as perdeu, foi António Cardoso da Paz – 5 mil e tantas patacas – conforme informação de seu filho, que acrescentou: - Veio de Aiamonte fugido, por aviso que teve do corregedor da cidade de que o queriam prender, suspeitando que ele havia dado alguns avisos a este Reino e passado algum dinheiro; porque se botou bando com pena de morte, que ninguém o passasse… (1) O pai fugiu de Castela para Faro, trazendo apenas a roupa do corpo e umas 60 ou 70 patacas. O filho ficou em Aiamonte mais 10 ou 12 dias, tentando vender algumas coisas e fazer algum dinheiro. Muito pouco, apenas umas 15 patacas “que fez de fazendas mal vendidas”. De Faro rumaram a Lisboa, onde se encontrava já a viver a família do tio Rafael de Sá, então muito doente ou já falecido. Falecidos também, eram já a sua filha, Grácia de Mesquita e o marido, João Esteves Henriques. A tomar conta das filhas destes, ficou a sua avó, Luísa Mesquita, viúva de Rafael de Sá. E foi com as duas órfãs mais velhas que os fugidos de Aiamonte se casaram: António Cardoso da Paz, viúvo, com Branca Lopes Henriques e Rafael de Sá da Paz, com Luísa de Mesquita. Obviamente que os casamentos foram acertados com a matriarca e os seus dois filhos médicos, tios das noivas e certamente foi com a sua ajuda que refizeram as vidas e reergueram os negócios. Aliás, o próprio Rafael de Sá da Paz contou aos inquisidores: - Depois que vieram para esta cidade, pousando em casa de Francisco de Sá Mesquita, com o seu crédito e fiando- -lhes fazendas, se foram achando na forma em que hoje estão. E que não trouxeram nada de Castela poderão justificar o capitão Manuel Rebelo, oficiais e soldados (…) que os viram desembarcar sem trazer coisa alguma. (2) A chegada a Lisboa terá acontecido por 1703. Dois anos depois, a inquisição lançou uma grande investida sobre a nação de Bragança residente na capital. Particular retumbância no seio da comunidade e influência na vida de Cardoso da Paz, teria a prisão de Eliseu Pimentel em Outubro de 1705, o qual trazia arrematado o monopólio da venda de cartas de jogar e solimão em todo o reino. Vamos explicar. Antes de ser preso, Eliseu tinha contratado uma grande encomenda de cartas da França. Sendo preso, ficou o filho, António Pimentel, de 18 anos, à frente do negócio. Como não tinha dinheiro suficiente, preparava-se para recusar a encomenda. Aí surgiu António Cardoso e o dinheiro conseguiu-se formando uma sociedade comercial em que entraram eles dois, os médicos António Mesquita e Francisco Sá Mesquita e o escrivão dos contos Francisco Correia da Silva. O gerente da sociedade era António Cardoso e logo o seu génio mercantil veio ao de cima, carregando “para o Rio de Janeiro, Baía e Pernambuco” uma remessa de cartas e alargando também o campo de atuação até à Índia. Vejam a sua própria explicação: - Pela licença dos estados da Índia, aonde não é costume mandar solimão e cartas, vendeu a dita licença por 600 mil réis, em cada ano, a António Tarouca, morador na cidade de Goa, por inculca de António Leite, mestre impressor, que lhe assegurou debaixo da sua palavra a boa satisfação e que o dito António Tarouca lhe faria receita do dito cômputo no que ele declarante lhe pedisse; e o que lhe pediu foi pimenta, cassas, diamantes… no dito contrato se poderá ganhar 3 ou 4 mil cruzados. (3) Do êxito ou fracasso da sociedade e do contrato para a Índia, com pagamento das cartas em pimenta, cassa e diamantes, pouco podemos acrescentar, até porque, em Maio do ano seguinte, a inquisição prendeu também António Cardoso e o filho Rafael de Sá da Paz. E é graças ao inventário dos bens que então fizeram perante os inquisidores, que nós ficamos sabendo um pouco mais das atividades comerciais do pai e do filho que trabalhavam em conjunto, recebendo este “a terça parte da ganância, comendo e bebendo e vestindo todos do monte”. A terça parte porque, com eles, estavam também dois irmãos menores de Rafael. Na base da empresa, estava uma loja de mercearia, que montaram na Rua Nova de Lisboa e que valia mais de 2 mil cruzados. Mas se a loja era a base, os maiores negócios passavam ao lado. Imagine-se: uns dias antes de ser preso, António Cardoso da Paz, regressara a casa com 3 mil e tantos cruzados, ou seja cerca de um conto e meio, apurado em 2 feiras. Frequentava-as em terras distantes, nomeadamente no Alentejo, para o que tinha uma espécie de central de armazenamento dos produtos que comprava e vendia nas diferentes feiras. Era no Alvito, em uma casa de João Álvares da Costa. Ali, à data da prisão, tinha “20 costais de fazenda, enfardados, de todo o género de fazenda de que se compõe uma loja e eram fazendas de Hamburgo, Holanda, Inglaterra e mais portos”, que valiam 2 contos de réis. Aliás, apenas 17 costais eram de fazendas, como ele emendou, porque um era de gengibre e incenso e dois de erva-doce e cominhos. E esta não era a única central de armazenamento de mercadorias e apoio nas feiras. Em Alhos Vedros, concelho da Moita, tinha outra. A título de exemplo, diga-se que para a feira do Gavião, termo de Portalegre, ultimamente realizada, pagou ele 24 mil réis de aluguer de “carretas” para transporte de mercadorias. Nessa feira fez uma bela compra: 3 cargas de cera que foram transportadas para a dita estalagem em Alhos Vedros, onde tinha juntado 6 cargas e uns costais “para dali a vender, que terá boa venda, por haver muita falta dela, tanto assim que os mais dos cerieiros desta corte andavam perseguindo a ele declarante para que lhe vendesse”. Boa venda teria também a pólvora, de que ele comprara 18 barris a um Manuel de Lima, a “partida de holandesas” adquirida a Gabriel Lopes Pinheiro, de Freixo de Numão, os 40 e tantos arráteis de cravo (de ferrar) comprado a um flamengo, os talins (correias de cintos ou de arreios dos animais) adquiridos na Correaria ou as 200 e tantas dúzias de facas vindas da Flandres. Mas há um negócio que especialmente desejamos referir: a venda de 1250 ovelhas, carneiros e borregos, por 500 mil réis a José Freire de Andrade, homem da nobreza, capitão das ordenanças de Faro. Em paga recebeu apenas 50 mil réis em dinheiro e o resto seria pago em sumagre posto em Lisboa, a 530 réis a arroba, “sendo bom”. A primeira remessa ascendeu a 428 arrobas, que valeriam 226 mil réis. O sumagre veio do Algarve para Lisboa, onde chegou muito podre, acabando por ser vendido ao “preço da chuva” e de acordo com Freire de Andrade que lhe escreveu a dizer que o vendesse pelo que pudesse. Para além disso, Cardoso da Paz, tinha pago 30 e tantos mil réis do transporte do sumagre, em barco, de Faro para Lisboa. Receando ficar de mãos a abanar, pediu a hipoteca do gado, que não podia sair do Alvito e Vila Ruiva, onde o tinha, enquanto o dinheiro não chegasse. Porém, o gado foi vendido a um João Raposo, de Beja, onde António Cardoso da Paz interpôs uma ação judicial embargando a venda.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 9 António Cardoso da Paz mercador em Aiamonte.

Devemos chamar-lhe cristãos novos, como o rei D. Manuel estatuiu, por decreto, ou judeus velhos, que embora batizados, nunca abandonaram a lei de Moisés, no dizer de um autor citado por Borges Coelho? (1) Habituada a viver apartada nas judiarias, com leis próprias e governantes seus, em liberdade religiosa oficialmente promulgada por leis régias, a minoria judaica, depois que recebeu a água do batismo, ficou exposta a estranhas mudanças sociais e incompreensíveis práticas religiosas. Assim exposta, e vivendo em perigosa duplicidade religiosa, naturalmente criou mecanismos de defesa. E, entre estes, devem destacar-se os casamentos endogâmicos e o trabalho em redes familiares, onde a confiança e o crédito ocultavam o dinheiro e agilizavam os negócios. Também no seio da família de Rafael de Sá e Luísa de Mesquita, a endogamia foi regra e na rede familiar de negócios por eles montada no Algarve entraram também os sobrinhos Grácia Nunes e António Cardoso da Paz, que cedo perderam os pais e para ali rumaram. Nascido e batizado em Vinhais, António Cardoso da Paz (2) foi crismado em Faro. Certamente começou a trabalhar em ligação com seu tio Rafael, o líder do grupo familiar e tutor dos sobrinhos, que também terá negociado o seu casamento. Ana da Paz era tia paterna de Rafael de Sá. Casou com António Furtado da Paz e o casal morava em Bragança. Ambos foram processados pela inquisição de Coimbra, na vaga de prisões que se fizeram na cidade ao início da década de 1660. (3) Não sabemos que caminhos trilharam depois que saíram penitenciados em 1662. Mas encontramos, mais tarde, no Algarve, duas filhas do casal. Maria Lopes, uma delas, casou com seu tio Luís da Paz, irmão de Rafael de Sá. Outra filha, Ana da Paz, como a mãe, foi a escolhida para consorte do primo António Cardoso da Paz, celebrando- -se o casamento por 1685. Ficaram igualmente a morar em Faro e ali lhe nasceu a filha Isabel (4) e um filho que foi batizado com o nome de Rafael de Sá da Paz, (5) sendo padrinhos os tios Rafael Sá e Luísa Mesquita. Na década seguinte, António Cardoso e Ana da Paz mudaram-se para Aiamonte com a família, que ali cresceu com mais 4 filhos. Aiamonte é município de Espanha, e por ali passavam as rotas comerciais ligando o Algarve a Sevilha e oferecendo aos mercadores portugueses bons negócios na região da Andaluzia e a possibilidade de comerciar com as Índias de Castela. Explica-se assim a presença de muita gente da nação portuguesa na região, dominando a administração do tabaco na comarca de Aiamonte e no contrato da venda do sabão. Pelo menos um boticário fora do Algarve estabelecer-se ali, enquanto um seu irmão era organista da matriz e Francisco Rodrigues mestre de meninos. Temos ainda informações sobre dois confeiteiros e dois proprietários de casas de jogo, enquanto Luís Tinoco se empregava como guarda na aduana dos portos secos. Até Manuel Dias Brandão, (6) que fora o pagador geral do exército do reino do Algarve, se mudou para Aiamonte, a explorar um estanco de tabaco. A casa de morada de António Cardoso da Paz era na Calle Real, uma casa que valia 400 mil réis, com loja de fazendas. A casa era foreira ao convento da Sª das Mercês e ao abade de Lepe, de que ele pagava 12.5 ducados de velon, o equivalente a 6.875 réis. António Cardoso quis comprar a casa “e escreveu ao comendador, prior do convento que lha vendesse (…) não teve resposta”. O facto mostra que era intenção do inquilino manter-se em Aiamonte e que dispunha já de capitais avultados. A loja de António Cardoso teria alguma referência, já que nela se vestiam pessoas gradas da terra como era o caso do aguacil mor de Aiamonte, Don Matheos Arias Vella, ou o sargento mor Don João de Mata Mouros, que lhe ficaram devendo umas dezenas de patacas. Na loja se vendiam baetas inglesas e holandilhas que, possivelmente, seriam importadas através do tio Rafael. Mas também havia meias de seda e tecidos diversos e muito em especial “rendas de Pita”, ou seja rendas feitas com fio extraído das piteiras, trabalho em que se especializaram artesãos açorianos. Podemos suspeitar que António Cardoso fosse especialista neste nicho de mercado, com larga venda para as Índias de Castela o que, por vezes, não corria bem. Veja-se um caso, contado pelo próprio: - A Cristóvão Gonçalves, mulato, posto que não parece, e é português, que comerciava em Índias de Castela, e é casado na cidade de Aiamonte, onde é morador, deu uma encomenda de rendas de pita e outras drogas semelhantes para lhe levar a vender nas Índias de Castela e que o procedido da dita encomenda lhe trouxesse em patacas, e pedindo-lhe na volta da viagem o procedido da sua encomenda, lhe respondeu que lho haviam roubado os ingleses; sobre o que correu demanda e provou o contrário, com 7 ou 8 testemunhas e teve sentença a seu favor… (7) Outra remessa de “rendas de pita e outros géneros de fazenda” para vender, foi à responsabilidade “de outro mulato chamado Carandana de alcunha, casado com uma mulata chamada Francisca, mercador das Índias, morador em Aiamonte”. Como foi morto nas Índias, o dinheiro das vendas foi remetido à viúva e para ele e outros credores receberem o seu, tiveram igualmente de recorrer à justiça. Estes não foram os únicos casos complicados e cobrança difícil, de vendas para as Índias de Castela. E provavelmente os casos em que tudo correu bem seriam muito mais numerosos. Infelizmente não há números que nos permitam avaliar da importância e capacidade exportadora deste empresário da nação de Bragança. Em Roma, com acesso à cúria papal, se encontrava o Dr. António da Paz Furtado, médico, filho de Luís da Paz e Maria Lopes, sobrinho de António Cardoso. Pois, aí encontrou este uma oportunidade de negócio: a bancaria. Trocando por miúdos: através do primo, certamente, António mandava vir de Roma bulas papais permitindo o casamento entre parentes, serviço que incluía transferências de dinheiro. Já atrás se falou de vários portugueses presentes em Aiamonte. Faltou referir uma importante família da gente da nação, originária de Miranda do Douro – Brites Alvarado e Manuel Francisco, aliás, Manuel Lopes Zamora, nome adotado em Castela. A família regressou a Portugal estabeleceu-se em Lisboa, no Largo das Mudas, então um dos espaços mais nobres da cidade, habitado por grandes capitalistas. Ao princípio do mês de Dezembro de 1702, foram presos pela inquisição. Um dos seus filhos chamou-se José Francisco Alvarado e era caixeiro do contratador Luís Nunes da Costa. Corria o ano de 1703 e estando António Cardoso com o filho Rafael na sua loja em Aiamonte, ali apareceu José Francisco Alvarado, contando-lhe que teve a sorte de estar em Coimbra a executar uma cobrança de 10 mil cruzados (4 contos de réis!), quando prenderam a sua família e o iam também prender a ele. Tal não aconteceu porque o seu patrão mandou um próprio a avisá-lo que fugisse com 200 mil réis, entregando o restante dinheiro ao seu correspondente em Coimbra. Para além do dinheiro que o patrão lhe entregou levava um anel de diamantes que valeria 100 mil réis, que lho havia dado Ana da Fonseca de Castro, enteada do dito Luís Nunes da Costa, com a qual estava esposado. Por essa altura António Cardoso ficara viúvo e abandonou Aiamonte, vindo fugido, “com 60 ou 70 patacas, deixando 2 mil e tantas patacas empregadas em rendas de pita, que ficaram em Aiamonte”. No próximo texto explicaremos os motivos da fuga e continuaremos com António Cardoso, a mercadejar em Portugal.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 8 - Rafael de Sá mercador em Faro e Lisboa

Entre 1662 e 1683, nenhum mercador português estabelecido no Algarve terá importado tantas mercadorias de países estrangeiros como Rafael de Sá, conforme consta do livro da “visita às naus estrangeiras”. Em apenas 5 anos (1678 – 1683) foram descarregados por sua conta 17 barcos, no porto de Faro. O primeiro foi uma sumaca inglesa, por nome Suzana, remetida de Londres, que chegou a Faro em 23.2.1678. E este foi o único navio que veio de Inglaterra, “em direitura a Faro”, por conta do mercador Brigantino. Passaram quase dois anos, até receber segunda encomenda. Má experiência comercial? Não temos elementos que nos permitam dar uma resposta. Pensamos, porém que isso resultou de algumas mudanças na organização empresarial de Rafael. A partir de então todos os fornecimentos lhe vieram da Holanda, mais concretamente, de Amesterdão. Chamava-se S. Martinho, o navio holandês, vindo daquele porto, chegado a Faro em 14 de Novembro de 1679, destinado a Rafael. O capitão era Jacob Reinaldo e ele e toda a tripulação eram holandeses. Passado um mês, chegou o navio Sara e Isabela, igualmente vindo da Holanda, mas o capitão e a tripulantes eram todos ingleses. A partir de então, constata-se que capitães e tripulações eram todos holandeses. Olhemos também para os nomes dos navios que abasteciam Rafael: vimos o S. Martinho, nome de santo tipicamente português, e bem portugueses parecem os nomes dos outros navios que Rafael de Sá foi recebendo: Suzana, Sara e Isabela, Dragão Verde, Vaca Malhada, Ovelha Branca, Cordeiro Branco, O Sul Dourado, Cisne Branco… tudo nomes de sabor lusíada! Seriam sefarditas os armadores de tais barcos? E quem seriam os correspondentes de Rafael de Sá em Amesterdão? Possivelmente a resposta a estas perguntas haverá de encontrar-se em arquivos holandeses, nomeadamente os registos dos contratos e despachos dos barcos. Porém, uma vez que não podemos ir à Holanda à procura de respostas, voltemos a Bragança. Talvez aí se encontre uma resposta plausível. É que, desde há duas gerações, a família da sogra de Rafael (Joana Nunes) se encontrava na Flandres. E estes – os Lafaia - passariam a ser os seus correspondentes de Amesterdão. Continuemos em Bragança, situando-nos em um dos primeiros dias do mês de Junho de 1660, quando a inquisição prendeu Rafael de Sá e os seus pais, António da Paz e Engrácia Nunes. Todos eles saíram penitenciados no auto da fé de 9.7.1662. A pena mais severa foi aplicada à matriarca, Engrácia Nunes, desterrada para o Brasil. Como muitas vezes acontecia e certamente por dificuldades no transporte, foi-lhe comutado o desterro para Castro Marim, no Algarve. Possivelmente, foi o desterro de Engrácia Nunes que motivou a deslocação de Rafael para o Algarve, acompanhando o pai e a mãe. Entretanto, Rafael de Sá, casou com Luísa da Mesquita, que na mesma altura estivera também prisioneira na inquisição de Coimbra e fora sentenciada no mesmo auto, filha de António Mesquita, de Vinhais e Joana Nunes (Lafaia), de Bragança. O casal assentou morada em Loulé, vila onde nasceu o filho António de Mesquita, em 1669. Curioso: O seu padrinho de batismo foi Henrique Janson, mercador inglês estabelecido no Algarve, de quem se falou em texto anterior, o mercador que mais barcos estrangeiros recebeu no Porto de Faro, entre 1662 e 1673: 45! Que ligações haveria entre Rafael e Janson? Será que este forneceu mercadorias a crédito, nomeadamente fazendas inglesas, quando Gabriel chegou ao Algarve e se estabeleceu como mercador? Será que Rafael entrou para caixeiro de Janson? Na verdade, a mudança de Rafael, de Loulé para Faro, aconteceu logo de seguida e a entrada de Rafael no ciclo das importações de produtos de Inglaterra e Holanda aconteceu depois da “reforma” de Janson. E isto vem corroborar a mudança de estratégia empresarial de Rafael, acima referida. Certamente que o Algarve se revelou uma terra de oportunidades, pois logo para ali rumaram outros membros da família de Rafael nomeadamente o seu irmão Luís da Paz de Sá que, em 1678 foi padrinho do seu segundo filho varão: Francisco de Sá Mesquita, nascido e batizado na cidade de Faro, para onde, entretanto, todos se mudaram. Isabel Nunes, irmã de Rafael, essa não rumou ao Algarve. Ficou morando em Vinhais, onde estava casada com Francisco Cardoso, mercador. Os dois conheceram as cadeias da inquisição de Coimbra e em Vinhais faleceram. Seus dois filhos, porém, seguiram o caminho do Algarve. De um deles, António Cardoso da Paz, haveremos de falar em próximo texto. Por agora diremos que, em 1686, batizou um filho, com o nome de Rafael de Sá da Paz, cujos padrinhos foram os tios Rafael e Luísa Mesquita. Da outra, Grácia Nunes, diremos que casou com Pedro Borges, de Bragança e o casal foi também para a cidade de Faro onde, em 29.7.1678, batizaram um filho com o nome de Rafael da Paz, cujo padrinho foi igualmente o tio Rafael. E se em Bragança Rafael tinha a profissão de curtidor de peles e em Loulé se fez mercador, em Faro apresentava-se como um respeitável homem de negócio e contratador, com relações sociais muito diversificadas. A título de exemplo, refira-se que, por essa altura, aconteceu a cerimónia do crisma de António, seu filho. E então, o padrinho já não foi o mercador inglês mas… o inquisidor do tribunal de Évora, Dom Manuel Guerreiro Camacho Aboim! Porém, a ascensão social da família tornou-se mais visível quando os seus dois filhos rumaram a Coimbra, a estudar na universidade, ambos se formando em medicina. Com dois filhos doutores e certamente uma acrescida capacidade de entrar em arrematações e contratos comerciais, Rafael de Sá deixou Faro e foi estabelecer morada em Lisboa, onde, certamente, janelas mais amplas se abriam para negociar e casar os filhos. O primeiro casamento terá sido o da filha, Grácia de Mesquita, com João Esteves Henriques, um dos filhos de João Álvares de Castro, contratador e de Branca Lopes Henriques, uma das mais poderosas famílias de Beja, latifundiária, diríamos, em linguagem dos nossos dias. Do lado de João Álvares de Castro, diremos que se trata de uma família de lavradores alentejanos, médicos e advogados que, aliavam a exploração da terra com o exercício da medicina e da advocacia e o comércio. Duarte Lopes Rosa, médico, é um bom exemplo. Explorava 3 herdades (montes), as quais lavrava com 17 juntas de bois e tinha olivais e um lagar de azeite que valia 300 mil réis, para além de outras terras do Marquês das Minas. E mantinha duas “lojas” comerciais, uma de “vestiaria” e outra de solas e madeiras que importava do Brasil, lojas que valiam mais de 2 contos de réis, não descurando também o serviço de “bancaria” que consistia em mandar vir bulas de Roma, o que implicava grandes transferências de dinheiros. E agora importa referir que na Cúria de Roma trabalhavam membros da família, nomeadamente o médico Duarte Lopes Rosa, tio do citado, seu homónimo e o também méEntre 1662 e 1683, nenhum mercador português estabelecido no Algarve terá importado tantas mercadorias de países estrangeiros como Rafael de Sá, conforme consta do livro da “visita às naus estrangeiras”. Em apenas 5 anos (1678 – 1683) foram descarregados por sua conta 17 barcos, no porto de Faro. O primeiro foi uma sumaca inglesa, por nome Suzana, remetida de Londres, que chegou a Faro em 23.2.1678. E este foi o único navio que veio de Inglaterra, “em direitura a Faro”, por conta do mercador Brigantino. Passaram quase dois anos, até receber segunda encomenda. Má experiência comercial? Não temos elementos que nos permitam dar uma resposta. Pensamos, porém que isso resultou de algumas mudanças na organização empresarial de Rafael. A partir de então todos os fornecimentos lhe vieram da Holanda, mais concretamente, de Amesterdão. Chamava-se S. Martinho, o navio holandês, vindo daquele porto, chegado a Faro em 14 de Novembro de 1679, destinado a Rafael. O capitão era Jacob Reinaldo e ele e toda a tripulação eram holandeses. Passado um mês, chegou o navio Sara e Isabela, igualmente vindo da Holanda, mas o capitão e a tripulantes eram todos ingleses. A partir de então, constata-se que capitães e tripulações eram todos holandeses. Olhemos também para os nomes dos navios que abasteciam Rafael: vimos o S. Martinho, nome de santo tipicamente português, e bem portugueses parecem os nomes dos outros navios que Rafael de Sá foi recebendo: Suzana, Sara e Isabela, Dragão Verde, Vaca Malhada, Ovelha Branca, Cordeiro Branco, O Sul Dourado, Cisne Branco… tudo nomes de sabor lusíada! Seriam sefarditas os armadores de tais barcos? E quem seriam os correspondentes de Rafael de Sá em Amesterdão? Possivelmente a resposta a estas perguntas haverá de encontrar-se em arquivos holandico João Álvares Batista, filho daquele. Branca Henriques, por seu turno, pertencia a uma importante família da Covilhã, detentora de uma fábrica de tecidos. Isabel Henriques, sua irmã, casada com o Dr. Simão Lopes Samuda, foi queimada pela inquisição em 1703. Outra irmã, chamada Catarina Henriques, foi casada com Bernardo de Lara e, ficando viúva, casou de novo, em Viseu, com Gaspar Rodrigues Brandão. João Álvares de Castro, um dos netos do citado João Álvares de Castro e Branca Henriques, lavrador em Beja, era o proprietário da casa onde se realizou a célebre academia (ou celebração judaica?) que levou à prisão de muitas dezenas de pessoas, na conhecida “Cumplicidade de Beja”. Com uma filha do Dr. Simão Lopes Samuda e Isabel Henriques, chamada Guiomar Maria Henriques, casou o Dr. António de Mesquita, filho de Rafael de Sá. E com uma filha destes, nascida por 1695, batizada com o nome de Isabel Henriques, viria a casar o Dr. Henrique (Jacob) de Castro Sarmento. O casal fugiu para Londres onde o Dr. Jacob se tornou famoso pelas suas experiências na descoberta da vacina contra a varíola e pelo famoso remédio que ele vendia com o nome de “Água da Inglaterra”. Finalmente, o Dr. Francisco de Sá Mesquita, queimado pela inquisição no seguimento da “Cumplicidade de Beja”, foi casado em Lisboa com Isabel de Sequeira.