António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Diogo Lopes Marques (n. Oviedo, 1665)

Tomé Lopes era um cristão-novo de Vinhais, tratante de profissão. Foi casar a Rebordelo, com Ângela Cardoso, também ela nascida em Vinhais. Em Rebordelo estabeleceram morada e ali, pelo ano de 1652, nasceu uma filha que batizaram com o nome de Guiomar Lopes. Poucos anos depois, a família rumou a Castela.

Ficando viúvo, Tomé Lopes, casou segunda vez, com Filipa Rodrigues e deste casamento nasceu Diogo Lopes Marques, pelo ano de 1665, na povoação de Méndez, termo de Oviedo, região das Astúrias.

Cedo ficaria órfão, dizendo ele mesmo que nunca “alcançou (conheceu) o pai”, criando-se Diogo com os tios maternos, Manuel e José Rodrigues. Este último, sapateiro, casado com Maria de Melha, morador no lugar de Santibañes de Vidriales, bispado de Astorga o terá iniciado na lei de Moisés, explicando-lhe as cerimónias que devia fazer, jejuns, etc. e ensinando-lhe várias orações, como esta que devia rezar de manhã:

Bendita la lux del dia

E el Senhor que nos la imbia

Para nos dar pax e alegria

E saber e entender

Para depues de morirmos

Bolbermos a aparecer

Neste mundo de claridade.(1)

De acordo com o seu testemunho, este ensino aconteceria por 1682, quando ele contava uns 20 anos e trabalharia com os tios, em Astorga. Quatro anos depois, foi a Benavente visitar sua irmã Guiomar Lopes e seu cunhado João Dias Pereira que ali moravam. Com eles, além dos filhos, vivia também um sobrinho de João Dias Pereira, chamado Luís Lopes Penha, que então contava uns 14 anos. Vejam como, anos mais tarde, em 1702, ele descreveu a visita de Diogo:

— Depois de estar um mês em Benavente, veio a casa do dito seu tio Diogo Lopes Marques, hoje de 37 anos, então solteiro e residente em Astorga, estanqueiro do tabaco, meio irmão de Guiomar Lopes, que veio a ver sua irmã, que não via há muitos anos. E na tarde do dia seguinte que chegou à dita casa o dito Diogo Lopes, estando detrás da tenda dela, ele declarante e Guiomar Lopes, os três sós, a dita Guiomar Lopes perguntou se ele Diogo Lopes Marques era cego, ou estava cego. A isto respondeu que não estava cego, porque seu tio Manuel Rodrigues, de Astorga, mercador, e sua mulher Josefa Ramires o haviam ensinado nas coisas da lei de Moisés.(2)

Demorou-se na visita à irmã pouco mais de uma semana, posto o que regressou a Astorga. Algum tempo depois, dirigiu-se a Trás-os-Montes, a Lebução, para casar com Clara Nunes, filha de Álvaro Mendes, mercador e neta do Dr. Manuel Mendes, importante médico natural de Lebução, residente em Chaves.(3)

Em simultâneo, ajustou-se o casamento de Manuel Dias da Mesquita, irmão de Clara, com Isabel Dias Pereira, filha de Guiomar Lopes e João Dias Pereira. Seria pelo ano de 1688.

Regressaram a Espanha os dois casais, indo ter a Benavente a casa de Guiomar e João. A filha e o genro ficaram morando em sua casa e para Diogo e Clara tinham reservado uma casa à parte.

Por essa altura marcava o calendário o dia do Kipur, que foi celebrado em casa de Diogo e Clara, “por ser uma casa sem negócio” enquanto na casa do cunhado havia “muitos criados, que pelo dito tempo tinha”. A celebração incluiu dois dias de jejum à maneira judaica, estando todo o dia sem comer e ceando coisas de “viernes”, lavando as mãos antes de comer e enxaguando a boca com água no fim. Participaram nas celebrações os 9 membros da alargada família. Luís Lopes Penha, sobrinho de João Dias e que fazia parte da família ficou durante o dia a tomar conta do “Peso” do tabaco, que o tio trazia arrendada, indo a casa de Diogo apenas à hora de cear. Os outros passaram ali o dia em rezas e cerimónias judaicas.

Os jovens casais detiveram-se em Benavente por meio ano, regressando a Lebução, certamente com planos combinados em rede familiar de negócios, que giravam sobretudo em volta do tabaco e da seda, num constante intercâmbio transfronteiriço. Em Lebução viveram alguns anos, regressando a Benavente.

Por volta de 1698 Diogo Lopes empreendeu uma viagem de maior delicadeza a Placência, em apoio a seus cunhados António Correia e Pedro Álvares a quem o corregedor terá feito um “descaminho” de quantidade de prata. Por essa altura, Clara Nunes adoeceu e pouco depois faleceu. No dia seguinte, Diogo e Pedro a enterraram na igreja de S. Nicolas em Benavente.

Passados 7 dias, Diogo Lopes, Manuel Dias, Pedro Álvares e Luís Lopes, estando sós na dita casa, fizeram um jejum por alma da defunta, estando sem comer nem beber durante 24 horas ceando “viernes” e rezando a oração da “Folganza compuesta…”

Toda a família se empregava na venda de tabaco, arrendando estancos pela região de Salamanca e Zamora. A concorrência era forte e, por 1700, depois de lhe terem “tirado e pujado” o estanco de Benavente, Diogo Lopes regressou a Portugal.

Aliás, o mesmo aconteceu com seu cunhado João Dias Pereira que o precedeu no regresso, indo fixar-se em Torres Novas, onde conseguiu arrendar o estanco do tabaco. E também aos outros membros do clã, nomeadamente a Manuel Dias de Mesquita que regressou acompanhado de sua mulher Isabel Dias, com Diogo Marques, passando por Rebordelo, antes de se dirigirem a Lisboa. Com eles, viria ainda Leonor Henriques, irmã de Manuel, também cunhada de Diogo, solteira, de 30 anos.

Ali, Diogo Lopes estabeleceu morada na Rua das Arcas e com ele ficariam morando a dita Leonor Henriques, sua cunhada, com a qual casaria em segundas núpcias e “um sobrinho do mesmo chamado Manuel que Diogo Lopes tinha em sua casa, para lhe vender pelas ruas”.

Em Castela ficou Luís Lopes Penha, que foi preso pela inquisição de Valhadolid ao início do mês de fevereiro de 1702. Obviamente que Diogo Marques e os mais que com Luís se tinham declarado ficaram apreensivos, pois a inquisição espanhola depressa mandaria para a de Portugal cópia das confissões de Luís, o que efetivamente aconteceu.

Antecipando-se à prisão que pensaria certa, Diogo Lopes Marques procurou fugir para Inglaterra, embarcando-se em uma nau daquele país. Veja-se como Graça Henriques, moça de seus 12 anos, que também pretendia fugir, se referiu ao caso, perante os inquisidores:

— Depois de estarem embarcados na dita nau, passados 20 ou 22 dias, foram para a mesma nau, mas para outro camarote, um Diogo Lopes, duas mulheres que não sabe o nome,  uma rapariga e uma criança de que não sabe o nome, que seria de 1 ano e meio, se acomodava em outro camarote, em outro sobrado debaixo da mesma nau, as quais não conhecia mas eram portuguesas, e estavam embarcadas na mesma nau, para irem para os portos de Inglaterra, e desembarcaram na praia do Cais do Tabaco dia de Natal que foi o dia em que os ingleses os trouxeram à dita praia vindo todos embarcados na lancha dos mesmos ingleses.(4)

Graça e os parentes foram presos naquele mesmo dia de natal e logo denunciaram também Diogo Lopes Marques que foi preso em 3 de janeiro seguinte. Veja-se a denúncia feita por Diogo Rodrigues Dias, do Sabugal, “tutor” da Graça:

— Disse que se achou no mesmo navio com Diogo Lopes Marques, castelhano, (…) e a mulher do mesmo, que lhe parece se chama Leonor, e com uma irmã desta e cunhada do dito Diogo Lopes, e estando todos os quatro no mesmo navio, por ocasião de os mesmos não quererem comer uma galinha assada com manteiga, sem dizer a razão, porém ele confitente ficou entendendo que os mesmos a não queriam comer por serem observantes da lei de Moisés, por ele ter ouvido em outras ocasiões, que era proibido na mesma lei comer lacticínios com carne, de cuja prática ele confitente se aproveitou, não mandando, dali em diante, assar carne com manteiga.(5)

Outros passageiros embarcados, em fuga para Inglaterra eram da família dos Medina, nomeadamente Manuel Lopes Pinheiro e Leonor Henriques, sua sobrinha, filha de Isabel Henriques Laguna e Simão Rodrigues Nunes.(6)

Resta dizer que Diogo Lopes Marques saiu condenado em cárcere e hábito no auto-da-fé de 9.9.1703, a que assistiu D. Catarina, que foi rainha de Inglaterra. E depois de penitenciado, acabou mesmo por fugir para Inglaterra, onde aderiu abertamente ao judaísmo.

 

Notas:

1 - ANTT, inq. Lisboa, pº 4551, tif 96.

2 - Idem, tif 45.

3 - Inq. Coimbra, pº 6018, de Violante Nunes.

4 - Inq. Lisboa, pº 532. Graça era filha de Domingos Lopes Ferreira, contratador, e Francisca Lopes, ausentes já em Inglaterra.

5 - Idem, pº 4551, tif 21.

6 - ANDRADE, António Júlio; GUIMARÃES, Maria Fernanda, Judeus em Trás-os-

-Montes A Rua da Costanilha, p. 191, Âncora Editora, 2015. VIEIRA, Carla, Na­tion Between Empires.

 

Inquisição – lutas políticas – limpeza de sangue Em Bragança, os Portilho e os Ferreira

Porventura nenhuma lei exerceu tamanha influência no viver coletivo dos Portugueses como as da limpeza de sangue. De certo modo, a nossa maneira de estar em sociedade foi moldada por essas leis.

E nenhuma outra lei se tornou instrumento de poder tão eficaz como esta, permitindo a uma pequena elite decidir do rumo do país e da vida de qualquer cidadão. Foi esta terrível arma que sustentou o poder político da inquisição, praticamente absoluto, durante quase 300 anos. Com estas leis, a inquisição dominou a sociedade, nos mais diversos sectores, instaurando em Portugal um autêntico reino de medo e terror. Com extraordinário apoio popular, obtido à custa da religião – refira-se.

Medo e terror, não apenas sobre os cristãos-novos, esses considerados, à partida, infetados de sangue herético. Também sobre os outros, os cristãos-velhos, aparentemente tidos como limpos de sangue. Aparentemente, porque, à partida, ninguém era considerado de sangue limpo e para qualquer um que pretendia ascender na escala social a qualquer cargo ou emprego, tornava-se necessário provar que era cristão-velho, provar a sua limpeza de sangue. Se não conseguia provar, o acesso era-lhe negado. 

Para isso, se instruía um processo no tribunal da inquisição, pois só os inquisidores podiam atestar a limpeza de sangue. E bastava alguém, por convicção ou má-fé, dizer que sobre o candidato pairava um rumor de ascendência hebreia para o processo se complicar. E se o pretendente via o pedido recusado, era o gáudio de seus inimigos, que arrastavam o seu nome pela “rua da amargura” – como em Trás-os-Montes se diz. Por vezes, um tal processo tornava-se um sorvedouro de fortunas, prolongando-se as comissões e as diligências por dezenas de anos.

Um caso que estudámos, verdadeiramente exemplar, foi o de Manuel Soeiro de Morais, filho do capitão-mor de Mogadouro. Para se ordenar padre, teve de provar, perante o Sr. Bispo, que era limpo de sangue. Ascendeu depois ao cargo de prior de Monsaraz, no Alentejo. Em julho de 1721, apresentou um requerimento para ser nomeado comissário da inquisição,(1) logo depositando uns 6 mil réis, para abertura do processo.

Iniciou-se o processo com investigações “secretas” em Monsaraz, sobre a personalidade do candidato, seus recursos financeiros, capacidades intelectuais, hábitos e modo de vida, conduzidas por um comissário do santo ofício.(2)

Idênticas investigações em Trás-os-Montes sobre a limpeza do seu sangue.

Nada em contrário foi assinalado nestas investigações preliminares e, por isso, o processo continuou com investigações formais, ouvindo-se, em declarações judiciais, juramentadas, um mínimo de 10 testemunhas.

Como seus avós eram originários de Mogadouro, Azinhoso, Moncorvo e Linhares (Carrazeda de Ansiães), o comissário nomeado para a diligência e o escrivão por este escolhido tiveram de se deslocar a essas terras, e em cada uma delas, fazer um interrogatório rigoroso às testemunhas escolhidas.

Em Torre de Moncorvo, uma testemunha disse que o candidato descendia de uma tal Mécia, vinda de Portilho, próximo de Valhadolid, para Vimioso e foi casar a Bragança, com Francisco Borges.

Foi a entrada num verdadeiro labirinto de investigações genealógicas, que se estenderam a Vimioso, Bragança, Vinhais, Chaves… Valhadolid, Portilho, Cuéllar, Madrid, Barcelona… arquivos paroquiais de muitas terras de Portugal e Castela… arquivos episcopais de Braga e Miranda do Douro…

Em fevereiro de 1739, ao cabo de 18 anos de investigação, à 5.ª vez que o processo foi julgado no conselho geral da inquisição e rios de dinheiro em despesas, pagas pelo interessado, foi o seu requerimento deferido, concluindo os inquisidores que Mécia Portilho era de ascendência “tão antiga como nobre e limpa de fama e mácula”.

Assim, deram como provado que Rui Gonçalves de Gusman, pai de Mécia portilho, fora um dos fidalgos castelhanos que prenderam o rei de Navarra, na “guerra dos comuneros”, em 1521. E derrotados que foram os “comuneros” por Carlos V, Rui Gonçalves fugiu de Espanha com a mulher e a filha. Esta casou em Bragança com Francisco Borges, um dos homens de maior nobreza de Trás-os-Montes com descendentes ilustrando a generalidade das casas nobres trasmontanas.

Obviamente que ao longo do processo ressaltam lutas políticas entre grupos familiares nas diferentes terras, especialmente em Freixo de Espada à Cinta, Torre de Moncorvo e Bragança.

O que não ficou bem clarificada foi a origem da fama de sangue judeu dos Portilho. Segundo algumas testemunhas o boato foi posto a correr logo no início, à data do casamento de Francisco Borges de Meireles com Mécia Portilho, pelos familiares daquele, os quais ambicionavam herdar a sua fortuna, pois era homem muito rico.

Não foi essa a versão apresentada pela generalidade das testemunhas, nomeadamente por José Cardoso Borges, escrivão da câmara e sargento-mor do concelho de Bragança, genealogista de grande seriedade e arguto documentalista. Depois de falar no casamento de Francisco Borges e Mécia Portilho, apresentou os filhos do casal:

Manuel Borges, que viveu em Vimioso e lá tinha descendentes.

Rui Borges Portilho, que foi cavaleiro da ordem de Malta(3) e, em 1537, deixou a sua assinatura “no tombo antigo e escrituras da câmara”, juntamente com o pai, os camaristas e Gonçalo Vaz do Rego, fidalgo de Vimioso.

Maria Borges Portilho, que casou em Torre de Moncorvo, com Francisco de Castro.

Ana Borges de Portilho, casada em Bragança, com Gaspar Mendes de Abreu, comendador de S. Nicolau de Basto, com descendência em Chaves e ligação à família de Martim de Sousa, que foi governador da Índia.

Sobre a fama de sangue infeto dos Portilho, Cardoso Borges e outras testemunhas contaram que tudo teve origem com Francisco Ferreira de Sá, morador em Bragança, comendador de Lamas. Querendo este casar com uma Portilho, viu negadas as suas pretensões e daí resultaram as inimizades.

Temendo-se dos Portilhos, Francisco Ferreira de Sá alcançou, do rei D. João III uma provisão que lhe permitia andar com seus criados armados de chulas.(4) Provisão “que eu vi” – acrescentou Cardoso Borges.

Facto é que dois membros da família dos Portilho foram mortos em uma escaramuça, por Francisco Ferreira de Sá, no sítio de Negreda, termo de Bragança. E por muitas décadas, ou até mais de um século, ele e os seus descendentes guardaram como troféu a lança do crime e disso se orgulhavam publicamente.

Entretanto, a fuga dos Portilhos, de Espanha para Portugal, foi pelos seus inimigos associada à fuga dos judeus, espalhando-se até o boato que a mãe de Mécia Portilho foi relaxada pela inquisição em Valhadolid. E, encontrando-se numa igreja de Bragança a mulher de Francisco Ferreira de Sá e uma mulher da família dos Portilho, aquela a insultou chamando-lhe judia.(5) E esta teria sido a origem da fama da infeção dos Portilho.

 

Notas:

1 - TSO-CG, Habilitações, Manuel, mç. 114, doc. 2083.

2 - Nas investigações deste processo participaram os seguintes comissários da inquisição: João Pinto Cardoso, abade do Felgar; Francisco Luís Henriques, Monsaraz; Gregório Trigo de Magalhães, do Vilarinho da Castanheira; Manuel Matos Falcão, de Braga; António Álvares Moreno, reitor de Mirandela; Roque de Sousa Pimentel, abade de Vinhas; Francisco Jácome Figueiredo, de Soutelo, Lamego; João de Sá Pereira do Lago, comissário em Bragança; José de Sá Pereira Cabral, de Viseu; António Luís Noga, reitor de Alfândega da Fé; Tomás Gomes da Costa, de Sobreiró, Vinhais e Manuel Reis Bernardes, do Porto.

3 - Idem, tif 432: — Consta outrossim, por instrumentos públicos autênticos e antigos, que fazem grande fé nesta matéria e um deles, feito no ano de 1577, que Ruy Borges foi cavaleiro do hábito de S. João de Malta…

4 - Idem, tif 232 — Francisco José Sarmento Lousada disse: — Por serem muitos mais os parentes da tal família dos Portilhos que os parentes do dito Francisco Ferreira de Sá, alcançou este, uma provisão de sua majestade, o senhor rei D. João III, para trazer consigo seus criados armados com chulas e outras armas secretas, enquanto durasse a inimizade do sobredito Francisco Ferreira de Sá com Pedro Álvares, desta cidade, descendente desta família Portilho, cuja certidão tem ele testemunha em seu poder.

5 - Idem, tif 513: — E a razão desta suspeita se funda na grande inimizade que sempre houve entre estas duas famílias dos Ferreira e Portilho, originária de os Portilho não quererem dar uma filha para casar com os Ferreira, de que resultou duas mulheres de ambas as famílias chegarem a rasgar os mantos na igreja do Colégio de Bragança.

Trasmontanos funcionários e agentes da inquisição - Manuel Zuzarte Coelho, de Freixo de Espada à Cinta

Se houve famílias cristãs-novas que foram autenticamente dizimadas pela inquisição, também houve famílias cristãs-velhas formando verdadeiras dinastias de funcionários e agentes do santo ofício e disso se sustentavam, conforme dizia o padre António Vieira. Vemos isso no caso que hoje se apresenta.

Comecemos então por Jorge Pinto Pestana, filho de Francisco Fernandes Neto e de Apolónia Pinta, casado com Apolónia Pereira de Sampaio, todos naturais e moradores em Freixo de Espada à Cinta.

Era tabelião público, cargo que antes fora de seu sogro, Fernão Gonçalves. Em agosto de 1620, requereu a sua admissão como familiar, “visto ser na raia de Castela, por onde muitos da nação se passam ao dito reino”.

Foi encarregado de fazer as necessárias diligências sobre a limpeza de sangue do requerente, o licenciado António Fernandes Ronquilho, sacerdote na igreja matriz, com o padre Gaspar Barroso, reitor da colegiada da mesma igreja, por escrivão da diligência.

Todas as testemunhas afirmaram que, tanto da parte do requerente, como de sua mulher, os seus pais e avós eram cristãos-velhos, puros de sangue, que sempre viveram honestamente e ocuparam cargos honrosos na governança da terra, e o candidato era “homem manso e pacífico, de segredo, verdade e confiança”.

O processo correu com muita rapidez, certamente porque os inquisidores reconheceram urgência em ter informações sobre a fuga de gente da nação para Castela, pela raia de Freixo de Espada à Cinta. De facto, ao fim de 2 meses, foi passada carta de familiar do santo ofício a Jorge Pinto Pestana.(1)

João Pinto Pestana, era filho de Jorge Pinto e sua mulher Apolónia Pereira de Sampaio. Formado em leis, fez carreira na administração pública, iniciada em 1645, no ofício de inquiridor, distribuidor e contador, ao qual renunciou em 1655 “na pessoa que casar com sua filha”. Em 1647 foi nomeado de juiz de fora em Alcácer do Sal. Casado com Helena Meireles, teve uma filha chamada Violante, a qual casou com João Belerma Coelho, que ascendeu também a familiar da inquisição.(2) Não vamos alongar-nos com os cargos e as distinções e tenças outorgadas a seus filhos e filhas.

Vamos antes falar de Manuel Zuzarte Coelho, genro de Jorge Pinto Pestana, marido de sua filha, Antónia Pinta. Falecido o sogro, em 1637, logo ele se apressou a requerer a sua nomeação para familiar da inquisição, nos seguintes termos:

— Diz o licenciado Manuel Zuzarte Coelho (…) que ele, com bom zelo e por se acharem vagos 3 ofícios de familiares do santo ofício, que vagaram por falecimento de Sebastião Barreto,(3) António Saraiva(4) e Jorge Pinto Pestana, sogro dele suplicante (…) e porque também a dita vila está no extremo de Castela onde de ordinário está passando gente da nação, e por não haver mais que um familiar se perdem muitos bons lances, o que ele empreendera por serviço de Deus e por ser bem quisto, fora de arruídos…(5)

Foi encarregado o vigário de Freixo de Espada à Cinta, padre Francisco Nunes, de proceder às necessárias averiguações de limpeza de sangue do candidato e de sua mulher. Todas as 12 testemunhas ouvidas juraram que o pretendente era pessoa competente para desempenhar o cargo, “sem qualquer mácula de sangue judeu, preto, mourisco ou de outra infecta nação” e seus ascendentes “são e foram da principal gente desta terra e hão servido os ofícios honrados nela, como é servirem de vereadores e juízes e provedores da casa da santa misericórdia”.

Devemos acrescentar que o Dr. Manuel Zuzarte era homem muito rico e que a principal fonte de sua riqueza era o fabrico e venda de sedas. E esta atividade, que já vinha de seus pais, prolongou-se pelos seus descendentes, nomeadamente o seu filho, António Zuzarte, que casou com Antónia Pereira em 25.3.1675.

Uma filha de António Zuzarte e Antónia Pereira foi batizada em 14.4.1679 com o nome de Maria Zuzarte, a qual casou em 1695, com seu primo Manuel de Gamboa, filho de António Gamboa e de outra Maria Zuzarte. Também estes viviam abastadamente, do fabrico da seda e tratando-se “à lei da nobreza”.

Manuel Zuzarte Coelho como o avô, se chamou um filho de Manuel Gamboa e Maria Zuzarte, nascido em 29.6.1696 e batizado fevereiro seguinte.

Seguiu a carreira eclesiástica, ordenando-se padre, “do hábito de S. Pedro, confessor e pregador e ecónomo da colegiada da vila de Freixo de Espada à Cinta”. Para além dos bens patrimoniais recebidos dos pais quando se ordenou padre, tinha os rendimentos da profissão, avaliados em 120 cruzados (48 000 réis) e uma capela com bens vinculados no valor de 4 000 cruzados (1 conto e 600 mil réis) que rendia anualmente mais de 130 mil réis, fora das despesas.(6)

Ao início de 1632, contando 36 anos de idade, o padre Manuel Zuzarte Coelho apresentou no conselho geral da inquisição um requerimento solicitando a sua nomeação para o cargo de notário do santo ofício.(7)

As diligências para investigação da limpeza de sangue do candidato e seus ascendentes, foram entregues ao comissário do santo ofício António Luís Noga, reitor da igreja de Alfândega da Fé, natural de Valverde, lugar do mesmo concelho.(8)

Todas as testemunhas ouvidas abonaram as capacidades do candidato, a sua limpeza de sangue com cálculos da sua fortuna à volta dos 6 mil cruzados (2 contos e 400 mil réis) “em boas fazendas”.

Foi despachado favoravelmente o seu requerimento em agosto do mesmo ano de 1632. No exercício do seu cargo, o notário Manuel Zuzarte Coelho foi por diversas vezes encarregado de tarefas de maior responsabilidade, como eram as de comissário do santo ofício, na condução de diligências de habilitação de familiares. Veio a falecer em Freixo de Espada à Cinta em 7.3.1753.

 

Notas:

1 - ANTT/TSO/CG-Habilitações, Jorge, mç. 1, doc. 5.

2 - Idem, Habilitações, João, mç. 24, doc. 566.

3 - Idem, Habilitações, Sebastião, mç. 1, doc. 1611. No requerimento, Sebastião Barreto Varejão escreve: — Porque na dita vila não há nenhum familiar, sendo muito necessário, por haver nela muita gente da nação. A diligência foi conduzida pelo abade de Mós, padre António Martins Barreto, comissário do santo ofício.

4 - Idem, Habilitações, António, mç. 4, doc. 186. António Saraiva era natural de Trancoso, feitor da alfândega de Freixo. Obteve carta de familiar da inquisição em setembro de 1623.

5 - Idem, Habilitações, Manuel, mç. 5, doc. 182.

6 - Idem, Habilitações, Manuel, mç. 104, doc. 1929.

7 - Aos notários do santo ofício existentes em diferentes terras do reino, competia, fazer o rol dos bens sequestrados aos que eram presos pela inquisição e lavrar os autos de venda em hasta pública dos bens necessários para despesas de viagem e alojamento dos mesmos prisioneiros.

8 - Habilitações, António, mç. 66, doc. 1331. Foi-lhe passada a carta de comissário em 19.9.1724.

Nós, trasmontanos, homens da Inquisição - Francisco Fernandes da Guerra, de Freixo de Espada à Cinta

Francisco Fernandes da Guerra nasceu em Freixo de Espada à Cinta, em 4 de agosto de 1713, sendo filho de João Fernandes Morgado e Maria Fernandes Tratária. Fez os estudos elementares na terra natal, com o licenciado Manuel Marques Sá Cardoso por mestre de gramática. Seguiu os estudos superiores na universidade de Coimbra, formando-se em medicina. Regressou a Freixo, obtendo o cargo de médico do partido, que lhe rendia 60 mil réis/ano.

Médico do partido e pessoa bem conceituada, muito naturalmente, o Dr. Francisco procurava ascender na escala social do concelho. Decidiu, para isso, candidatar-se à nomeação de familiar do santo ofício. Nesse sentido, em setembro de 1747 apresentou um requerimento ao conselho geral da inquisição.

Seguindo as normas, foi ordenado ao tribunal de Coimbra que promovesse a busca de informações “secretas” sobre a capacidade do candidato e a sua limpeza de sangue. Algo ao arrepio das normas, tais informações foram solicitadas ao “notário” Manuel Zuarte Coelho que, no caso, assumiu o papel de “comissário”.

A informação foi positiva e o processo continuou, com as investigações judiciais a ser conduzidas pelo também notário padre Francisco Geraldes da Guerra,(1) morador em Urros, investido no papel de comissário e levando como secretário o padre João Gabriel, cura de Ligares.

A inquirição das testemunhas teve lugar na capela do Senhor da Fonte Seca, na vila de Freixo de Espada à Cinta e todas elas, em número de 12,(2) certificaram que o habilitando era homem abonado de bens, competente e de boa vida e costumes, sem a mais leve suspeita de impureza de sangue.

Foi um processo simples e normal, sendo-lhe passada carta de familiar do santo ofício em 20.6.1749.(3) A essa altura contava Manuel Fernandes da Guerra 35 anos e mantinha-se solteiro, médico do partido. Mas logo acertou casamento com Maria Esteves Gemelga, 8 anos mais nova que ele, natural da freguesia de Poiares, filha de Lucas Martins e Maria Pires Morena.

Dada a sua qualidade de familiar do santo ofício, o casamento não poderia realizar-se sem o prévio certificado de limpeza de sangue da noiva, passado pelo conselho geral da inquisição.

O processo teve início com o pedido de informações confidenciais enviado de Coimbra ao notário Manuel Zuzarte Coelho em 30.10.1749 e o pagamento adiantado de 6 mil réis. Hospedado em Poiares, em casa de Pedro Esteves, de Frechas, por 2 dias e meio, o “comissário” Zuzarte inquiriu uma dúzia de pessoas e, no fim, em 15.2.1750, escreveu no seu relatório:

— A dita habilitanda padecia de fama de judia, por parte de seu avô paterno João Pires Moreno, a qual fama não me souberam declarar se era falsa ou verdadeira.(4)

Chegada a Lisboa a diligência feita em Poiares e o relatório do “comissário”, coube ao deputado do conselho geral, Francisco Mendes Trigoso analisar o processo e decidiu:

— Tornem estas diligências à inquisição de Coimbra, para que os inquisidores mandem perguntar judicialmente (…) se a fama de judia é antiga, se moderna, qual a origem dela, se teve princípio em pessoas mal afectas ou maldizentes e que conceito forma da verdade desta fama…(5)

Com esta determinação, o deputado Fragoso enviou também uma nova lista de pessoas de Poiares que deviam ser chamadas a testemunhar. Certamente que os nomes destas testemunhas foram sugeridos pelo requerente, que também pagou as custas da nova diligência.

Voltou o “comissário” Zuzarte a Poiares e as testemunhas ouvidas alinharam pelo mesmo diapasão dizendo que realmente correu fama de que a família de Maria Esteves Gemelga era judia e que a fama vinha do tempo de sua avó Maria Esteves Belita, que tinha uma irmã chamada Catarina Fernandes Belita. No entanto a fama era falsa e nasceu de um episódio bem caricato, que vamos contar, resumindo o que disseram as testemunhas.

Ao tempo em que a Catarina era moça solteira, um clérigo de Poiares quis meter-se de amores com ela e levá-la para a cama. Ela contou aos irmãos, que arranjaram um corno de um boi (alguns diziam carneiro) e lho deram, para que o atirasse ao padre, em público.

Aconteceu por essa altura realizar-se uma festa e procissão pelas ruas da aldeia. O pároco seguia na procissão, debaixo do pálio, com o Santíssimo Sacramento, e o tal clérigo ia à frente do pálio, com o turíbulo na mão, incensando os ares. Chegando a procissão à rua do Barreiro, onde a Belita morava, esta saiu à porta e atirou com o chifre ao padre, acertando-lhe na cabeça.

Obviamente que foi um escândalo enorme e logo muita gente comentou que só uma judia era capaz de fazer uma cena daquelas; que só uma judia poderia interromper uma procissão. Se era grave ofender um clérigo, muito mais era fazê-lo no decurso de uma procissão. A ofensa maior era a nosso Senhor Cristo, que seguia na procissão levado pelo pároco na hóstia do cálice.

Na sequência do escândalo e alcunhada de judia, Catarina não teve outro remédio senão abandonar a aldeia e ir morar para Castela. No entanto, acrescentaram as testemunhas, ela e toda a família eram cristãos-velhos inteiros e em prova diziam que dessa família se ordenaram dois padres: Mateus Borges e António Caldeira de Melo.

Ficou satisfeito o deputado Fragoso com esta segunda diligência, considerando que a fama de judia era falsa e teve princípio “na acção temerária que referem de uma moça desta geração, que, ofendida de algumas palavras atrevidas que lhe dissera um clérigo, lhe atirou ou deu com um corno na cabeça, indo ele em uma procissão incensando com o turíbulo ao Santíssimo Sacramento, do que resultou dizer-se que quem tal fazia devia ser judia”.

Nestes termos, foi concedida autorização ao Dr. Francisco Fernandes da Guerra, familiar do santo ofício, para casar com Maria Esteves Gemelga, em julho de 1750. Resta dizer que ela era já viúva de Pedro Fernandes(6) e dele tinha uma filha, nascida em 1745.

Notas:

1 - ANTT/TSO-CG, Habilitações, Francisco, mç 63, doc. 1206. Francisco Geraldes da Guerra, natural de Almendra, era cura encomendado na igreja de S. Bartolomeu de Urros, Torre de Moncorvo. O facto de serem nomeados funcionários da inquisição de menor categoria, como eram os notários, para proceder a estas diligências, significará que então havia muitos processos de habilitação a decorrer e não havia comissários suficientes para o fazer.

2 - Por curiosidade, diremos que José Domingues Mocanca, de 52 anos, foi uma das testemunhas, o qual fez carreira militar, em terras da América de onde regressou a Freixo em 1737.

3 - ANTT/TSO/CG, Habilitações, Francisco, mç. 70, doc. 1284.

4 - Idem, tif, 137.

5 - Idem, tif, 197.

6 - Pedro Fernandes era filho de Pedro Fernandes Periscalho e Catarina Fernandes Belita, a moça que, supostamente, atirou o galho ao padre.

Nós, trasmontanos, homens da Inquisição - José da Guerra Faria, de Freixo Espada à Cinta

Os familiares do santo ofício eram os civis que, a mando dos inquisidores, executavam as prisões e conduziam os prisioneiros para as cadeias. Nos autos-da-fé, competia-lhes vigiar e acompanhar os réus. E eram também os informadores locais, espias ou “bufos”, como hoje se diz.

Pensar-se-á que era um trabalho sujo e pouca digno. Pelo contrário. Naqueles tempos, era uma grande honra fazer qualquer serviço em nome do santo ofício. E o cargo de familiar era extremamente cobiçado, pelo prestígio social que acarretava. Além de que proporcionava boas vantagens económicas, como era a isenção de impostos, de serviços comunais e militares e autorização para usar armas e vestuário de seda. Em termos simplistas, diremos que o título de familiar da inquisição era mais cobiçado e dava mais prestígio do que o de presidente da câmara ou capitão-mor do concelho.

A criação de uma rede de familiares por todo o país foi o instrumento usado pela inquisição para conseguir o controlo da sociedade e do poder político, tornando-se, em simultâneo, uma instituição verdadeiramente popular. A ponto de os autos-da-fé serem as mais concorridas e participadas festas populares.

Se em 1580 a rede contava apenas com 18 familiares, em 1640(1) o número ascendia 1600 continuando em franco crescimento nos 150 anos que seguiram. De acordo com o decreto publicado em 3.4.1693, a rede de familiares na área de Trás-os-Montes e Alto Douro, foi assim estabelecida: Lamego, 20; Torre de Moncorvo, 6; Miranda, 10; Bragança, 8. Nas restantes sedes de concelho, haveria 1 ou 2, conforme o número de moradores.(2)

Cargo muito cobiçado, era difícil de conseguir, organizando-se um rigoroso processo para a sua admissão. Por vezes demorava décadas e o pretendente gastava fortunas, com sucessivas diligências. Outras vezes era simples, como o caso que hoje apresentamos.

José da Guerra Faria, natural e morador em Freixo de Espada à Cinta, solteiro, de 21 anos, proprietário do cargo de escrivão dos órfãos. Em julho de 1636, apresentou um requerimento no conselho geral da inquisição, em Lisboa, dizendo que “deseja empregar-se em o serviço da santa inquisição, com a ocupação de familiar, porquanto na dita vila e seu termo se não acham mais de 2 e é das mais populosas do reino”. Com o pedido, o pretendente, logo entregou 6 mil réis.

O requerimento foi despachado para Coimbra e dali foi encarregado o comissário Sebastião Carvalho Torres, abade de S. Pedro da Silva, junto a Miranda do Douro, para, “extrajudicialmente, com muita cautela e segredo”, colher informações sobre as condições económicas e a qualidade de sangue de Faria Guerra e seus ascendentes. Sim, que os familiares deviam ser pessoas ricas, das principais da terra e não podiam ter sangue de “judeu, mourisco, negro, mulato, nem de outra alguma infecta nação das reprovadas em direito”.

Foi o comissário a Freixo, secretamente tomar informações, que mandou para Coimbra, escrevendo:

— O habilitando se trata limpa e abastadamente, do rendimento do ofício de escrivão dos órfãos, de que é proprietário e serve, e de outros bens, terá 25 anos, solteiro e não tem filhos. Seu pai tratava em fábrica de sedas e fora alferes de ordenança e seu avô paterno fora sapateiro e tocava charamela na igreja e procissões e o materno fora lavrador.(3)

Entretanto, fizeram-se investigações nos arquivos das inquisições de Coimbra, Lisboa e Évora, verificando-se que nenhum processo ou denúncia existia contra o suplicante e seus ascendentes. À partida, não havia obstáculo de maior e, por isso, o processo podia continuar. Para isso ordenaram os inquisidores de Coimbra que o mesmo comissário fosse a Freixo tomar informações judiciais ouvindo 12 testemunhas juramentadas, as mais idosas, cristãs-velhas, “noticiosas, verdadeiras, desinteressadas e das mais principais”, levando um escrivão de sua confiança, para lavrar os autos.

Por 7 dias assentaram arraiais em Freixo de Espada à Cinta, em casa de Francisco Saraiva do Amaral, familiar da inquisição e capitão-mor da vila, o comissário Torres e o escrivão, padre Gregório Supico. Não vamos referir as testemunhas ouvidas e respetivas declarações que, sobre o assunto, todas foram positivas e elogiosas, revelando-se muito interessantes para o estudo da ambiência económica, social e cultural da terra. Resumindo, diremos que José Guerra se tratava “à lei da nobreza”, vivendo desafogadamente, com 60 mil réis/ano que recebia do emprego de escrivão dos órfãos e dos rendimentos do casal “que ele e sua mãe possuem e tem o valor de 10 a 12 mil cruzados”, (4 ou 5 contos de réis). Para além disso “tratava de mandar compor e fabricar seda a seus criados e obreiros”. Aliás, também o seu pai tinha em casa torno de fiar seda e vendia panos de peneiras.

Em sua ascendência, o menos qualificado e digno, seria o avô materno que era sapateiro. A seu favor pesava, no entanto, o facto de tocar charamela na igreja. O comissário Torres concluiu assim o seu relatório:

— É pessoa de boa vida e costumes, muito capaz para servir o santo ofício (…) somente tem, em um olho um vermelhão, por respeito que, sendo menino lhe nasceu um carbúnculo e ficou com algum defeito, mas que lhe não tira a vista. Este é o defeito que lhe achei.

Como se vê, até o aspeto físico do candidato era esquadrinhado. Resta dizer que o comissário e o escrivão procuraram também os livros paroquiais para deles extrair certidões de nascimento e casamento do pretendente, seus pais e avós. Encontraram apenas alguns registos, muito poucos, apesar das buscas que fizeram nos livros paroquiais, muitos deles já depositados em Torre de Moncorvo, onde o comissário gastou mais um dia.

Claro que o requerente pagou todas as custas: ao comissário, 10 588 réis; ao escrivão, 6 192; notificações, 240. Fazendo contas, verificamos que por dia de trabalho, escrivão recebeu 774 réis e o comissário 1 323,5 reis, ou seja o correspondente a mais de 13 jornas de um operário normal.

Em 1750, o familiar José Guerra quis casar, com Catarina Pereira Meireles. Antes, porém, foi-lhe necessário promover iguais diligências para averiguar a sua limpeza de sangue e modo de vida “à lei da nobreza”, começando logo por depositar 5 mil réis. Da missão foi encarregado o comissário Manuel Zuzarte Coelho, morador em Freixo, que, pouco tempo depois, faleceu.(4) Substituiu-o o comissário José Domingos Espinosa, abade da igreja de Santa Maria de Mós, comarca de Moncorvo que levou o padre Manuel Lopes Pinto, de Carviçais, por escrivão.

O processo foi analisado pelos membros do conselho geral que decidiram passar-lhe carta de familiar em 4.4.1747. Interessante: no dia em que a carta lhe foi passada, um dos membros do conselho encontrava-se ausente. Por isso foi necessário ir a sua casa para assinar, debitando ao pretendente 10 tostões de despesa.

Mais barata ficou a carta de familiar de seu irmão, Amaro de Faria Guerra,(5) passada em 31.8.1753, já que estavam feitas as diligências sobre seus pais e avós na vila de Freixo de Espada à Cinta. Fizeram-se apenas diligências a respeito de sua mulher Maria Luís, essa sim muito rica, herdeira de dois tios padres e possuidora de uma grande casa agrícola em Vilar Chão, onde o casal morava. Resta dizer que Amaro Guerra era formado em medicina pela universidade de Coimbra. A propósito veja-se um naco da informação do comissário:

— É bem procedido e com capacidade para servir a ocupação, trata-se com decência, vivendo de suas fazendas, sem usar de suas letras de medicina.

Veja-se: o curso de medicina não abonava a favor das pretensões do candidato, antes seria um obstáculo à sua nomeação de familiar! Na sociedade de então, gozava de mais nobreza um lavrador que um médico.

 

Notas:

1 - GREEN, Toby, A Inquisição o Reino do Medo, p. 280, Editorial Presença, Lisboa, 2010.

2 - TYPOGRAPHIA Dominici Gonçalves, Opusculum de Privilegiis Familiarium… Ulyssipone, MDCXLVII, Anexo. O decreto não seria respeitado, decidindo os inquisidores casuisticamente.

3 - ANTT, tribunal do santo ofício, conselho geral, habilitações, José, mç. 41, doc. 661.

4 - O escrivão foi o padre Francisco Geraldes da Guerra e o local de audição das testemunhas foi a capela do Senhor da Fonte Seca.

5 - ANTT, tribunal do santo ofício, conselho geral, habilitações, Amaro, mç. 3, doc. 47.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Duarte Chaves (Chaves, 1524-Lisboa, 1559- Relaxado)

A história da família na inquisição é quase tão longa como a do próprio tribunal. Começou logo em 1541, com a prisão do pai, Francisco Rodrigues,(1) nos cárceres do Porto, em tempos de Frei Baltasar Limpo. Antes, porém, conhecera a prisão do mesmo santo ofício, em Valhadolid, terra de Castela. Depois foi a vez da mulher, filhos, netos e mais descendência, ao longo de mais de 200 anos.(2)

Eram 9 os filhos de Francisco Rodrigues, natural de Chaves e Isabel Lopes, de Bragança. Um deles passou à história com o nome de Duarte Chaves, possivelmente porque nasceu e foi batizado naquela cidade, cerca de 1524. Estudaria Leis na universidade de Salamanca e a sua primeira grande intervenção como advogado terá sido em Valhadolid, como defensor do seu pai, uma defesa que ele escreveu em língua castelhana.

Por 1547, foi casar em Miranda do Douro, com Catarina Álvares, filha de Isabel Álvares, originária de Freixo de Espada à Cinta e em casa da sogra, já viúva, ficou morando. Seria uma das casas mais ricas de Miranda do Douro e Isabel uma das pessoas mais prestigiadas. E entre os visitantes famosos contava-se Mestre António de Valença, o físico dos Távoras que ali reunia com os judeus conversos de Miranda e lhes pregava que a vinda do Messias estava próxima.

Foram anos terríveis os de 1544 e seguintes para a nação hebreia de Miranda, com vagas sucessivas de prisões e Isabel(3) foi arrastada logo ao início, denunciada por Mestre Valença. Duarte Chaves, porém, não seria incomodado, até porque ainda estava solteiro e viveria em Bragança com os pais.

Em 1547 regressaram a Mi-

randa os prisioneiros, mercê de um perdão geral decretado pelo papa. Foi sol de pouca dura pois que, na década seguinte, o Nordeste Trasmontano foi varrido por um vendaval nunca visto, nomeadamente as terras de Bragança e Miranda.(4) Assim, nas celas da inquisição de Lisboa, em 1558, foram encerrados os seguintes membros da família:

O Dr. Duarte Chaves; a mãe, Isabel Lopes; o irmão André Ferreira; a irmã Francisca Ferreira; o cunhado, António de Castro; a mulher, Catarina Álvares.

Na cela, em companhia do nosso advogado, meteram os inquisidores um padre açoriano chamado António de Gouveia, que a ele se apresentou como cristão-novo, mercador de Viseu, Francisco Lopes, de nome, preso por judaísmo.(5) Naturalmente que estava ao serviço do alcaide dos cárceres, em trabalho de “espionagem”. Tal como estava um negro, chamado João de Távora que andava pelos corredores fazendo recados e serviços de limpeza. Aquele fora preso por feitiçaria e este por sodomia.

Com falinhas mansas, o falso mercador cristão-novo ganhou a confiança de Duarte Chaves. Convenceu-o de que o melhor era confessar os seus crimes, que logo seria libertado. Chaves pensou na mulher, na mãe e nos irmãos, que estavam noutras celas. Se todos fossem coincidentes nas suas confissões… ganhariam breve a liberdade – acrescentava o padre Gouveia. De resto, o alcaide mostrava-se complacente e dizia-se até amigo do padre. João de Távora, por seu turno, era homem de mão do alcaide e garantia disponibilidade e o mais absoluto segredo. Resta dizer que o alcaide se chamava Brício Camelo, era de Miranda, primo de Amaro da Camelo, de uma das mais enobrecidas famílias. E entre os guardas se destacava um Lopo Godinho, casado na mesma família.

Facto é que o experiente advogado se deixou convencer. Pediu papel e escreveu a confissão que se propunha fazer. E para ser concorde com as confissões da mãe, da mulher e dos irmãos, combinou-se que João de Távora levaria o papel a um e depois a outros para lerem e se apressarem a confessar as mesmas culpas.

Obviamente que o papel foi parar às mãos do alcaide que o levou ao conhecimento dos inquisidores. E depois desta, outras fictícias trocas de mensagens se fizeram entre o Chaves e seus familiares.

Entretanto outros prisioneiros de Miranda tinham já confessado suas culpas e denunciado o Dr. Chaves dizendo que em sua casa se faziam “ajuntamentos” a que ele presidia, ensinando-lhes a lei judaica por uma bíblia que tinha. Alguns acrescentaram que ele pregava a vinda do Messias entre os anos de 1555 e 1560.

Como planeado, Chaves pediu audiência e confessou que andara errado na fé, não acreditando em Jesus Cristo e guardando os sábados de trabalho. Uma confissão muito diminuta, face às denúncias chegadas à mesa e que o davam como “dogmatista” e principal doutrinador judaico em Miranda do Douro, terra onde, no ano anterior à sua prisão, fora vereador da câmara, almotacé e procurador da mesma.

Certo dia, houve alvoroço no pátio da prisão, espalhando-se a notícia que o papa assinara uma bula de perdão aos prisioneiros da diocese de Miranda do Douro, a pedido do respetivo prelado. De imediato, o nosso advogado se apresentou a requerer o cumprimento da bula e a sua libertação.

Não imaginava o Dr. Chaves que o boato fora posto a correr pelo alcaide Brício Camelo e seus comparsas, exatamente para forjar mais uma prova contra ele e outros crédulos prisioneiros Mirandeses. O desengano virou desespero quando o advogado, recebido em audiência pelo inquisidor Campilho, viu nas mãos deste um “correio” que mandara ao seu irmão André Ferreira pelo mourisco António de Távora. Descobriu então que sempre andara enganado pelos dois “bufos”, instruídos pelo alcaide.

Preparou então a sua defesa, revogando as suas confissões e justificando que as fizera, induzido pelo falso padre Gouveia. Acrescentou que foi colocado em situações dramáticas que o fizeram perder o juízo e alterar a sua capacidade de raciocínio. Contou que, com a complacência ou conivência do alcaide, Lopo Godinho e o guarda Teixeira dormiram e tiveram relações sexuais com a sua mulher, prometendo-lhe que, em troca, seria concedida a liberdade ao seu marido. E o desplante foi a tanto que levaram Catarina Álvares à porta da cela de Duarte Chaves, a dizer que fora ela a pedir que dormissem com ela, em troca da libertação do marido! Brício Camelo seria o arquiteto responsável de todas as prepotências e abusos, concluindo Chaves, com a seguinte e perentória afirmação:

— Em suas mãos, do alcaide, está muita parte da prisão e livramento dos presos destes cárceres ou a sua condenação.

A defesa não lhe foi recebida pelos inquisidores, justificando estes que o objetivo do processo era apurar se ele cometera ou não os crimes de judaísmo de que era acusado. O próprio advogado de defesa o abandonou escrevendo para os inquisidores:

— Vossas Mercês façam justiça, que eu não tenho mais que dizer da parte do réu e já o admoestei e lhe disse o que sentia da causa.

Reclamou Duarte Chaves pedindo que a sua defesa fosse enviada ao inquisidor-mor, o cardeal D. Henrique. Inútil. A defesa não lhe foi recebida. Antes foi decretado que, como herege e apóstata, fosse “relaxado à justiça secular”, eufemismo usado para dizer que estava condenado à morte na fogueira, o que aconteceu no auto-da-fé de 24.10.1559.

 

Notas:

1 - ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… Jornal Nordeste, n.º 1031, de 16/8/2016.

2 - ANDRADE e GUIMARÃES, Jacob de Castro Sarmento, ed. Vega, Lisboa, 2010.

3 - Isabel foi presa em Évora em 1544 (ANTT, pº 9020) e em 1555 em Lisboa (pº 3115). No primeiro saiu em virtude do perdão geral e no segundo foi absolvida, por falta de provas.

4 - De Miranda do Douro estavam então presas 25 pessoas, 7 das quais pertenciam ao clã dos Costanilha-Pimparel. ANDRADE e GUIMARÃES, Judeus em Trás-os-Montes, A Rua da Costanilha, p. 131, Âncora editora, Lisboa, 2015.

5 - ANTT, inq. Lisboa, pº 6105, de Duarte Chaves; pº 5158, de António Gouveia; pº 10855, de João de Távora. António Gouveia era mudado de cela logo que obtinha as confissões dos companheiros, ou que algum desconfiava do seu papel de “bufo”. Assim, algum tempo depois, encontramo-lo feito companheiro de cela de outro prisioneiro de Miranda do Douro: o médico António Fernandes.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Isabel Henriques (Miranda do Douro, c. 1602) 

Ao tempo em que o Prior do Crato e o rei Filipe II disputavam o trono de Portugal, João Lopes Freire tomou o partido do rei castelhano. Devia ser homem de influência entre a população de Miranda do Douro, já que, em reconhecimento dos seus serviços foi elevado à categoria de “escudeiro fidalgo” e contemplado com a tença de 20 mil réis. Foro e tença passaram, para o seu filho, Pedro Nunes Freire, a requerimento deste, feito em 1602.(1)

Pedro Nunes foi meirinho da correição de Miranda, o mais alto posto, do ponto de vista policial, responsável pela manutenção da ordem e execução das leis, na área da comarca de Miranda, que abrangia quase toda a Terra Fria Trasmontana.

Pois foi com este Pedro Nunes que Isabel Henriques casou e deles nasceram 5 ou 6 filhos, o mais velho dos quais teria menos de 12 anos quando ele faleceu e Isabel ficou viúva, a morar na Rua da Costanilha, em uma casa que confrontava com as de Francisco Henriques e com a de Maria Lopes, a Cardosa.

Sobre a situação da casa de Isabel temos vários testemunhos que nos dão curiosas informações de natureza social e espírito bisbilhoteiro que levava à devassa da vida privada dos cristãos-novos. Um desses testemunhos, foi prestado por João Fernandes Borralho, um alentejano de Serpa que em Miranda se fixou:

— Disse que um dia pela manhã, ao nascer do sol, olhou por uma fresta que tem a casa em que vivia, e em um quintal de Isabel Henriques, viu a mesma em uma janela que fica sobre o mesmo quintal, e que ela tinha, em uma das mãos, uma erva que estava em um cesto na mesma janela e ela, olhando para o céu, para a parte do nascente, e bulindo os beiços, como que rezava; e tornava a olhar para a erva e colhia dela uma folhinha e tornava a olhar para o céu, como antes, e se recolheu. E ele reparou nisto, por ser cristã-nova e o disse a Maria Ramos, sua ama e a Marta Nunes, sua vizinha, mulher de João Martins. E depois ele olhou por mais 3 ou 4 manhãs e sempre via que Isabel Henriques se levantando da cama, ao parecer dele testemunha, fazia as mesmas cerimónias ao nascer do sol (…) e as cerimónias duravam meio quarto de hora e de onde ele e as sobreditas pessoas observavam, a dita Isabel Henriques não podia vê-los.(2)

Claro que o testemunho foi confirmado pelos outros, acrescentando João Martins que a pequena fresta por onde espreitavam era na parede da loja do Borralho “e a janela onde Isabel Henriques se põe, se não descobre de outra parte da cidade senão da fresta, porque ficam casas em redor sem janela para aquela parte”. João Martins terminou com a declaração seguinte e bem significativa do ambiente de espionagem que na cidade se vivia:

— Os parentes de Isabel Henriques todos fugiram para Castela e a cidade tem olho em Isabel Henriques e diziam que só faltava ela ser presa.

Esta denúncia foi feita em Miranda do Douro, ao início de setembro de 1646, em um sumário conduzido pelo notário da inquisição Francisco de Chaves. No entanto, o objetivo do mesmo sumário era provar que Isabel ia a fugir para Castela, com medo de ser presa pela inquisição. Vamos contar.

Tendo a inquisição prendido Francisco Henriques, a mulher e a filha Ângela, ficaram em Miranda, “ao Deus dará” as duas filhas mais novas. E então, Isabel Henriques e Maria Lopes, a Cardosa, suas vizinhas, tomaram conta das meninas. Tempos depois, as quatro, dirigiram-se à Quinta de Vale da Águia, meia légua distante da cidade, caminho de Castela. E alguém que as viu ir, espalhou a notícia dizendo que iam a fugir da inquisição. E logo foram no encalço das “fugitivas”, com soldados que as detiveram e levaram para a cadeia de Miranda, dando notícia ao corregedor da comarca.

Isabel e Cardosa eram acusadas de “encaminhar” as meninas para Castela, ao encontro da irmã mais velha que vivia em Alcañices, casada com Tomás Henriques. Defenderam-se elas dizendo que apenas iam em romagem à igreja da Senhora da Encarnação, mais conhecida naquele tempo, por Nossa Senhora dos Bertolos.

Ao fim de 3 dias foram libertadas mas, 3 anos depois, o assunto voltou a ser falado, no sumário de Francisco Chaves. Porém, o ponto mais interessante deste sumário e desta investigação foi assim colocado pelos inquisidores de Coimbra:

— Nós, inquisidores, fazemos saber ao licenciado Francisco Chaves, notário do santo ofício da cidade de Miranda que nesta Mesa há informação que os cristãos-novos dessa cidade, na ocasião em que se prende alguma pessoa pelo santo ofício, mandam à pessoa presa um novelo com agulhas espetadas e entende que o fazem para que as pessoas presas não confessem.(3)

Efetivamente, ficou provado que era usual mandar aos presos um novelo de linhas com agulhas espetadas, não para coserem os vestidos mas em forma de aviso para coserem a boca e não denunciar os que remetiam o novelo. Também esta foi uma acusação feita a Isabel Henriques pela mulher do carcereiro de Miranda, que testemunhou:

— Haverá um mês que, estando presa no aljube uma mulher por nome Maria Lopes Cardosa (…) foi ao aljube uma mulher por nome Catarina, que anda em casa de Isabel Henriques, que da parte da mesma, deu à dita presa um papel em que iam dentro linhas com agulhas, dizendo-lhe que dizia sua senhora que tomasse aquilo e se encomendasse a Deus e fizesse como mulher, o qual recado deu estando ela presente; e a presa respondeu que Deus lhe pagasse o que lhe havia feito e que vivesse muitos anos e começou a chorar. E disse que Isabel Henriques estava muito triste a temerosa de ser presa também.(4)

Outra culpa lançada sobre Isabel Henriques respeitava a um acontecimento ocorrido 20 anos atrás, em 1628, quando morreu seu irmão, Manuel Henriques e o amortalharam à maneira judaica e praticaram outras ritualidades nas quais participou também Isabel Henriques. E neste aspeto, também o seu processo ganha importância para o estudo das ritualidades funerárias entre os marranos de Miranda do Douro.

Isabel Henriques foi presa em 3 de outubro de 1646. Por 4 anos sofreu nas celas da inquisição de Coimbra, saindo levemente penitenciada em cárcere a arbítrio dos inquisidores, no auto-da-fé de 9.7.1650.(5)

No mesmo ano, condenada pelo mesmo tribunal em 5 anos de desterro para Angola, saiu Joana Henriques, filha de Isabel, casada com Gregório Mendes.

Notas:

1 - ALVES, Francisco Manuel – Memórias Arqueológico Históricas… tomo VIII:61.

2 - Inq. Coimbra, pº 10350, de Isabel Henriques, fl. 53.

3 - Idem, fl. 33.

4 - Idem, fl. 39.

5 - Idem, pº 8222, de Joana Henriques.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Francisco Henriques (Miranda do Douro, c. 1583-Castela, c. 1646)

Filho de Manuel Pires e Isabel Fernandes, Francisco Henriques nasceu em Miranda do Douro, pelo ano de 1583. Casou com Ana Rodrigues, da conhecida família dos Mogadouro. A sua casa, de dois pisos, avaliada em 60 mil réis, situava-se a meio da Rua da Costanilha, confrontando da parte de baixo com a de Isabel Henriques.(1) No r/chão funcionava a sua loja de mercador e seria a mais forte da cidade, a avaliar pela mercadoria arrolada. Assim, no que respeita a tecidos, havia-os de variada espécie: estopa (pano grosso de linho), canequim, bombazine, beirame (tecido da Índia), lenço de Arouca, cassa, beatilha, rengo, panos de Colónia… bem como retrós e botões. De especiarias, ali se vendia canela, incenso, pimenta, cravo, açúcar, tabaco… ao lado do azeite, da cera ou das cordas… E também confeitos, sidra ou caixas de marmelada, tal como sacos de farinha, de trigo ou centeio.(2)

Escusado será dizer que o abastecimento da loja, em produtos importados, era essencialmente feito a partir de Lisboa, pelas empresas do cunhado, António Rodrigues Mogadouro, com o qual tinha largas contas.

Para além disso, Francisco Rodrigues também era rendeiro, trazendo arrendada, ao “contador de Tomar” a comenda de S. Cipriano de Angueira, que era da Ordem de Cristo. E emprestava dinheiro, como se depreende dos objetos de ouro e prata que tinha em seu poder, empenhados.

Dois acontecimentos marcaram a vida deste homem e da sua família. Um deles aconteceu no verão de 1638. Subia Francisco a Rua da Costanilha e, à porta da sua vizinha, Isabel Henriques, estavam estacionadas 3 juntas de bois, jungidas e com os respetivos carros atrelados. Perguntou se era seguro passar. Responderam-lhe que sim, que os animais não atiravam. Porém, aconteceu o contrário e um dos animais acertou um coice na perna de Francisco Henriques e partiu-lha, ficando meio ano em casa a curar e manco para o resto da vida. E com isso ganhou mesmo a alcunha de “Manco”.

O outro acontecimento foi em 1640, em um dos últimos dias do mês de setembro, dia em que calhou o Kipur e coincidiu com o primeiro dia de uma novena que faziam a Nossa Senhora do Rosário, cuja festa se celebrava em Miranda no primeiro domingo de outubro. Ao sair da novena, rezada na Sé, um grupo de rapazes chefiados por dois padres, dirigiram-se para a Rua da Costanilha e foram à porta de Francisco Henriques e “lhe deram grandes matracas” e o grito de ordem era:

— Viva a Nossa Senhora do Rosário e morra a Rainha Ester!

Referiam-se ao facto de os moradores da Costanilha terem celebrado nesse dia o Kipur vestindo fatos “domingueiros”, jejuando e deixando de trabalhar. E especialmente, a uma das 4 filhas de Francisco, chamada Ângela Henriques, acerca do que, um tal João Pires, o Patudo, de alcunha, cristão-velho, diria o seguinte:

— Reparou que (…) no tal dia andavam vestidos de festa, que não trabalhavam e que Francisco Henriques e sua mulher tinham muito enfeitada a sua filha solteira maior, com as melhores joias que tinham, e que a faziam de Rainha Ester, dia que eles festejavam em sua honra e jejuavam, esperando por sua estrela…(3)

Este acontecimento iria provocar um verdadeiro furacão que se abateu sobre a Rua da Costanilha: 40 moradores foram levados para as masmorras da inquisição e muitos deles ali encontraram a morte. Foi o caso da mulher de Francisco, sentenciada no auto-da-fé de 15.11.1643 e nesse dia assada na fogueira do santo ofício.(4)

A prisão de Francisco Henriques e de sua filha, a “rainha Ester” foi decretada em 22.12.1642,(5) sendo entregues em Coimbra em 9 de janeiro seguinte, por Lucas Freire de Andrade, irmão do inquisidor Cristóvão de Andrade Freire.

Um dos companheiros de cela chamava-se Francisco Nunes. Dizia-se judeu mas na verdade era padre, estava preso por sodomia e tornou-se delator. O seu testemunho mostra-nos o estado de espírito de Francisco:

— Disse que Francisco Henriques, em algumas práticas que teve com ele lhe disse que todos os cristãos-novos de Miranda lhe haviam de ter grande respeito, que ainda que viessem presos, o não haviam de culpar (…) e os mais cristãos-novos esperavam o perdão geral (…) e que sua mulher lhe dissera que tivesse bom ânimo, e que se boa fazenda tinha, que a acrescentasse e fizesse melhor porque, ainda que a queimassem e fizessem em carvão, não o havia de descobrir nem culpar; e os outros cristãos-novos daquela terra o mesmo haviam de fazer porque bastava ser um homem velho e manco a quem teriam respeito.(6)

Na verdade, ao cabo de um ano de prisão, o ânimo faltou-lhe e ele próprio confessou suas culpas, dizendo que fora levado para a lei de Moisés por sua irmã. Vejam:

— Disse que haverá 10 anos, em Miranda, se achou com Catarina Vaz, sua irmã, já defunta, casada com Belchior Pires; e estando ambos sós, lhe disse a dita Catarina Vaz que seu marido viera de Roma e estivera na Judiaria e lhe parecera melhor a lei de Moisés que a fé de Cristo e que se passasse ele confitente à crença da dita lei, porque era boa para salvar a alma; e parecendo bem o que lhe ensinava a dita sua irmã, se passou (…) e em casa da dita Catarina Vaz sua irmã se achou com ela e com sua mulher Ana Rodrigues e com Ângela Henriques sua filha e com Isabel Henriques também sua filha casada com Tomás Henriques,

moradores em Alcanices…(7)

Deve acrescentar-se que a casa e quintal de Catarina Vaz era local privilegiado de reunião em sinagoga dos marranos da rua da Costanilha. Sobre o assunto, apresentamos a seguinte confissão de Joana Fernandes:

— Disse que sabe que as pessoas que abaixo nomeará guardam o sábado porque de 5 a 6 anos a esta parte via ela confitente Catarina Vaz (…) vizinha dela (…) e nos sábados de trabalho se punham no seu quintal, vestindo os melhores vestidos… e todas as ditas pessoas, de 5 anos a esta parte vira ela confitente ora umas pessoas ora outras entrar na casa e quintal da dita Catarina Vaz…(8)

Resta dizer que, Francisco Henriques foi condenado em cárcere e hábito, regressando a Trás-os-Montes em dezembro de 1643. Não voltaria, porém, à sua morada, na rua da Costanilha. Antes se foi viver para Mogadouro, conforme informação, de 1654, de António Henriques, membro de uma rede de passadores de judeus, estabelecida em Vimioso:

— Haverá 8 anos se achou ele confitente no Mogadouro, em companhia dos ditos Lucas Ferreira, Pedro Álvares e Gaspar Mendes e ajudou a passar para Castela a Francisco Henriques, cristão-novo, tratante, viúvo, não sabe de quem, mas era natural de Miranda do Douro, morador no Mogadouro e levava consigo duas filhas solteiras, uma de 20 anos (Mariana) e outra de 15 anos (Micaela). E por esta passagem deram a ele confitente e aos companheiros 10 mil réis.(9)

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 10350: – O rev. Manuel de Oliveira, cónego da sé, disse que (…) a dita Isabel Henriques vive na Rua da Costanilha; pela parte de cima, paredes meias, vivia Francisco Henriques e pela parte de baixo vivia a Cardosa.

2 - Idem, pº 4510, de Francisco Henriques, tif 92-95.

3 - Idem, tif 24.

4 - Idem, pº 4990, de Ana Rodrigues. Segundo a descrição de um padre capuchinho francês, em Coimbra, os condenados à morte eram levados à meia-noite, para o areal da ponte e ali metidos, cada um dentro de uma casota feita de madeira e gesso, à qual deitavam fogo. PEREIRA, Isaías da Rosa – Clio, Auto de fé de Coimbra de 14 de junho de 1699.

5 - Idem, tif 45. Juntamente com Francisco e Ângela foi decretada a prisão de Jerónimo Henriques, Manuel Henriques, André Ramires e Santiago Mendes.

6 - Idem, tif 48-49.

7 - Idem, tif 109-110.

8 - Idem, tif. 14.

9 - Idem, pº 5931, de António Henriques.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Beatriz Henriques (Azinhoso, c. 1580 – Lisboa, d. 1645)

Nasceu no Azinhoso, Mogadouro, cerca de 1580, sendo filha de Henrique Fernandes e Beatriz Lopes. Casou em Miranda do Douro, com Luís Lopes, então já viúvo e cerca de 20 anos mais velho. Em dezembro de 1618, ambos foram presos e levados para a inquisição de Coimbra, saindo penitenciados em cárcere e hábito em 29.11.1621.(1)

O casal vivia essencialmente da preparação de peles e venda de solas, para o que dispunham de uma dúzia de “pelames” e três “tinarias”, na ribeira do Fresno, junto à ponte. Mas também cultivavam a terra, podendo considerar-se médios agricultores, já que, quando foram presos lhe sequestraram uns 200 alqueires de trigo e 20 de cevada, 22 colmeias e 250 almudes de vinho, guardados em 5 cubas, conforme referido no inventário feito à data da prisão.

A casa de morada era na Rua da Costanilha e foi avaliada em 60 mil réis, confrontando de uma banda com a de Pedro Henriques e da outra com Jerónimo Henriques.(2)

Quando foi presa, Beatriz ia grávida e na cadeia gerou uma menina. Terá sido batizada com o nome de Antónia Lopes, encontrando-se, anos mais tarde, a viver em Medina de Rio Seco, casada com o Dr. Manuel Fernandes, um médico de Miranda do Douro formado pela universidade de Salamanca em 1633, a crer na informação dada pelo irmão Jorge.(3) Dele e dos outros filhos do casal vamos dar breve notícia:

André Lopes, nascido por 1699, mantinha-se solteiro e trabalhava com o pai.

Joana Henriques era casada com António Lopes, mercador, e o casal estava emigrado em Múrcia, reino de Castela.

Henrique Lopes, tendeiro, casado com Jerónima Garcia, vivia em Miranda do Douro.

Francisco Lopes era morador em Carção, onde fora casar com Ana Lopes.

Casado com Maria Lopes, irmã da anterior, estava Jorge Lopes Henriques, nascido por 1610, que foi preso pela inquisição em 1638, em seguida aos acontecimentos de Quintela de Lampaças e depois fugiu para Itália fixando-se em Livorno.(4)

A filha Maria Lopes, a essa altura estava em Lisboa, casada com Francisco Rodrigues, o marquês, de alcunha. E estes tinham dois filhos, de 10 e 4 anos, respetivamente, chamados Diogo e António Rodrigues Marques.(5) Em 1674, depois que a inquisição prendeu seu cunhado e sobrinhos Mogadouro, Maria Lopes fugiu para Inglaterra com o filho Diogo e a nora, Marquesa Rodrigues. Em 1677 ainda vivia em Londres, sendo referida nos testamentos dos ditos filho e nora.

Voltemos atrás, e acompanhemos Beatriz Lopes e o marido no regresso a Miranda do Douro, depois que saíram das celas da inquisição, vestidos com o humilhante saco amarelo decorado com a cruz vermelha. Por isso mesmo, em data incerta, Luís Lopes ter-se-á internado por Castela, a mercadejar, e ali construiu uma nova identidade passando a chamar-se Luís Carmona de Medina. Apesar da vergonha, Beatriz conseguiria refazer sua vida e dar-se ao respeito. A ponto de ganhar a confiança de pessoas como o cónego prebendado da Sé, Rev. Luís Álvares do Vale, que testemunhou a seu favor quando foi presa segunda vez, juntamente com 5 outros moradores da Rua da Costanilha, em 8.8.1643. E estas prisões marcaram o início de uma nova operação de limpeza da cidade.

Nenhuma denúncia específica foi feita contra Beatriz Henriques, antes foram denúncias iguais aos outros moradores da Rua da Costanilha. Foram 3 os denunciantes, cristãos-velhos: um homem e duas mulheres. Estas eram criadas de servir e aquele era o único cristão-velho morador naquela Rua, então a mais nobre e comercial da cidade. Chamava-se Francisco Pires, Trovisco de alcunha. E terá ficado despeitado quando pretendeu comprar uma casa junto à sua, mas foi preterido em favor dos vizinhos cristãos-novos. A ponto que, ele terá dito publicamente:

— Para o ano em qualquer casa ele quisesse morar na rua da Costanilha, ele faria despejar, porque haviam de prender todas as pessoas da nação.

Em substância, os três denunciantes disseram a mesma coisa e as palavras textuais do Trovisco terão sido as seguintes, conforme foi escrito no processo de Beatriz:

— Disse que geralmente na Rua da Costanilha, todas as cristãs-novas varrem as casas de fora para dentro às sextas-feiras, que ele vê; e que aos sábados saem com camisas lavadas.

Um pouco mais colorido foi o testemunho de Catarina Vaz:

— Disse que era verdade que, no tempo que serviu na Rua da Costanilha, pelo ver, que em casa de Francisco Esteves, Alonso de Leão, Gaspar Álvares, Manuel Mendes, Francisco de Castro, Luís Lopes, Diogo Lopes, Belchior Lopes mandam varrer as casas de fora para dentro e que às sextas-feiras mandam varrer as casas, alimpar e compor as candeias e vestiam camisas lavadas e se penteavam (…) e que nas sextas-feiras faziam o comer para os sábados, porque nos tais dias se não acendia o lume senão para quentar o comer (…) E as mulheres dos sobreditos se punham de capelos lavados e se vestiam de festa e não trabalhavam…

Embora as culpas fossem comuns aos outros cristãos-novos da Costanilha, a verdade é que em Beatriz ganhavam particular gravidade porque ela já fora penitenciada. Era relapsa e… para “acabar de atar os molhos” – como em Trás-os-Montes se diz – quando se viu de novo enclausurada em Coimbra, Beatriz meteu-se a fazer jejuns judaicos, certamente pedindo ao Deus dos Céus que a livrasse da prisão. Três dos seus jejuns foram vigiados e descritos no processo. Ganham interesse para o estudo dos comportamentos e gestos e alimentação dos prisioneiros. Veja-se um trecho, descrevendo uma ceia:

— Sendo já de noite e as estrelas no céu, pôs no regaço um pano e ali colocou um pão e trouxe de outra panelinha que tinha umas verduras cozidas as lançou em um prato, lançando-lhe azeite e vinagre e as comeu quase todas sem pão e depois comeu o dito pão e ovo, também com azeite e vinagre e ao cabo de comer bebeu um púcaro de água e depois tomou o pano e embrulhou e lançou sobre uma tábua que tinha posta na parede da casa.

De resto, o seu processo, para além de mostrar um pouco do viver quotidiano de Miranda do Douro, dá-nos algumas informações curiosas. Assim, ficamos sabendo que um casal de cristãos-velhos da aldeia de Cércio ia diariamente a Miranda a vender leite e o vendiam todo na Rua da Costanilha. E também nos fala de umas colchas brancas “que se fazem na dita cidade” de Miranda.

Em sua defesa, Beatriz apre-

sentou contraditas certeiras, lo-

go identificando os denunciantes e provando que eram seus inimigos. De pouco adiantou. Foi condenada à morte. E como a essa altura importava muito à inquisição provar a sua força, perante o rei D. João IV, nada melhor que organizar um grande auto-de-fé. E para o auto ser mais empolgante, foram levados réus de outras inquisições para Lisboa. Foi o caso de Beatriz Henriques, uma das 2 mulheres que, juntamente com 9 homens foram queimadas no auto-da-fé de 25.6.1645.

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Marquesa (Sara) Rodrigues (Lisboa, c. 1640 – Londres, d. 1677)

Filha de António Rodrigues Mogadouro e sua mulher Isabel Henriques, Marquesa recebeu o nome da avó paterna, tendo nascido em Lisboa, ao final década de 1640, casando, por 1660, com seu primo Diogo Rodrigues Marques.

Em 1674, depois que a inquisição prendeu seu pai e dois irmãos, Marquesa e Diogo fugiram para Londres, com os 4 filhos que então tinham, o mais velho de 14 anos. Naquele país seria bem acolhida e com acesso à própria Corte, facilitado pelo facto de o seu pai ter sido um dos empresários portugueses que contribuíram para o extraordinário dote de casamento de Catarina de Bragança com o rei Carlos II de Inglaterra, no montante de 2 milhões de cruzados (800 contos de réis!).(1)

Mais facilitado ainda, depois que Isabel, a filha mais velha de Marquesa, casou com o Dr. Fernando Mendes da Costa,(2) médico da Corte. Aliás, a própria rainha foi madrinha da filha mais velha de Isabel e Fernando, batizada por isso com o nome de Catarina (1678-1756). Catarina casou com seu primo Antony Costa (1667-1747) e estes foram os pais de Rachel, que, em 1714, casou com António Lopes Suasso, um dos homens mais ricos do seu tempo. Outra filha de Fernando e Catarina chamou-se Leonor, a qual casou com José da Costa e estes foram os pais de Kitty, que veio a desposar José da Costa Vila Real.

Voltemos a Marquesa Rodrigues que, chegada a Londres, abraçou abertamente o judaísmo, tomando o nome de Sara Henriques. Por 1675, ficou viúva e em fevereiro de 1677, estando de perfeita saúde e inteiro juízo, escreveu pela própria mão o seu testamento. É um documento de muito interesse pelas relações que deixa transparecer. Por isso o publicamos na íntegra, agradecendo ao arquiteto canadiano Sir Georges Richard Henriques, que no-lo facultou, com autorização de publicação. Vejam:

— À minha filha Raquel(3) deixo 200 libras esterlinas, para benefício de minha alma, e que fique bem esclarecido que devem ser repartidas durante 7 ou 11 meses, não só pelos pobres deste país, mas também onde houver necessitados. E com o mesmo objetivo deixo 15 libras, para ser colocada na sinagoga uma candeia acesa.

Deixo 10 libras a Daniel Rodrigues, para comprar roupas aos filhos.

Para Silva Aarão deixo 20 mil réis que lhe devem ser entregues e a minha filha Rachel os enviará para Portugal.

O resto que se encontrar em minha casa, como sejam, joias, dinheiro ou mercadorias deve ser dividido igualmente entre os meus filhos, exceto as coisas que nomeio e que não devem ser incluídas na dita divisão.

À minha filha Rachel deixo a nossa bacia grande de prata, um jarro com flores e duas salvas, também com flores e a nossa muito bonita carpete da Índia.

Também deixo à minha filha Ester(4) o nosso cesto grande de flores.

Deixo à minha filha Ribka o nosso bonito cesto e uma colcha trabalhada.

Ao meu filho Isaac Marques,(5) se ele tiver bom comportamento, deixo a corrente de ouro e um cesto de flores. Se ele não melhorar o seu comportamento, não será contemplado com as divisões acima mencionadas e também não receberá nada desta casa.

Ao meu filho Jacob(6) deixo a nossa grande medalha de ouro com duas correntes.

Ao meu filho Moisés Marques deixo os nossos cordões de ouro e um cordão de diamantes.

O resto das joias, pérolas e prata devem ser igualmente repartidas pelas minhas filhas, mas os bens de minha filha Rachel não devem ser incluídos nesta divisão.

Ao meu cunhado António Rodrigues Marques deixo um anel com 3 diamantes, que foi encomendado em Middlemost Benny a Isaac Álvares, e um candeeiro de 9 lâmpadas.

À minha filha Ester deixo a melhor colcha que se encontrar em minha casa.

Para a minha tia Sara Henriques(7) não encontro nada suficientemente bom para lhe deixar. E como guardiã dos meus filhos, ela deve gerir o meu testamento; e peço que seja mais amorosa com os seus netos do que tem sido até ao presente, e que haja com as pobres crianças mais como uma avó do que como uma madrasta.

À minha irmã Branca(8) deixo um anel de diamantes e uma rosa feita em Portugal e uma carpete da Índia de veludo e prata.

Para a minha irmã Beatriz deixo outro anel de diamantes e uma carpete da Índia.

Mais declaro que, se alguma tiver falecido, devem ser entregues a meus filhos e algumas esmolas devem ser dadas pelas suas almas.

Para a minha irmã Violante Henriques,(9) um anel de diamantes.

Para a minha sobrinha M. Elizabeth Asser, 4 libras, saias, blusas e coifas.

Para a minha criada Tallid deixo 5 libras.

As minhas roupas devem ser divididas pelas minhas filhas.

Sobre os negócios é meu desejo que os mesmos devem prosseguir, mas que Ralph de Lis não deve fazer outra coisa senão regularizar as contas e comprar algumas mercadorias, mas não sem aprovação de meu primo Joseph Henriques, declarando que assim se proceda até que o meu primo António Rodrigues Marques tome conta da administração desta casa.

Para a filha da mencionada Tallis, Sara, deixo uma colcha da Índia e um cesto de flores.

 

Notas:

1 - SERRÃO, Joel – Dicionário de História de Portugal, vol. 1, Livraria Figueirinhas, Porto.

2 - Fernando Mendes da Costa era originário de Trancoso. Nasceu por 1647 e foi levado ainda jovem para França, onde estudou medicina na universidade de Montpelier. Para além de médico da rainha de Inglaterra, o Dr. Fernando Mendes ficou ligado à descoberta de um famoso remédio chamado “Água da Inglaterra”. Faleceu em 26.11.1724 “sem mais doença que a sua muita idade, havia semanas que tinha vindo à minha casa, tão debilitado que entendi não podia durar muito tempo, testou de cento e dez mil libras esterlinas que importa em moeda do nosso reino em um milhão e cem mil cruzados”, conforme escrevia para Lisboa o embaixador António Galvão Castelo Branco.

3 - É o nome judeu adotado por Isabel, nascida em Lisboa por 1660.

4 - Ester é o nome judeu adotado por Ana, nascida em Lisboa por 1671.

5 - Trata-se de Francisco, nascido em Lisboa, por 1662.

6 - Nasceu em Lisboa, por 1672 e foi batizado com o nome de José.

7 - Sara Henriques é o nome judeu de Maria Lopes, sogra de Marquesa, nascida em Miranda do Douro e que ali casou com Francisco Rodrigues. Com dois filhos pequenos (António e Diogo Marques) o casal rumou a Lisboa. Ali, falecendo Francisco Rodrigues, Maria Lopes e os filhos ficariam sob a tutela de António Rodrigues Mogadouro. Não sabemos se terá ido para Londres com o filho e a nora.

8 - Não imaginava que sua irmã era falecida 6 meses antes, em 28.8.1676) nas masmorras da inquisição, sendo relaxada em estátua no auto-da-fé de 16.8.1684.

9 - Morreu de parto na cadeia da inquisição em 18.2.1674, um mês depois que ali deu entrada. Foi relaxada no mesmo auto.