António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Henrique Nunes (n. Madrid c. 1620)

Henrique Nunes nasceu por 1620 na vila de Colmenar, arredores de Madrid e ali foi batizado. Foram seus pais Francisco Nunes, de Torre de Moncorvo e Ângela da Veiga Nunes, natural de Viseu.(1) Pelos 11 anos vivia em Jaén, onde seu pai o terá iniciado na religião judaica e onde também foi crismado, como verdadeiro cristão. Posteriormente, a família ter-se-á mudado para Ciudad Real, terra da Andaluzia.

Em 1635, Henrique Nunes deixou Castela e veio para Portugal, a viver em casa de seu tio paterno, Jorge Nunes,(2) em Vila Flor. O tio Jorge era casado com Branca Dias e o casal não tinha filhos. Com eles vivia Inês Dias, sobrinha de Branca. Muito naturalmente seguiu-se o casamento de Henrique Nunes e Inês Dias a quem, por certo, foi logo destinada a herança do mesmo tio, falecido poucos anos depois.

Breve se apresentava ele como um mercador “de tenda grossa” e homem de cabedal. Muito viajado e frequentando as mais diversas feiras, ele conhecia muita gente e andava em deslocações constantes “pelo reino, com seu trato de comprar e vender e dar provimento à sua loja que tem na dita vila”.

Ao findar da década de 1640, as comunidades hebreias de Trás-os-Montes sofriam um verdadeiro arraso, por parte da inquisição. E, baseados nos testemunhos de António Lopes Álvares, do Mogadouro, Diogo Lopes, de Chacim e Francisco Brandão, de Torre de Moncorvo, presos em Coimbra, com quem Henrique Nunes se terá declarado seguidor da lei de Moisés, os inquisidores decretaram a sua prisão. Deu entrada na cadeia de Coimbra em 17.3.1651, ali conduzido pelo familiar Manuel Coelho de Azevedo, de Torre de Moncorvo.

Correu o seu processo com bastante celeridade, pois ele entrou logo a confessar seus erros e denunciar seus cúmplices. Saiu no auto-da-fé de 14.4.1652, condenado em cárcere e hábito perpétuo, significando isso que, no regresso a Vila Flor, tinha de se apresentar vestindo o sambenito e com ele ir à missa aos domingos e outros dias santos.

Era uma situação humilhante e Henrique, como outros mais, procurava escusar-se o mais possível ao cumprimento da pena, metendo-se em constantes viagens de negócios. Obviamente que os olhos dos esbirros da inquisição, beatos e padres que em Vila Flor havia, andavam em cima dele e a notícia chegou a Coimbra. E dali foi expedida uma carta que, na rua pública foi entregue ao destinatário, o padre Domingos Pimentel, conforme ele próprio escreveu na resposta:

— Hoje, 3 de agosto (1652), recebi uma carta de Vossas Mercês em que se me ordena faça e obrigue a Henrique Nunes, desta vila a cumprir sua penitência, na forma da dita carta. Tanto que me foi dada, logo fiz diligência por ele e achei ser partido para Lisboa há dois dias. A dita carta fica em meu poder e tanto que ele vier, farei toda a diligência com a pontualidade que farei todas as mais que da parte do santo ofício me forem mandadas…(3)

Henrique Nunes só voltou a Vila Flor quase um ano depois, a crer na informação do padre Pimentel, que dava para o facto uma explicação. É que a carta do santo ofício lhe foi entregue em público, quando estava com outras pessoas e na ocasião lhe exigiram um registo de entrega da mesma. E isso fez logo levantar a suspeita de que a carta respeitava ao comportamento de Henrique Nunes. Este terá sido avisado e, por isso, concluía o dito padre, em mais uma missiva para a inquisição:

— Se ausentou há coisa de 11 meses, entrando e saindo ocultamente desta vila, sem eu o poder admoestar e que fizesse o termo. E porque me constou que não trazia a penitência imposta por VV MM, nem tão pouco acudia às missas, antes vendia fazenda de raiz sem necessidade e se desfazia da tenda que tinha, publicando seus amigos que ele se ia para Castela, e confessando-o a sua própria mulher e filhos.

Logo que pôde, o padre não esteve com meias medidas. Arranjou testemunhas a confirmar que Henrique estava a preparar a fuga para Castela e, no cartório do notário apostólico de Vila Flor, padre Gaspar de Meireles Almeida, mandou fazer um “auto de fuga”(4) que enviou para Coimbra.

Em simultâneo, também o sambenitado escreveu aos senhores inquisidores uma longa exposição dizendo, nomeadamente:

— Vindo ele suplicante do Vimioso, onde andou cobrando certas dívidas, no mesmo dia, o padre Domingos Pimentel e seu tio Belchior Rodrigues Pimentel, juiz ordinário, por serem seus capitais inimigos, e bem o mostram, pois sem ser cura nem pároco, amotinando o povo, com o dito seu tio prenderam a ele suplicante, sem lhe dizerem a causa nem porquê.

Com esta carta mandava uma certidão assinada pelo padre António Gil, cura da igreja matriz, em como ele cumpria a penitência indo à missa com o sambenito, confessando-se e comungando como obrigação cristã. De resto, justificava alguma falta escrevendo que “lhe é necessário algumas vezes ir a Lisboa, Porto, Lamego e outras partes comprar fazendas em que trata, para sustentar sua mulher e família, porque de outro modo perecera a pura necessidade”. E queixava-se de possíveis testemunhos falsos do padre Pimentel e “outros muitos seus apaniguados, que são capitais inimigos dele suplicante” e terão dado informações falsas aos senhores inquisidores. E a súplica que fazia era como que um desafio ao tribunal: que o mandassem soltar e deixar ele ir a justificar-se e a provar a sua inocência ou então que mandassem um comissário da inquisição a averiguar se tinha alguma culpa e merecia algum castigo, pois o padre Pimentel não merecia confiança.

Pragmáticos, os inquisidores ordenaram ao padre Pimentel que mantivesse o preso por 8 dias e que da cadeia fosse levado por 2 oficiais de justiça à igreja em dois dias santos a ouvir missa, vestido com o sambenito. As custas com os mesmos oficiais de justiça seriam pagas pelo réu.

Henrique Nunes tinha a cobertura do padre Gil mas, para maior eficácia e menos escandalosa se tornar, certamente de combinação entre ambos, Henrique queixou-se ao vigário-geral da comarca dizendo que o padre Gil, cura da igreja, se negava a passar-lhe a certidão que, naquele ano, precisava mandar para a inquisição. Claro que o padre Gil logo a passou “em cumprimento do despacho do reverendo vigário-geral”, em 27.4.1653.

Nota-se bem que entre o padre Pimentel e o padre Gil haveria uma luta surda mas intensa. E se aquele era um executor de ordens da inquisição, este teria mais apoio no paço arcebispal de Braga, pois fora nomeado cura da igreja matriz, lugar antes ocupado pelo outro. E agora, a propósito, saboreiem um naco de prosa enviado pelo padre Domingos para a inquisição em 9.8.1653:

— Suspeitando ele (padre Gil) que eu tinha ordem de VV. MM. para lhe fazer cumprir sua penitência, o meteu, domingo passado, de madrugada, no coro para de lá ver a missa e depois lhe dar certidão. Disto sabem os padres António Correia, Gaspar Meireles, Manuel Correia e António Luís, que iam ao coro cantar a missa como de costume. E o dito que serve de cura, lhe proibia que fossem ao coro porque tinha lá fechado Henrique Nunes; e eles padres porfiando, com provança de força, abriram a porta e acharam dentro Henrique Nunes, a um canto do coro, coberto com a capa. Este clérigo António Gil já em outro tempo, tirando o vigário-geral desta comarca, Paulo Castelino de Freitas, uma inquirição secreta, meteu um Diogo Henriques Julião debaixo de uma escada, de onde ouviu tudo…

Nota - No próximo texto veremos o desenvolvimento do processo de Henrique Nunes.

 

Notas:

1 - Ângela da Veiga, em 1629 morava em Viseu, sendo presa pela inquisição de Coimbra. Saiu no auto-da-fé de 17.8.1631. ANTT, pº 9969. Para além de Henrique, Ângela e o marido tinham 5 filhos vivos, todos casados, todos morando em Castela.

2 - Henrique Nunes tinha mais 2 tios paternos casados, moradores em Torre de Moncorvo, 1 em Vila Flor, 1 em Vilar Torpim, 1 em Ciudad Real e 1 em Cidade Rodrigo.

3 - Inq. Lisboa, pº 2747, de Henrique Nunes.

4 - Testemunharam neste auto: Manuel Alvarenga, homem nobre, de 58 anos; Sebastião Coelho Meireles, filho do anterior; Francisco Borges de Lemos, homem nobre, morador em Freixo de Espada à Cinta, capitão de ordenanças e Gregório Montes Coelho, homem nobre, capitão de infantaria. Veja-se um pouco das declarações deste último: — Sabe que o dito Henrique Nunes se deixou penhorar nas casas de viver e outra mais fazenda, por quantia que bem pudera remir com móveis e o não quis fazer; de onde se presume que é conluio e que os homens da nação desta vila, quando se querem ausentar do reino, se deixam executar, como poucos dias há, fez um Manuel Mendes da dita vila, que se foi para Castela.

Inquisição – lutas políticas – limpeza de sangue (8) - Manuel Lobão Telo, candidato a Familiar

Se bem que em Portugal nunca houvesse uma lei geral e única sobre a limpeza de sangue, a verdade é que todas as instituições da igreja e do estado aprovaram regulamentos proibindo a entrada dos que tinham “raça de sangue judeu, cristão-novo ou mouro”.(1) Na prática, os cristãos-novos foram banidos de todas as dignidades e empregos da igreja e do estado.(2)

E se isto acontecia na generalidade das instituições (ordens militares e religiosas, confrarias, universidades, câmaras municipais, organismos do estado…), muito mais rigor se exigia para entrar em cargos e empregos ligados à inquisição.

E se ter sangue judeu era uma nódoa impossível de lavar, conseguir um atestado de limpeza de sangue era uma grande honra e a marca de um estatuto social de acesso difícil e muito restrito, “um trunfo de valor imaterial incalculável na sociedade portuguesa” de então.(3) Com esta lei, a inquisição alcançou o poder absoluto dentro do país, dominando a nobreza e o clero.

Numa comparação muito grosseira, diremos que, num concelho qualquer de Trás-os-Montes, ser familiar da inquisição era muito mais importante do que ser presidente da câmara, juiz ou alcaide do castelo. E se a um membro da nobreza era exigida prova de limpeza de sangue para receber o colar de cavaleiro da ordem de Cristo, por exemplo, muitos fidalgos cavaleiros houve, professos de uma ordem militar ou religiosa, a quem foi recusada a entrada para o cargo de familiar da inquisição, por ter fama de “mácula” de sangue judeu.

Em Vila Flor, no século de seiscentos, uma família que pretendia afirmar a sua nobreza e ascensão social era a dos Montes de Almeida que, por acaso, estava “infetada” de sangue judeu. E vários membros desta família foram presos pela inquisição, no âmbito da “conjuração” de 1667.

Gregório Montes de Almeida, escrivão dos órfãos em Vila Flor, foi um dos prisioneiros e acabou por morrer nos cárceres de Coimbra.(4) Sendo casado com Maria de Sousa, teria um filho de uma tal Maria de Lobão, cristã-velha, padeira de profissão, batizado com o nome de Manuel Lobão Montes, o qual casou com Maria de Almendra, também ela infamada de ter sangue judeu. O casal morou na aldeia de Samões, nos arredores de Vila Flor.

Dos filhos deste casal de Samões, conhecemos dois: um rapaz (Clemente Lobão) e uma rapariga (Mariana de Lobão). Esta casou com João Leite e ficaram morando em Samões. Um filho destes quis ser padre e, usando embora métodos bem pouco ortodoxos, não o conseguiria, ao menos numa primeira tentativa, porque não obteve certidão de limpeza de sangue.(5)

Clemente Lobão, ao contrário da irmã, deixou Samões e Vila Flor e foi assentar morada em Serpa, onde casou com D. Isabel da Conceição. Deixou cair os sobrenomes paterno e materno, de Montes e Almendra, passando a chamar-se Clemente Lobão Telo. E conseguiu ascender à classe da nobreza, agraciado com o título de cavaleiro fidalgo da ordem de Cristo.

Como foi possível conseguir certidão de limpeza de sangue, se as exigências para entrar na Ordem de Cristo eram bem maiores do que para se fazer padre? Veja-se a explicação dada, anos mais tarde, pelo comissário António Luís Noga,(6) abade da igreja matriz de Alfândega da Fé:

— Clemente Lobão, para ser cavaleiro, chamou-se neto de Lopo Machado Pereira, com quem não tinha parentesco, e para esse fim comprou testemunhas, buscando para isso as de menos obrigações. E se diz que o cavalheiro é escrivão e que o habilitaram com testemunhos subornados.(7)

Lopo Machado era efetivamente cristão-velho e capitão-mor de Vila Flor, executor das ordens do santo ofício e liderava o “partido dos nobres” contra o “partido dos cristãos-novos”.

Manuel Lobão Telo se chamou um filho de Clemente Lobão Telo e D. Isabel da Conceição. E se o pai conseguiu, através de uma operação de limpeza de sangue, ascender à classe da nobreza e categoria de professo da ordem de Cristo, o filho propôs-se um objetivo mais difícil e mais prestigiante: a nomeação para familiar da inquisição.

Para o efeito, apresentou um requerimento que os deputados do Conselho Geral da Inquisição despacharam em 11.8.1730 mandando fazer averiguações em Vila Flor (e em Serpa, naturalmente) sobre a natureza do seu sangue. No seu requerimento, Manuel Telo dizia ser filho de Clemente Lobão Telo, neto paterno de Manuel Lobão de Melo e “bisneto pela mesma parte, de Lopo Machado Pereira, cavaleiro da ordem de Cristo, familiar do santo ofício, natural e morador que foi em Vila Flor”.

O encarregado de fazer as averiguações preliminares foi o licenciado António Luís Noga, acima apresentado, comissário da inquisição. Este, depois de se referir ao caso do parente de Samões que desejava ser padre, comentou, admirado:

— Havendo todas estas razões e um labéu tão público, me parece temeridade pretender Manuel de Lobão Coelho ser habilitado pelo santo ofício.

Acrescentou que Clemente de Lobão “nunca, enquanto viveu em Samões, se chamou Telo, nem tal apelido lhe pertence” e que não tinha qualquer laço de parentesco com Lopo Machado Pereira.

Informou ainda sobre os parentes de Manuel Lobão Montes que, por 1667, foram processados pela inquisição de Coimbra, nomeadamente o pai, Gregório Montes, o tio, Francisco Montes de Almeida e os filhos deste, Francisco Montes, Maria Borges, e Ana Monteza ou Almeida.(8)

Sobre Francisco Montes de Almeida, refira-se que ele se dizia cristão-velho e era morador na rua das Barreiras, em Torre de Moncorvo, onde estava casado com Maria Borges. Em Vila Flor possuía uma casa de sobrado e duas térreas na rua de Santa Luzia. Vivia de sua fazenda constituída por muitas e boas propriedades, espalhadas pelos termos de Vila Flor e Torre de Moncorvo, algumas delas vinculados a uma capela, como era o caso de um pomar e um olival sitos a S. Paulo, limite da vila de Moncorvo.

De sua mulher, tinha dois filhos e a filha Joana Borges. Fora do casamento, teve vários filhos, nomeadamente o Francisco Borges e a Ana Monteza, filhos de Maria Gomes e Isabel Nunes, respetivamente.

E para encerrar este conjunto de artigos sobre a “conjuração de Vila Flor”, diremos que também os filhos do boticário Manuel Alvarenga foram prisioneiros da inquisição de Coimbra entre 1667 e 1673.(9)

Contudo, a prisão que maior espanto causaria foi a de António Domingues de Madureira, “que se tem em conta de cristão-velho, de 32 anos de idade”. Era filho de Manuel Azevedo de Castro, de Torre de Moncorvo, neto de outro António Domingues de Madureira, também de Torre de Moncorvo, da casa dos morgados de Santo António, sobrinho de Maria de Madureira, casada com Belchior Pinto Pereira, capitão-mor do Mogadouro e aparentado com outra gente de grande nobreza de Mirandela e outras terras da região.(10)

De resto, em Vila Flor a luta política dos cristãos-novos para entrar no governo da vila e na vida da igreja terminou nessa altura pois todos os que se não “tinham em conta de cristãos-velhos” abandonaram a terra e foram dar vida a outros chãos. E Vila Flor entrou em decadência.

 

Notas:

1 - O debate foi particularmente vivo dentro da ordem dos Jesuítas. A pressão para que a limpeza de sangue fosse implementada envolveu a própria Corte de Madrid, num movimento contra a admissão de “impuros” chefiado pelo cardeal arcebispo de Toledo. A resposta da ordem foi exemplar: escolheram para suceder ao fundador, Inácio de Loyola, um assumido converso, filho de judeus: Diego Laynez, que tinha 3 irmãos padres e uma irmã freira. Mais tarde as coisas mudaram e a lei foi mesmo assumida dentro da ordem – LACOUTURE, Jean – Os Jesuítas, vol. I, pp. 217-234, cap. VII, Judeus e Jesuítas no século de Ouro.

2 - MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro – História da Inquisição Portuguesa 1536 – 1821, p. 176, ed. A Esfera dos livros, Lisboa, 2013.

3 - Idem, p. 177.

4 - O processo de Gregório Montes não consta das listas da Torre do Tombo.

5 - Veja-se a propósito, a informação do comissário António Luís Noga: – Maria de Lobão, irmã legítima de Clemente Lobão, casada com Jorge Leite, moradores em Samões, pretendem ordenar um filho, e que já tiraram duas vezes habilitações, pelo ordinário de Braga, sendo as segundas tiradas por um desembargador que se mostrou tão empenhado, que não quis levar certidão do processo, e o vigário de Coimbra lhe não pediu rol de testemunhas, e mandou vir o pároco coadjutor de Vilas Boas, que passasse certidão; inda se não puderam tirar limpos… – ANTT, Habilitações Incompletas, doc. 4268, de Manuel Lobão Telo.

6 - Idem, Habilitações, mç. 66, doc. 1331, de António Luís Noga, filho de António Domingues Moreno e Maria Luísa Noga. Carta de comissário em 19.9.1724.

7 - Habilitações Incompletas, doc. 4268.

8 - Inq. Coimbra, pº 4758, de Francisco Montes de Almeida; pº 6054, de Joana Borges; pº 8757, de Francisco Montes; pº 10291, de Ana de Almeida.

9 - Idem, pº 620, de Belchior Coelho Meireles; pº 9021, de Sebastião Coelho Meireles; pº 8746, de Ângela Coelho.

10 - Idem, pº 8755, de António Domingues Madureira.

 

Inquisição – lutas políticas – limpeza de sangue (7) - Os filhos do capitão-mor Álvaro Morais de Ataíde

Todos os 3 filhos do capitão-mor Álvaro Morais Ataíde (Francisco, Maria e Catarina) foram presos pela inquisição em fevereiro de 1667, vítimas da “conjuração” urdida pelos cristãos-novos contra a gente da nobreza de Vila Flor. E é nos processos de Maria de Morais de Ataíde e Francisco Morais Ataíde, seu irmão, que podemos ver com toda a nitidez os pormenores e os autores de tal “conjuração”.

Desde logo pelo teor das denúncias, absolutamente coincidentes e manifestamente preparadas. Seria o caso de Constança Rodrigues e Filipa Jerónima, que se apresentaram em Coimbra em 27.2.1667 e, dali regressadas, abalaram para Castela. Ambas disseram que “haverá 6 anos e um mês” (…) em casa da mãe de Filipa Jerónima (…) celebraram a páscoa comendo pão asmo (…) juntamente com os 3 filhos do capitão-mor e que estes tinham parte de cristãos-novos, sendo ainda seus parentes.

Provaram os Ataídes que tudo fora planeado por Diogo Henriques Julião, o qual “lhe dissera que quando fossem a Coimbra fossem tão ajustados no que dissessem, que havia de igualar as coisas como dois dedos juntos, e nisto pusera os dedos um junto do outro, dizendo que assim haviam de dizer as coisas ajustadas, que não desmentissem umas das outras”.

Igualmente provaram que “vindo-se acusar (…) os filhos

de Domingos Fernandes, Miguel, Belchior e Luísa e sua cu­nhada Filipa e Jerónimo e sua sobrinha Constança e pelo assim fazer, foram logo para Castela industriados pelo Diogo Henriques”.(1)

Para além disso, Maria de Morais apresentou provas em como Diogo Henriques não se limitou a organizar a “conjuração” com os cristãos-novos de Vila Flor mas, inclusivamente, angariou testemunhos falsos de cristãos-novos de Chacim, Vimioso e Freixo de Numão,(2) gabando-se aquele de que os nobres de Vila Flor “não hão-de ser soltos por não conhecerem as pessoas que lhe formaram as culpas, por serem de várias partes”.

Fica assim muito claro que a luta política entre cristãos-velhos e cristãos-novos em Vila Flor não só continuava, mas ganhou mais intensidade com a “conjuração” que levou às masmorras do santo ofício uma grande parte da gente da nobreza de Vila Flor, que, no dizer de Francisco Ataíde “entendia ser cristã-velha (…) mas não sabia se por esta via tem ou não alguma parte da raça de cristão-novo”.

Também não resta dúvida que a causa próxima da “conjura” foi a prisão de 35 cristãos-novos ao início do mês de novembro de 1664 e a causa remota foi assim descrita pelo mesmo Francisco Morais Ataíde:

— O pai do réu, capitão-mor, e seus parentes e homens nobres e graves de Vila Flor, vendo que Diogo Henriques e seus parentes se queriam intrometer em quererem tomar em si o governo da terra, assim no secular e quererem servir nos ofícios da justiça e nas prisões; com muita ousadia e atrevimento, pegarem e tomarem as varas do pálio; o pai do réu e parentes acometeram e ajuntaram os mais cristãos-velhos e nobres de Vila Flor e aí jogaram muitas pancadas e cutiladas, aonde os acutilaram a todos e cada um deles, e fizeram á força recolher e meter em suas casas e com efeito nunca mais nenhum deles pegou em varas do pálio. E disso o pai e parentes do réu e todos os homens nobres de Vila Flor, vendo a soltura com que o dito Diogo Henriques e seus irmãos e parentes e todos os cristãos-novos se haviam e com o muito atrevimento e ousadia se intrometiam para servirem ofícios principais da república e governança; como também quererem tomar as varas do pálio, o pai do réu que nisso mais insistiu, obteve uma provisão de Sua Majestade para que nenhuma pessoa que fosse cristã-nova ou que tivesse parte alguma da nação, não servissem mais na dita vila ofícios principais nem da governação, de sorte que os privaram assim das varas do pálio como servirem em ofícios de governação, nem de juízes, nem vereadores, nem outros semelhantes.(3)

Promotores da lei da limpeza de sangue, os nobres de Vila Flor, acabariam por sofrer duplamente os efeitos da mesma. Por um lado, sendo denunciados como judeus pelos cristãos-novos, sofreram todos os horrores das cadeias do santo ofício. Por outro lado, necessitando de atestados para se habilitarem a cargos públicos ou títulos honoríficos, viram seus pedidos recusados. Foi o que aconteceu com José Morais Beça, neto de Maria de Morais Ataíde que, 100 anos depois, em 6.2.1769 pediu uma “certidão por onde conste que sua avó Maria de Morais Ataíde, que foi presa por essa inquisição, saiu pura, sem condenação alguma”. Recebeu como resposta que sua avó tinha parte de cristã-nova “pelo que nos parece não ter lugar a certidão pedida”.(4)

Voltemos a Francisco de Morais Ataíde para dizer que quando foi preso pela inquisição, morava em Torre de Moncorvo em casa situada junto à Fonte do Concelho. Mas tinha comprado há pouco uma quinta no sítio das Gamonitas, na zona da Vilariça, junto à Quinta do Carrascal, por 100 mil réis e nela começado a construir as casas. Trata-se da atual Quinta do Ataíde, propriedade da família Symington, uma das mais interessantes do Douro Superior.

Os processos da inquisição constituem também uma importante fonte para o estudo da sociedade. A título de exemplo, veja-se esta interessante confissão feita por Catarina do Sil,(5) trasladada no processo de sua irmã, Maria de Morais Ataíde:

— Disse que haverá 6 anos, em Vila Flor, em casa de sua sogra futura, Maria Coelho de Madureira, viúva de Jerónimo de Morais Beça, homem nobre, se achou com ela e com uma filha da mesma chamada Maria Coelha, defunta, e com Maria do Sil Sampaio, cristã-velha, casada com Francisco Morais Ataíde, parte cristão-novo, irmão dela confitente, e com Maria de Morais, sua irmã dela confitente, casada com Jerónimo de Morais Beça, homem nobre, e com uma moça chamada Maria, parte cristã-nova, filha bastarda, e com Maria, solteira, filha de um lavrador (…) e as duas moças chamadas Marias se admitiram por se não acharem outras que tivessem o nome de Marias.

— E estando todas 10, por conselho de sua tia Maria de Morais, fiaram esta e as ditas pessoas e mandaram tecer, cortaram e fizeram no mesmo dia uma camisa de pano de linho cru, por se dizer que era boa para preservar de morte violenta e de outros males quem a trouxesse vestida, sendo fiada e tecida por 9 Marias. (…) Era para a darem ao dito seu irmão Francisco de Morais, agora preso, o qual naquele tempo andava muito receoso que o matassem ou mandasse matar Domingos Afonso Galego, governador da cavalaria da província de Trás-os-Montes, por se dizer que entrara em casa deste, a ter conversação ilícita com uma mulher mulata do mesmo. (…) E depois da dita camisa feita e acabada a levaram, ela confitente e as outras 9 mulheres, no mesmo dia, sendo de noite, à igreja da Misericórdia, da própria vila, onde tocaram com ela nos pés de uma imagem de Cristo nosso senhor, que costuma ir com a cruz às costas na procissão dos Passos, e depois a mandaram ao dito seu irmão que naquele tempo assistia homiziado no mosteiro dos frades de S. Francisco, de Torre de Moncorvo.

Voltando a Maria de Morais diremos que ela saiu no auto-da-fé de 12.3.1673, onde abjurou de leve. Era casada com Jerónimo de Morais Beça, homem nobre, feitor geral das alfândegas de Trás-os-Montes. Ao sair da cadeia, a prisioneira devia 149 mil e 900 réis, de alimentos e custas do processo. O marido fez então uma exposição pedindo que tal dívida lhe fosse perdoada, uma vez que provou estar inocente e ser presa por falsas denúncias. Veja-se a informação que os inquisidores de Coimbra deram para o inquisidor-geral decidir:

— Parece-nos que, em razão dos serviços que fez a esta inquisição seu sogro, o capitão-mor de Vila Flor, pode Vossa Senhoria mandar ao suplicante que pague 80 ou 100 mil réis e se lhe perdoe o mais.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 9302, de Maria de Morais Ataíde.

2 - Inq. Coimbra, pº 209, de Francisco Morais de Ataíde: — E no tempo em que a viúva de Dinis Álvares e Manuel Ferreira seu genro e Francisco Ferreira, cunhado de Genebra Alvim estavam presos e depositados em Freixo de Numão, veio ter com eles Diogo Henriques Julião, de Vila Flor, a falar com eles, a mandar-lhe recados que, sem dúvida, foi para os advertir que culpassem o réu e seus irmãos e parentes.

3 - Idem.

4 - De contrário, Manuel Ricardo de Morais Beça, filho de José Morais, obteve, em 13.12.1754, um alvará de mercê de um emprego público. Os tempos eram outros. Na chefia do governo estava já o marquês de Pombal. – Registo Geral das Mercês, D. José I, liv.8, f. 424.

5 - Inq. Coimbra, pº 8759, de Catarina do Sil.

Inquisição – lutas políticas – limpeza de sangue (6) - Pedro Morais Sil, homem da nobreza

Para além do conde de Sampaio, que vivia geralmente em Lisboa, junto à Corte, o homem de maior poder no concelho de Vila Flor era o capitão-mor. Por isso, os inquisidores lhe encarregavam a execução das tarefas mais importantes (e mais rendosas, acrescente-se).

Assim, no seguimento das prisões de Diogo Henriques Julião e de seu pai, Julião Henriques, terá sido o capitão-mor Lopo Machado(1) que, em 1652, coordenou a vaga de prisões que então se registou na terra, por parte do santo ofício. Tal como em 1664 aconteceu com o capitão-mor Álvaro Morais de Ataíde que, além da execução das prisões, foi responsável pela condução de uma leva de prisioneiros até Coimbra.(2)

Obviamente, o capitão-mor e seus familiares foram então colocados na lista dos inimigos capitais da gente da nação de Vila Flor. E nos planos da “conjuração” por estes urdida, se bem que dissessem publicamente “que desde S. Luzia, que é no cimo da vila, até S. Sebastião, que é o fim da dita vila, não havia de ficar nenhum homem nobre que eles não fizessem vir presos pelo santo ofício”, é certo que especialmente “todos ali conjuraram de dar em os filhos e parentes do capitão-mor Álvaro Morais de Ataíde”.

Para além dos filhos, entre os parentes do capitão-mor, foram assim, presos dois cunhados do mesmo, irmãos de sua mulher, chamados Pedro Morais Sil(3) e António Sil Morais,(4) em janeiro de 1667.

Pedro Sil tinha 52 anos e mantinha-se solteiro. Morava em Moncorvo, sendo proprietário do ofício de escrivão da câmara.

Nascido em Vila Flor, ali frequentou a escola, segundo informação de Manuel Borges,(5) alcaide (menor) do castelo de Moncorvo. Seu pai chamou-se Diogo Borges, meio cristão-novo, natural de Moncorvo, feitor e guarda-mor das alfândegas.

A mãe, Maria do Sil, cristã-velha, era natural de Vila Flor.

Andaria pelos 18/20 anos, quando Pedro Sil se mudou para Moncorvo, para casa de D. Ana Borges, irmã de sua avó, Maria Nunes de Meireles. Dela herdou um grande olival sito no Rego da Barca, avaliado em 200 mil réis, sob compromisso de duas missas por ano. Nicolau Lobão, irmão das anteriores deixou-lhe um olival e terra de lavoura, avaliado em 100 mil réis, no sítio de N.ª Senhora da Teixeira, também com a obrigação de duas missas/ano por sua alma. Aliás, todas as propriedades de sua grande casa agrícola, se situavam no termo de Moncorvo. Como curiosidade do seu inventário, diga-se que ele tinha 5 vacas de renda(6) em mãos de lavradores do termo.

Em Torre Moncorvo Pedro Sil obteve o emprego de meirinho da correição e nessa qualidade foi enviado pelo corregedor João Medeiros Correia a Vila Flor, em devassa por causa de um Manuel da Mesquita que fora preso, por bestialidade, e fugira da cadeia. Dessa devassa resultou a condenação de Julião Henriques e seu cunhado Dinis Álvares. Estes recorreram para a Relação do Porto, que os absolveu. Ficou, no entanto, semeada a desavença entre Pedro Sil e os Juliões.

Tais desavenças agravaram-se anos depois quando António do Sil, seu irmão, e Rodrigo Fernandes Julião, se envolveram em luta, na praça pública, frente à câmara, dizendo-se que António Sil andava amancebado com Isabel Jerónima, a “pássara-gaga”, cristã-nova, a qual terá depois sido induzida por Diogo Julião a ir a Coimbra, denunciar os Sil por judaísmo.

E esta não foi a única a apresentar-se em Coimbra e denunciar Pedro Sil. Com ela, entre outros mais, foram também a sua irmã, Filipa Jerónima e Constança Rodrigues. Veja-se um extrato do depoimento desta:

— Disse que há 10 anos, em Vila Flor, em sua casa, se achou com seu parente em terceiro grau de consanguinidade, via materna, António Sil, casado com Maria Aguirre, e com Pedro Sil, irmão, filhos de Diogo de Morais, meio cristão-novo e de Maria do Sil, que tinha parte de cristã-nova, (…) e na ocasião de seus parentes lhe darem algum dinheiro para lhes fazer jejuns judaicos, em razão de saberem de outras pessoas, que ela confitente vivia na lei de Moisés; e António do Sil nas ocasiões do jejum do dia grande dava dinheiro a ela confitente para lho fazer, por sua intenção.(7)

Pedro Sil foi preso em janeiro de 1667. Nessa altura desempenhava o ofício de escrivão da câmara “quando podia” e “ia para a câmara em besta de albarda e às vezes em um jumento”, no dizer de um vizinho. Como se vê, era um homem de muitos achaques e, nem mesmo para o enterro de sua mãe, uma dúzia de anos antes, voltou a Vila Flor. Obviamente que usou esta justificação para dizer que as testemunhas mentiam quando afirmavam que em Vila Flor o viram fazer cerimónias judaicas, “de 30 anos a esta parte”.

De resto a sua defesa foi organizada em função da luta política entre os cristãos-novos e os homens nobres de Vila Flor, apresentando-se ele próprio como verdadeiro cristão “mordomo das confrarias das Chagas e das Almas, aonde não entram senão homens nobres, cristãos-velhos e dos principais da terra, e irmão dos nobres na casa da santa Misericórdia de Torre de Moncorvo e dos 12 da mesa dela e tesoureiro duas vezes da dita casa, e confrade da confraria de N.ª Sr.ª do Rosário e da confraria de Santo António”.

Desmontou uma a uma as acusações que lhe fizeram e apontou os que contra ele e os outros se conjuraram. Vejamos um excerto da defesa:

— Provará que levando preso Pedro da Costa,(8) partista, à casa da Misericórdia e posto aí em companhia de umas 30 pessoas que nesse dia foram presas, em que entrava João Lopes, o surdo, genro de Luís Henriques, irmão de Diogo Henriques (Julião), e sua mulher Branca Rodrigues, filha do dito Luís Henriques, (…) e estando ali presos por espaço de dois dias, publicamente ameaçaram ao dito capitão-mor que lhe haviam de fazer vir também presos a seus filhos e parentes e como com efeito o fizeram e é pública voz e fama que pela tal conjuração foi ele réu preso e mais parentes.

Contou que na viagem de Vila Flor para a cadeia da comarca, os mesmos prisioneiros vieram publicamente lançando ameaças, dizendo que atrás deles iriam os nobres de Vila Flor parar às cadeias da inquisição. Uma das testemunhas arroladas por Pedro Sil em prova das suas palavras foi Paulo Montes Madureira, homem da nobreza, escrivão da câmara de Vila Flor, que acrescentou:

— Chegando esta notícia aos homens nobres ameaçados, se viram dizendo: “ora vão embora os cães, que a Coimbra não vais senão quem é judeu”.

Em Moncorvo, a cadeia da comarca situava-se junto à praça do município e dela se viam as procissões passar pela mesma praça. Na cadeia, com os presos da inquisição, estava um ferreiro da aldeia de Felgueiras, João da Costa, que Pedro Sil apontou como testemunha da cena que ele contou aos inquisidores, nos seguintes termos:

— Levados os ditos presos da casa da Misericórdia para a cadeia de Torre de Moncorvo, aonde assim todos juntos estiveram por espaço de alguns 15 dias, indo ele acompanhando o Santíssimo e levando uma vara do pálio, levando ao pescoço um cendal preto, vendo-o passar os ditos presos, lhe disse Pedro da Costa, acima contraditado, para os outros presos: “Vós de cendal ao pescoço não haveis de cá ficar”, com palavras muito altas que o ouviram as demais pessoas que com ele estavam.

Ao fim de mais de 6 anos de cadeia, muito embora os inquisidores tivessem reconhecido que não havia prova suficiente e o réu nunca tenha confessado, a verdade é que Pedro Sil compareceu no auto-da-fé de 12.3.1673, sentenciado em “cárcere e hábito a arbítrio”.

Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (5) - Branca Rodrigues, uma conjurada

Herdou o nome da sua avó paterna e tinha uns 7 anos quando aconteceu a cena da prisão de Lopo Machado, protagonizada pela mesma avó e por seu pai, Luís Henriques Julião, com a ajuda de vários outros cristãos-novos de Vila Flor.

Lopo Machado era um executor do santo ofício e, por isso, a sua prisão e a forma como foi executada, constituiu um crime contra o tribunal da fé. Em consequência, em 23.12.1744, os inquisidores de Coimbra assinaram um decreto dizendo:

— Pareceu a todos os votos que eram as culpas bastantes para serem presos nos cárceres do santo ofício, os seguintes: Luís Henriques e Rodrigo Fernandes, filhos de Julião Henriques; Branca Rodrigues, mulher do dito Julião Henriques e que só a dita Branca seja presa com sequestro de bens, visto ter culpas de judaísmo. E à maior parte dos votos pareceu que também fossem presos nos cárceres do santo ofício Rodrigo Fernandes, tio dos ditos Luís Henriques e Rodrigo Fernandes; Francisco Vaz Ganâncias; Jerónimo Guterres, o indiano; Jorge Fernandes, filho de Henriques Dias; e Manuel, neto do dito Henrique Dias, e sem sequestro de bens, visto serem todos cristãos-novos e acharem-se presentes à prisão de Lopo Machado, que se fez em ódio ao santo oficio, de que houve escândalo em Vila Flor, aonde se fez, e para isso se passe mandado.(1)

Quando a ordem de prisão chegou a Vila Flor, já Luís Henriques e o Rodrigo Fernandes se teriam abalado para os lados da Galiza, pelo que não foram presos. Sê-lo-iam 10 anos mais tarde, quando Luís Henriques vivia em Castro Laboreiro, na raia da Galiza, com sua mulher Filipa Dias.(2)

Nos anos que seguiram novas investidas da inquisição aconteceram em Vila Flor. A maior de todas foi ao início de novembro de 1664, com a prisão de uns 35 cristãos-novos que foram metidos a ferros durante alguns dias na casa da Misericórdia. Entre esses prisioneiros estava Branca Rodrigues, filha de Luís Henriques Julião, e o seu marido.(3)

E ela e outros teriam combinado denunciar como judeus declarados os homens da nobreza de Vila Flor e outros cristãos-velhos que mais ativos e interessados se mostraram, ao serviço da inquisição, prendendo-os e arrematando-lhe os bens sequestrados. Com tais denúncias, conseguiriam que a inquisição prendesse os seus próprios servidores, em Vila Flor.

A responsabilidade maior desta “conjuração” seria atribuída a Diogo Henriques Julião que, depois de sair da cadeia da inquisição de Coimbra, se foi para Castela. Ele teria arquitetado o plano e pago a outros “conjurados” que fossem a Coimbra apresentar-se e denunciar também homens e mulheres da nobreza de Vila Flor, incluindo cristãos-velhos.

Voltemos à filha de Luís Henriques, Branca Rodrigues que seria levada pelo pai para a cidade galega de Pontevedra, onde viveu até aos 18 anos, mudando-se depois para Orense, onde permaneceu 3 anos, posto o que regressou a Vila Flor, ao findar da década de 1650, para casar com João Lopes Henriques, o surdo. A casa de morada do casal situava-se na rua da Igreja e confrontava de um lado com a da Romana e do outro com a do Panistro, duas pessoas cristãs-novas, também com historial na inquisição de Coimbra.

Quando o João e a Branca foram presos, em novembro de 1664, deixaram 4 filhos, o mais velho de 5 anos e o mais novo de meio ano. Imagina-se o drama destas crianças, assim deixadas ao abandono, já que a própria casa de morada foi fechada e selada.

Não vamos aqui seguir o processo de Branca no tribunal de Coimbra. Diremos apenas que logo de início ela confessou os seus erros e denunciou muitos companheiros. E denunciou falsamente várias pessoas da nobreza da terra e cristãs-velhas, que, em seguida, foram igualmente presas, juntando-se nas celas de Coimbra. António do Sil Morais, homem nobre, da governança da terra, foi um dos denunciados por Branca. Veja-se um pouco da denúncia:

— Disse que há 5 anos e 8 meses, porque era Junho, em Vila Flor, em casa de António do Sil Morais, que tem parte de cristão-novo, não sabe quanta, por via paterna, que vive de sua fazenda, casado com Maria Aguirre, que tem parte cristã-nova, não sabe quanta nem por que via, se achou com ela e com (…) E depois de merendarem perguntou o dito António do Sil a ela confitente e às mais mulheres hóspedes se sabiam elas a causa por que as havia convidado naquele dia com semelhante merenda. E respondendo elas que não, tornou o mesmo António do Sil a dizer que dera de fazer aquela merenda e comerem todos, por festa e lembrança da vitória que em semelhante tempo alcançou o povo de Israel do capitão Holofornes, por meio da famosa Judite, que lhe cortou a cabeça, fazendo naquela ocasião, assim ela como os mais do povo judaico grandes festas e banquetes, tendo o ditos António do Sil e mais homens da companhia acerca daquela história larga prática e disputas, por serem homens discretos e lidos, e em esta ocasião se declararam como criam na lei de Moisés…

Certamente que o testemunho de Branca foi decisivo para a prisão de António do Sil, em fevereiro de 1667. Tal como o que prestou acerca de Francisco Montes Almeida e vários outros homens da nobreza da terra, que foram presos ma mesma ocasião. E para encerrar esta análise de falsas declarações de Branca Rodrigues, naturalmente concertadas com outros cristãos-novos, veja-se esta onde o visado foi um mercador que ajudou na prisão dos cristãos-novos:

— Haverá 5 anos (…) Passando pela porta de Gaspar Leitão, marcador, cuja qualidade não sabe, casado com Maria Vaz, meia cristã-nova, chamaram estes da sua janela rogando que subissem para a dita casa, como com efeito fizeram, e estando todos 9 os convidou a dita Maria Vaz com passas, amêndoas e confeites, que comeram; e logo a dita Maria Vaz trouxe à mesa um açafate cheio de bolinhos de pão asmo e que também convidou a ela confitente e às mais pessoas da companhia, desculpando-se de lhes não dar maior porção deles, porque tinha outras pessoas da nação com quem repartir; e nesta ocasião se declararam como criam na lei de Moisés.

Terminou o processo com Branca Rodrigues a ser recebida na santa madre igreja, com cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 13.2.1667. Regressou a Vila Flor, vestida com o sambenito, que lhe foi tirado em 6.12.1670, pelo comissário do santo ofício em Torre de Moncorvo, o licenciado António Saraiva de Vasconcelos.

Nas masmorras de Coimbra ficaram a penar os nobres de Vila Flor, falsamente acusados por Branca e outros “conjurados” cristãos-novos. Só que… os inquisidores acabaram por descobrir a “conjuração” e Branca Rodrigues foi de novo mandada prender, em 17.4.1671, juntamente com outros 16 conjurados, por declarações falsas, destinadas a “perturbar o recto procedimento do santo ofício, ofendendo os seus ministros, dando-lhes ocasião a proceder contra pessoas inocentes, para que se possa entender que do santo ofício tudo é falsidade”.

A esta altura Branca era já viúva e, metida na cadeia, logo reconheceu que mentira. Sobre o testemunho transcrito contra António do Sil disse que a cena aconteceu em casa de Lopo Fernandes e não em casa de António Sil e nem este nem a sua mulher, Maria Aguirre, participaram.

Igualmente revogou as denúncias que fizera contra as outras pessoas da nobreza e cristãs-velhas e que foram: António Rodrigues, ferrador; Catarina Álvares, sua mulher; Maria Álvares, filha destes; Domingos Vaz, marido da anterior; Gaspar Leitão, mercador; Francisco Montes de Almeida; Joana Borges; Pedro do Sil Morais; Domingos Lopes Bastos e Ângela Lemos.

Branca Rodrigues saiu no auto-da-fé celebrado em Coimbra em 12.3.1673 levando “carocha com rótulo de falsária e sendo açoitada pelas ruas públicas da cidade”, condenada em 7 anos de desterro para o reino de Angola.

Raramente saíam barcos de Lisboa diretos para Angola. Mais frequente era a ligação feita através do Brasil. Foi o caminho seguido por Branca que, em julho de 1675, se encontrava na cadeia da cidade da Baía, “padecendo grandes misérias e achaques e não pode ganhar para comer, por ser muito falta de vista, incapaz de ser remetida para Angola e tem 3 filhas donzelas e 2 meninos sem amparo algum”. Pedia, por isso, aos senhores inquisidores que a mandassem libertar e lhe deixassem cumprir os 7 anos de desterro na Baía. Foi atendido o pedido e por lá ficou Branca Rodrigues cumprindo a pena.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 6861-C, de Rodrigo Fernandes Portelo.

2 - Idem, pº 1093, de Luís Henriques Julião. Preso em 14.5.1656, saiu no auto-da-fé de 23.5.1660, condenado em cárcere a arbítrio, degredo por 2 anos para Castro Marim, pagamento de 20 mil cruzados.

3 - Idem, pº 1522, de Branca Rodrigues; pº 4888, de João Lopes Henriques.

Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (4) - Vila Flor: Ângela Lemos

Depois de ouvir muitas dezenas de testemunhas em Vila Flor, Torre de Moncorvo, Lisboa, Aveiro e Setúbal, os inquisidores não conseguiram saber se Ângela Lemos era cristã-velha inteira, como ela dizia ou se tinha alguma percentagem de sangue judeu, como afirmavam os denunciantes.

Foi presa em fevereiro de 1667, com base em uma dezena de denúncias feitas por cristãos-novos de Vila Flor dizendo que com ela tinham feito cerimónias ou declarações de judaísmo, 4 delas em sua própria casa, e uma no seu quintal. Outra testemunha contou mesmo, com todos os pormenores, a celebração de uma “missa judaica” presidida por um oficiante de T. Moncorvo, na qual participou Ângela de Lemos.

Seis anos depois, em março de 1673, foi solta como “levemente suspeita” e presumindo que ela foi vítima de uma “conjuração” urdida por Diogo Henriques Julião e outros cristãos-novos de Vila Flor, em vingança contra as famílias nobres e da governança da terra.

Sem dúvida que a sua prisão se inscreveu no domínio da luta política que, com mais ou menos intensidade, se desenrolou em Vila Flor, como, aliás, na generalidade das terras Trasmontanas, mais ou menos em paralelo e como pretexto na questão religiosa.

Razões para os cristãos-novos se vingarem de Ângela é que não faltavam, derivadas da profissão e atividade do seu marido, Luís Cabral de Sousa – tabelião do público judicial e notas, conforme ela explicou aos inquisidores, em muitas audiências.

Na verdade, Luís Cabral(1) era um dos homens nobres de Vila Flor que a inquisição costumava encarregar para executar prisões, como foi o caso de Inês Álvares e Maria Lopes Vinagre, presas na grande leva de novembro de 1664 e que ele fez “com toda a satisfação, dando inteiro cumprimento ao que lhe mandavam”.

Sendo notário do público judicial, competia-lhe também assistir e “tomar nota” nos inventários dos bens sequestrados aos que iam presos, trabalho que ele fazia “com todo o zelo e cuidado da Fazenda Real”.

Parte dos bens sequestrados eram logo vendidos em hasta pública para se fazer dinheiro e pagar as despesas da prisão e condução dos prisioneiros para Coimbra. Obviamente que, algumas vezes, tais bens eram arrematados por umas “cascas de alhos” pelos nobres da terra, seus familiares ou apaniguados. A propósito, veja-se a seguinte declaração de Ângela perante os inquisidores:

— A viúva que ficou do Alferes de Vila Flor e suas filhas (…) todas são suas inimigas e de seu marido por lhe comprar alguns móveis ao tempo de suas prisões, e por o marido da ré ser o que as prendeu (…) e lhes comprar os seus móveis.

Para conduzir os presos a Coimbra, com seu “ fato, cama e cozinha” tomavam-se cavalgaduras, de forma algo suspeita, dependendo dos “humores” do responsável pela prisão ou condução, nisso havendo pessoas que teriam queixas contra o marido de Ângela de Lemos.

A este respeito temos uma história incrível, com o cristão-novo João Lopes a tentar “entalar” Luís Cabral, na sua qualidade de “homem da inquisição”. Com efeito, dirigiu-se a ele dizendo que desejava ir a Coimbra apresentar-se na inquisição. Para isso, necessitava de transporte que não tinha, e pedia a ele, Luís Cabral, que lhe emprestasse um macho… Obviamente que este não lhe emprestou o macho, mas nem por isso João Lopes deixou de ir a Coimbra e… Ironia: este João Lopes foi a Coimbra dizer que Luís Cabral e Ângela Lemos, em sua própria casa, se declararam judeus, com ele e com sua prima Inês Álvares Vinagre!(2)

João Lopes, Inês Vinagre, Isabel Coutinho, Constança Rodrigues seriam alguns dos que foram apresentar-se em Coimbra, pagos por Diogo Henriques Julião e por ele instruídos para denunciarem como judeus os nobres que “se mostravam solícitos em dar ajuda e favor nas prisões dele confitente e das pessoas de Vila Flor que foram presas”.

Esta foi a defesa apresentada por Ângela Lemos (e outros nobres acusados falsamente). Vejamos um pouco das suas próprias palavras:

— A ré foi culpada por conjuração que contra ela e outras pessoas ordenou Diogo Henriques e outros seus parentes e apaniguados de Vila Flor, dando meio tostão por dia aos que vieram testemunhar (…) e João Carvalho, de Vila Flor dizem também ser da conjuração e é inimigo do marido dela ré e a razão da inimizade foi por que, tendo tomado ambos os foros do senhorio de Vila Flor, depois disso, ao fazer as contas, tiveram grandes dúvidas e diferenças, de que ficaram inimigos e por tais conhecidos.

Na verdade, este João Carvalho,(3) foi um dos 30 e tantos cristãos-novos presos em Novembro de 1664 pela inquisição em Vila Flor e, em Coimbra, perante os inquisidores confessaria o seguinte:

— Haverá 3 meses e meio, na cadeia de Torre de Moncorvo, se achou com Pedro da Costa, procurador de causas em Vila Flor e com António Álvares, natural de Chacim e morador em Vila Flor, mercador, e com um filho natural do mesmo, chamado Francisco Álvares, solteiro, também mercador, e com Gonçalo Lopes Vinagre, sapateiro, e com os sobreditos Diogo Mendes Papoina e com um sobrinho deste chamado Gaspar Mendes, moradores em Vila Flor; e disse Pedro da Costa que agora que vinham presos para esta inquisição era tempo de se vingarem de alguns escudeiros de Vila Flor, que tinham parte de cristãos-novos (…) E ele confitente e outros da sua companhia disseram que não denunciavam. E Pedro da Costa tornou a dizer que se ele tivera 3 ou 4 homens do seu humor, haviam de fazer nesta matéria de denunciar nesta inquisição contra os ditos cordeiros mestiços de Vila Flor uma coisa que fosse soada.(4)

Era o levantar do véu sobre a “conjuração” dos “falsários” de Vila Flor. Mais explícitas foram as confissões de Genebra Alvim, cunhada de Diogo Henriques Julião e de Branca Rodrigues, sobrinha do mesmo, que confessaram ter jurado falso contra Ângela e contra as outras pessoas da nobreza de Vila Flor, em plano arquitetado com outros e para se vingarem deles.

Outra prova da “conjuração” e da “falsidade” das denúncias dos que se foram apresentar em Coimbra, foi reconhecida pelos inquisidores quando chegou a notícia de “terem fugido para Castela logo que chegaram a Vila Flor, idos desta cidade onde se vieram apresentar”. Obviamente que tinham medo de ser presos por “falsários”, crime bem mais grave.

Quanto a Ângela Lemos, regressaria a Vila Flor, bem mais velha e alquebrada, possivelmente mais compreensiva com as mulheres cristãs-novas e sem vontade de repetir os insultos de outrora chamando-lhe “judias, perras, putas, cadelas”.

Resta falar desta mulher que nasceu em Lisboa, cerca de 1633. O seu pai, Manuel Borges de Lemos, natural de Torre de Moncorvo, encontrava-se ali ao serviço da casa dos Senhores de Sampaio.(5) A mãe, Juliana Pereira, natural de Setúbal, viera para Lisboa, ao serviço da senhora condessa de Vila Franca. A propósito do casamento de Manuel e Juliana, a patriarca da família Lemos, vª, natural de Santarém, moradora em Lisboa, em casa de seu filho Rafael de Lemos, advogado da Casa da Suplicação, familiar do santo ofício “que sentiu o casamento de Manuel Borges, por lhe dizerem que casava pobre, em tanto que ela o remediou com algumas coisas”.

Andava Ângela pelos 8 ou 9 anos quando os pais a trouxeram para Torre de Moncorvo e a casa de morada era no castelo, pois que o seu pai foi empossado pelo Senhor de Sampaio, como seu representante, no cargo de alcaide.

O casamento de Ângela Lemos com o tabelião de Vila Flor Luís Cabral de Sousa, ter-se-á realizado ao início da década de 1640, no castelo de Moncorvo, certamente com a presença dos senhores condes de Sampaio.

Com o casamento, Ângela abandonou a morada do castelo de Moncorvo mudando-se para Vila Flor, para o paço dos senhores de Sampaio. Era também um ambiente fidalgo, espécie de “Corte na Aldeia”. Sim, que o Paço era frequentado pela família dos Senhores, pelo ouvidor, o capelão, o notário, o procurador, o alcaide… Até o espaço urbano da vila ganhou designação específica e esta é uma nota bem interessante para o estudo do desenvolvimento urbano da vila. A propósito, veja-se o testemunho de Maria Lopes Ramalha:

— Disse que conhece muito bem Ângela Lemos, haverá 16 anos, por serem vizinhas e morarem no Terreiro do Paço do senhor desta vila adentro.

 

Notas:

1 - inq. Coimbra, pº 5956, de Ângela Lemos.

2 - Inq. Coimbra, pº 2880, de João Lopes; pº 10441, de Inês Álvares.

3 - João Carvalho pertencia a uma família de cristãos-novos do Felgar e Mogadouro que fugiram para Madrid e ali se tornaram grandes mercadores. João teve menos sucesso que os irmãos pois faleceu nos cárceres da inquisição. Inq. Coimbra, pº 8994.

4 - Pº 5956.

5 - De acordo com o testemunho de Paulo Couraça Teixeira, homem nobre de Torre de Moncorvo, Manuel Borges de Lemos entrou ao serviço dos senhores de Vila Flor em 1631. Este Manuel Borges de Lemos era filho de António Borges de Castro, escrivão do público judicial de Torre de Moncorvo e sua mulher Ângela Lemos, natural de Aveiro, moradora em Lisboa, também na casa dos Senhores de Vila Flor, que os seus pais serviam.

Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (3) - Vila Flor: Manuel de Alvarenga Cabral

A família Alvarenga teria algum destaque entre os “finos cristãos-novos” da comunidade hebreia de Lamego. E a preocupação com a lavagem do sangue judeu parece evidente, ao menos em um ramo dela que, por 1550, se abalou para a novel cidade de Miranda do Douro.

Deste ramo era o casal constituído por Francisco Rodrigues, sombreireiro de profissão e Filipa Alvarenga. Eles foram os pais de Leonor Alvarenga, a qual casou, cerca de 1570, com Belchior Fernandes, também sombreireiro, natural de S. Gens, termo de Resende.

Antes de prosseguirmos, uma nota sobre a capacidade de atração populacional que Miranda do Douro exercia naquela época. Outra nota sobre a profissão de sombreireiro que então era bastante prestigiada, aproveitando para dizer que Belchior Fernandes aprendeu a arte com o mestre Manuel Gonçalves, de Vila Real, também ele emigrado em Miranda do Douro.

Filipa e Leonor, sua filha, não eram os únicos membros da família Alvarenga que trocaram Lamego por aquela cidade, a primeira a ser criada em Trás-os-Montes.(1) Com efeito, no cabido da sé, contava-se um cónego chamado Manuel Alvarenga, também natural de Lamego, que Leonor tratava por primo. E esta será mais uma prova do interesse desta família de “finos cristãos-novos” em esconder as suas raízes judaicas e integrar-se na sociedade portuguesa cristã. Aliás, uma irmã do cónego Alvarenga, fizera-se freira no mosteiro de Santa Clara, em Vila do Conde, com o nome de Isabel da Visitação. Um e outro acabaram por ser processados pela inquisição, acusados de judaísmo. Tal como o foram seus irmãos, Maria e Cristóvão Alvarenga, moradores em Lamego.(2)

Mas voltemos atrás, ao encontro de Maria Resende, uma das filhas de Belchior Fernandes e Leonor Alvarenga. Casou com Amaro Correia, natural de Torre de Moncorvo, “filho adulterino do Paulo Couraça”,(3) de uma das famílias mais nobres da terra e de uma cristã-nova. Amaro era criador de sirgo e fabricante de seda, passando depois à classe dos rendeiros. Era homem de muito bom conceito no seio da sociedade Mirandesa, a ponto de requerer a sua nomeação para o cargo de familiar da inquisição. Não o conseguiu por causa do sangue infecto de sua mãe e pelo que recebeu no casamento com Maria de Resende.(4) Registe-se, no entanto, esta tentativa de limpeza de sangue.

Manuel Alvarenga se chamou o filho de Belchior e Leonor, nascido em Miranda do Douro, por 1595. Desde cedo o destinaria seu pai para o sacerdócio, a crer no testemunho de Rodrigo Neto, que foi aprendiz de sombreireiro em casa de Belchior Fernandes, em Miranda do Douro. Com efeito, chamado a depor na diligência de habilitação de Amaro Correia, em julho de 1623, disse:

— Antes que morresse alguns anos, Belchior Fernandes falou a ele testemunha para que testemunhasse na abonação de um seu filho, Manuel Alvarenga para que se fosse ordenar, e ele testemunha não quis e lhe disse que lhe não podia dar bom testemunho, e que ele se ordenou e se meteu a frade em S. Domingos, de Zamora, e ouviu dizer que ao cabo de alguns meses o correram fora por a informação não ser boa e que o dito Manuel Alvarenga está hoje casado e é boticário em Vila Flor.(5)

Como se vê, Manuel Alvarenga conseguiu ordenar-se e meter-se a frade num convento de Zamora, sendo expulso quando se descobriu que era cristão-novo e prestara falsas declarações, com testemunhas possivelmente compradas. Expulso do convento, aprendeu a boticário e foi-se estabelecer em Vila Flor, casando com Maria Coelho de Meireles, natural de Torre de Moncorvo, de uma família da nobreza local e cristã-velha. E a partir de então acrescentou o nome, passando a assinar Manuel Alvarenga Cabral. Na verdade nada o ligava à família Cabral, devendo registar-se mais esta tentativa de limpeza de sangue.

Registe-se também o facto de Maria Coelho Meireles ser aparentada com Lopo Machado Pereira, homem nobre e cristão-velho. Tudo isso ajudaria a que Manuel Alvarenga se tornasse um homem de grande respeito na sociedade vila-florense e aceite na classe da nobreza e governança da terra, exercendo o ofício de escrivão do juiz, para além da atividade de boticário.

A casa de Manuel Alvarenga situava-se no “arrabalde” de Vila Flor, “defronte da Misericórdia” e a vizinhança era constituída sobretudo por famílias da nação hebreia, que olhariam para ele com alguma desconfiança. E, em breve, a desconfiança faria nascer inimizades. Nomeadamente com Beatriz Pereira, viúva de Simão Pereira e com Branca, sua filha. Discutiram mesmo e “pelejaram” em público, por causa de “um vestido” que elas lhe emprestaram. E parece que já antes o Alvarenga e o pai de Beatriz se envolveram em questões por causa de uma vinha.

Estas inimizades avolumaram-se quando o vigário-geral da comarca, Dr. Manuel Homem Chamorro, por 1636, fez visitação em Vila Flor e Manuel Alvarenga se apresentou a testemunhar dizendo que Beatriz Pereira, andava amancebada com um clérigo. O processo seguiu para a cúria arcebispal, em Braga e Beatriz conseguiu provar a sua inocência.

Daquelas inimizades com a gente da nação de Vila Flor se faria eco Rodrigo Fernandes Portello, cunhado de Julião Henriques, nos seguintes termos:

— Manuel Alvarenga, boticário de Vila Flor, está casado com uma parenta de Lopo Machado e tem grande ódio a todas as pessoas da nação da dita vila porque lhe não compram as suas mezinhas e mandam a Mirandela, a três léguas, a buscá-las, a casa de outro boticário.(6)

Na verdade Lopo Machado Pereira e Manuel Alvarenga Cabral constituíam a dupla de inimigos públicos mais evidentes da comunidade cristã-nova de Vila Flor e muito em particular da família de Julião Henriques. Esta dupla de denunciantes arrastaria muita gente da nação de Vila Flor para as cadeias do santo ofício. A título de exemplo, veja-se a denúncia feita por Manuel Alvarenga, perante o comissário Castelino de Freitas em 25.4.1642:

— Disse que defronte dele, mora Maria Henriques, cristã-nova, mulher de Diogo Henriques Julião, a qual esteve escondida 2 ou 3 meses antes do auto da fé último que se celebrou em Coimbra, temendo-se que dessem nela as Eminentas, que lá estavam presas; e não apareceu até que veio um neto do Eminente e lhe deu aviso e logo apareceu; em casa da qual Maria Henriques vê ele testemunha ajuntar de 5 anos a esta parte, por muitas vezes, principalmente à sexta-feira à noite, como tem reparado, Mécia Coutinho, cristã-nova, viúva do Gigante e sua irmã Leonor Coutinho cujo marido não sabe o nome e Beatriz Pereira e sua filha Branca Pereira mulher de António Mendes e Branca Rodrigues mulher de Julião Henriques e Ângela Henriques filha da Castelhana, que veio do Mogadouro, todas cristãs-novas, as quais depois dele testemunha se recolher vê que ficam na dita casa, a qual vê mais alumiada que nos outros dias da semana e ao sábado vê ele testemunha algumas das sobreditas na dita casa…(7)

Esta e outras denúncias então recolhidas pelo comissário da inquisição deixam adivinhar mais vagas de prisões em Vila Flor, uma terra em que andavam divididas “em duas fações todas as pessoas desta vila: de uma parte os da nação e da outra, os homens nobres, buscando os da nação ocasiões para se defrontarem” – conforme declaração proferida por Pedro de Morais do Sil, que acrescentou:

— Também sabe que os da nação andavam em dúvidas com os homens nobres sobre as varas do pálio e governo da república.(8)

E presos como judaizantes acabarão também por ser muitos dos nobres, ditos cristãos-velhos, falsamente denunciados por cristãos-novos. Entre eles os filhos de Manuel Alvarenga: Belchior Coelho Meireles; Sebastião Coelho Meireles e Ângela Coelho.

 

Notas:

1 - A diocese de Miranda do Douro foi criada em 23.3.1545, o que implicou a elevação da terra à categoria de cidade. Curioso que o primeiro e o terceiro bispos da diocese eram naturais de Castela, filhos de D. Maria de Velasco que veio para Portugal como camareira-mor da rainha D. Catarina de Áustria, esposa de D. João III. Aqueles bispos foram muito complacentes com os cristãos-novos.

2 - Inq. Coimbra, pº 1223, de Manuel Alvarenga. Saiu condenado em “cárcere e hábito perpétuo, sem remissão, degredo para as galés, por 5 anos, onde serviria ao remo, sem soldo, suspenso das suas ordens para sempre”; pº 3307, de Isabel da Visitação; pº 4850, de Maria Alvarenga: pº5315, de Cristóvão Alvarenga, escrivão e chanceler da correição da comarca de Lamego.

3 - Um Paulo Couraça foi procurador do concelho de Torre de Moncorvo às Cortes de 1535. O Paulo Couraça, pai de Amaro Correia, era irmão de João Couraça, casado em Mogadouro com Úrsula Escobar.

4 - PT/TT/TSO-CG/A/008-002/84, diligência de habilitação de Amaro Correia.

5 - Idem.

6 - Inq. Coimbra, pº 6861.

7 - Inq. Lisboa, pº 194, de Beatriz Pereira.

8 - Inq. Coimbra, pº 2804, de Pedro de Morais do Sil.

Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (2) - Vila Flor: Julião Henriques e Lopo Machado

Foi no 1.º de setembro de 1644, já a noite fechava. Lopo Machado Pereira, montado no cavalo, entrou em Vila Flor, pela porta sul, seguindo pela Rua da Fonte.(1) À porta de Julião Henriques, um grupo de “30 homens, embuçados e arrimados às paredes, com suas armas, pegaram nele e o deitaram do cavalo abaixo”. Os mais ativos eram os filhos de Julião: Luís Henriques e Rodrigo Fernandes, que o seguravam, enquanto a mãe, Branca Rodrigues, com um uma tocha feita de palha, lhe iluminava o rosto para que todos vissem e bradava:

— Ah! Ladrão! Agora pagarás as prisões de meu filho e meu marido que mos tens presos falsamente! (2)

A notícia correu a vila, e num ápice, todo o povo se juntou. Escândalo tremendo! O homem de mais poder na terra, o fiel executor das ordens do santo ofício, preso e agrilhoado pelos “judeus”!

Gonçalo Ribeiro Teixeira, um homem da nobreza, foi dos primeiros a chegar e, em companhia de Jacinto Machado, filho de Lopo, correram “a casa de Francisco Sampaio, fronteiro, filho do senhor desta vila, dando-lhe conta como tinham preso a seu pai”. O “fronteiro” mandou o ouvidor averiguar. À vista da ordem que Luís Henriques lhe mostrou para ler, voltou para casa a dar conta a seu amo, que nada podia fazer, que a prisão fora ordenada pelo corregedor da comarca, representando a justiça d´el-Rei.

Apareceu também Agostinho Valente Pinto, homem nobre, que então desempenhava as funções de juiz. Luís Henriques repetiu o gesto. Em consequência, ao juiz competia, não apenas permitir a prisão, mas ainda coadjuvar Luís Henriques na execução da mesma. Assim, foi sob a responsabilidade do juiz de Vila Flor, que Lopo Machado foi metido na cadeia da localidade durante aquela noite, de tudo mandando o mesmo juiz ao tabelião António Borges de Castro lavrar o competente auto de prisão. Tal como a responsabilidade pela segurança do prisioneiro foi, pelo juiz, entregue a outro homem da nobreza da terra, o alcaide António do Sil.

Bem guardada ficou a cadeia em toda a noite pelo alcaide, pelos dois filhos de Julião Henriques e por dezenas de cristãos-novos que festejavam a prisão do homem mais odiado pela gente da nação, pois era ele que costumava executar as prisões em nome do santo ofício, fazer o sequestro dos bens e conduzir os presos para Coimbra.

Bem cedo, na manhã seguinte, chegou o meirinho da correição de Moncorvo e Luís Henriques entregou-lhe a vara e o prisioneiro, já colocado em cima de “uma besta de albarda, com grilhões nos pés” e, se não fosse a pressão exercida por várias pessoas da nobreza de Vila Flor, ter-lhe-iam atado uma corda ao pescoço, para o espetáculo ganhar imponência. Imaginamos a cena: o poderoso Lopo Machado que, sem “dó nem piedade” prendia e acorrentava os “judeus”, via-se agora preso e acorrentado por eles, posto a ridículo em cima de uma besta, engolindo um mar de insultos. Veja-se o testemunho de Luís Borges de Macedo, tabelião de Vilas Boas, que também assistiu ao espetáculo:

— E logo as pessoas acima nomeadas e as que traziam em companhia levaram preso o dito Lopo Machado Pereira a Torre de Moncorvo, com muitas palavras afrontosas, querendo-lhe atar as mãos atrás e lançando-lhe uma corda ao pescoço, se umas pessoas nobres que ali estavam o não impedissem.(3)

Para além do meirinho da correição, o prisioneiro foi acompanhado a Moncorvo pelo juiz de Vila Flor e por Luís Henriques, naturalmente. Foi metido na cadeia da comarca mas… “logo na noite seguinte, fugiu da dita cadeia”.

Não sabemos como nem para onde fugiu Lopo Machado. Sabemos é que a sua prisão foi considerada uma ofensa ao santo ofício, que logo mandou ao comissário Domingos Carneiro, de Vila Real, averiguar e, em 11.2.1645, na sequência do seu relatório, o tribunal de Coimbra ordenou a prisão da mulher e dos filhos de Julião Henriques e 5 outros homens “visto serem todos cristãos-novos e acharem-se presentes à prisão de Lopo Machado, que se fez em ódio ao santo ofício”.

Voltemos atrás, a 1642, às investigações do comissário Castelino de Freitas. Por recear interferências da gente ligada “aos Juliões, que eram rendeiros e costumavam dar agasalho ao visitador”, foi alojar-se na casa do Abade e ali ouviu as testemunhas. Antes, porém, certificou-se que no piso debaixo, utilizado pelo abade para arrumos, não estava ninguém. A primeira pessoa que apareceu a denunciar foi Lopo Machado, como já se disse, o qual começou falando muito alto. Depois, o comissário recomendou-lhe que “falasse manso”.

Dias depois, soube-se que, efetivamente, Diogo Henriques Julião estava ouvindo a conversa, escondido na adega da casa, com um criado, munido de uma espingarda, a uma porta.(4) E ele próprio contou que, a partir de certa altura, deixou de ouvir a conversa, porque Lopo Machado passou a falar mais baixo.

Claro que isto era muito ofensivo para o santo ofício e o comissário escreveu para Coimbra lançando as culpas sobre o cura, padre António Gil ou “um criado do abade, que se chama Leite”, concluindo do seguinte modo:

— Daqui se pode inferir quão atrevidos são os homens da nação de Vila Flor e como acham cristãos-velhos que lhes dão a mão contra as coisas da nossa santa fé.(5)

Diogo Henriques Julião foi dos primeiros a ser levado nesta onda de prisões.(6) Foi Lopo Machado que o prendeu, e lhe sequestrou os bens. E enquanto estes eram arrolados e se juntava o dinheiro para despesas de viagem e alojamento na cadeia de Coimbra, o prisioneiro ficou guardado em casa de seu filho Jacinto Machado. A ele foram também entregues os bens do prisioneiro. Imagina-se como os mesmos bens seriam posteriormente vendidos ao desbarato e como estas coisas faziam crescer ódios e projetos de vingança entre os cristãos-novos.

Para nos dar conta desses ódios e desses projetos, nada melhor do que as cartas que o mesmo Lopo Machado escreveu para Coimbra e andam transcritas no processo de Julião Henriques.(7) Começou por falar na prisão de Isabel Pereira, que ele encarregou ao corregedor António Cardoso de Sousa, que morreu em casa do padre de Samões, depois de beber um copo de vinho, acrescentando que “Julião Henriques, corre com o dito clérigo e seus familiares com muita amizade, o que deu muita suspeita da sua morte”.

Falou depois da prisão de Diogo Henriques e da finta que o pai lançou, criticando também o “corregedor André Barreto Ferraz, natural de Aveiro, que por respeito os favorecia demasiadamente (…) E se gabam poucamente que me hão-de destruir e que não hei-de prender outros”.

Bartolomeu Rodrigues Pimentel foi seu ajudante na prisão de Diogo Henriques e preparava-se para ficar depositário dos seus bens. Porém, como era pobre e não podia dar garantias sobre os mesmos, foi obrigado a recusar o encargo (benesse!). Sobre o assunto, L. Machado concluía:

— Tem dado nesta vila e comarca notável escândalo ver que as pessoas que fazem diligências do santo ofício e os que ajudam são desta sorte perseguidos pela gente da nação e por estas razões lhe hão medo que não se atrevem a dizer as verdades. E por dizerem poucamente que pois os prenderam, hão-de fazer ir à santa inquisição todos quantos há nesta vila cristãos-velhos e cristãos-novos, gabando-se de serem poderosos e terem dinheiro, acabam por difamar a santa inquisição; dizem que este novembro próximo passado, Julião Henriques mandara um macho com uma carga de presuntos de peita a um ministro da santa inquisição, da mesa grande, só a fim de que a gente de pouco entendimento lhe haja medo e não se atreva a dizer o que souberem. Porque este povo está tão intimidado e esta comarca tão escandalizada que os homens de mais conta afirmam que na Cristandade não aconteceu outro caso como este, pois estando em Portugal, haviam os homens de ser perseguidos por defender a lei de Cristo.(8)

Lopo Machado tinha uma certa razão. Ele próprio iria sofrer a vingança dos cristãos-novos, que o fizeram prender. Mas antes, teve o prazer de participar na prisão do rival Julião Henriques. E porque este é “rico e poderoso”, receava que os seus familiares e amigos “possam com dinheiro corromper o carcereiro (…) e a peso de ouro o poderão tirar da cadeia”. Por isso, pedia aos inquisidores que mandassem levá-lo depressa para Coimbra.

 

Notas:

1 - No processo, a Rua da Fonte é também chamada de Rua Direita e Rua Nova.

2 - Inq. Coimbra, pº 6891, de Rodrigo Fernandes Portello.

3 - Idem.

4 - Idem, pº 2903, de Leonor Henriques.

5 - Idem.

6 - Não encontramos o seu processo nos índices disponibilizados pela Torre do Tombo.

7 - Idem, pº 3869.

8 - Idem.

Inquisição – lutas políticas – pureza de sangue (1) Vila Flor: Julião Henriques e Lopo Machado

A divisão da sociedade em cristãos-novos e cristãos-velhos foi talvez a origem das maiores das calamidades que assolaram Portugal. Esta divisão, caldeada com as inevitáveis diferenciações económicas e sociais, proporcionou o aparecimento de “bandos” e “parcialidades” que, em muitas terras, se envolveram em ferozes lutas políticas e autênticas guerras civis.

Porventura em nenhuma outra localidade Trasmontana esse ambiente de guerrilha foi tão intenso e prolongado como em Vila Flor. E talvez não fosse por acaso que a lei da limpeza de sangue, proibindo os cristãos-novos de aceder aos empregos públicos e cargos de governo municipal, começou exatamente por ser aplicada em Vila Flor, em 1571,(1) a título experimental.

Assim, logo na primeira grande investida da inquisição em Vila Flor, em 1558, uma prisioneira explicava aos inquisidores que a sua e as outras prisões tinham causa única nas lutas políticas, dizendo:

— Entende provar que na dita vila os cristãos-novos andavam sempre nas eleições e requerimentos na dita vila e algumas pessoas disso se escandalizavam tanto que, com inveja, difamavam deles.(2)

Intensa luta política e um turbilhão de intrigas. A ponto de o inquisidor-mor, cardeal D. Henrique pegar num dos seus mais próximos colaboradores, o licenciado Jerónimo de Sousa, inquisidor em Évora e mandá-lo para Vila Flor, como abade da igreja matriz. Ele próprio se sentia “desnorteado”, parecendo mais um espião político do que um juiz inquisidor. Veja-se o excerto de uma carta sua para Coimbra, datada de 6.1.1577:

— Ficou tanto olho em mim depois que falei com aquela mulher que não dou volta que me não notem e por isso busquei tempo para não ser sentido; (…) Avise VM ao oficial que cá vier que se não venha a minha casa porque trazem nisso tento e haverá reboliço, que nunca me saem de casa todos os dias, que por isso fui tirar a filha de sua casa e de noite, porque a trazem atrelada, que nunca a deixam.(3)

Por 1620, o “partido” dos cristãos-novos era liderado pela família Eminente e, mais em concreto, o “Eminente Lopo Vaz”.

Em janeiro de 1638, o Dr. Diogo de Sousa, inquisidor de Coimbra esteve em visitação em Vila Flor. De entre as pessoas que perante ele se apresentaram a denunciar, destacamos uma Filipa Nunes, filha do médico Francisco Nunes, a qual disse:

— Haverá 5 anos que começou a servir a Leonor Henriques, cristã-nova, casada com Bartolomeu Lopes Teles, cristão-novo, mercador, que mora nesta vila junto à Fonte, os quais serviu um ano e no decurso dele viu que a dita Leonor Henriques em todas as sextas-feiras varria a casa e lha mandava varrer mais que nos outros dias e mandava acender mais cedo os candeeiros…(4)

Abordamos este depoimento não pelo interesse do mesmo mas para notar o facto de a filha de um médico cristão-velho ser criada de servir em casa de um mercador cristão-novo. É apenas um exemplo de como, naquela época, a “gente da nação” se posicionava no seio da sociedade Vila-Florense.

De resto, em consequência desta visitação seria presa a viúva de Francisco Vaz Eminente (Isabel Pereira) e duas filhas. A propósito, veja-se o excerto de uma carta que Lopo Machado Pereira escreveu para a inquisição de Coimbra:

— Obrigado das injustiças, moléstias e vexações que se me fazem, tudo causado pela gente da nação desta Vila Flor (…) E podem perturbar o dar-se a execução às diligências do santo ofício que V. S. me mandam fazer. (…) Assim, mandando prender a Isabel Pereira e suas filhas, pelo corregedor António Cardoso de Sousa, depois de se fazer a prisão a pouco tempo, indo pousar a casa de um clérigo, por nome Pero Esteves, do lugar de Samões, meia légua desta vila, e dando-lhe o dito clérigo um copo de vinho com o qual morreu logo, apressadamente e sem confissão e desde esse tempo até hoje, a gente da nação, principalmente Julião Henriques, cabeça deles, corre com o dito clérigo e seus irmãos com muita amizade, o que deu muita suspeita da sua morte.(5)

Como se vê, Lopo Machado queixa-se da dificuldade que tinha para executar as ordens do santo ofício, como sejam as prisões de cristãos-novos. Olhe-se um pouco mais da carta que vimos citando:

— Tanto que eu prendi a Diogo Henriques e os mais, logo se fintaram contra mim e todos os que nessa ocasião ajudaram, dando 5 mil réis cada um, sendo que passam nesta vila de 100, fazendo-se o dito Julião Henriques a cabeça deles (…) tudo falsidades de que esta gente usa e se gabam poucamente que pois me hão-de destruir e não hei-de prender outros…(6)

Se bem que apenas a viúva e filhas do Eminente fossem então presas, o inquisidor Diogo de Sousa levou para Coimbra um rol de denúncias que, certamente, originaram a abertura de outros processos, os quais foram sendo acrescentados com denúncias enviadas por comissários e familiares da inquisição, bem como as confissões feitas por prisioneiros.

Neste sentido, foi o vigário-geral da comarca e comissário da inquisição, Dr. Paulo Castelino de Freitas encarregado de fazer novas investigações em Vila Flor, em novembro de 1642. Uma das pessoas que então se apresentaram a testemunhar foi Lopo Machado Pereira. Vejamos um pouco do seu depoimento:

— Disse que é fama pública nesta vila (…) que a gente da nação guarda os sábados em observância da lei de Moisés (…) e quando ele vem pela Rua da Fonte, por ser toda de cristãos-novos e gente da nação e às vezes vem de dia e outras de noite e vê estarem as mulheres da nação às janelas, sem trabalharem nem fazer coisa alguma (…) e é público e notório que a gente da nação celebrou uma festa este setembro passado fez um ano e nesse tempo viu ele as mulheres da nação muito bem vestidas…(7)

Não vamos continuar com o depoimento de Lopo Machado e deixamos para outra ocasião os depoimentos de outras pessoas. Diremos tão só que se seguiu a prisão de vários cristãos-novos, entre eles um filho de Julião, chamado Diogo Henriques e, tempos depois, o mesmo Julião Henriques.

Mas se Lopo Machado, Castelino de Freitas e outros conseguiam que a inquisição decretasse a “leva” de Julião para as cadeias de Coimbra, os cristãos-novos não se ficaram quietos “a lamber as mágoas”. Não tendo influência nos tribunais religiosos, o mesmo não acontecia nos tribunais civis, nomeadamente na vedoria e corregedoria da comarca.

Aconteceu que, em Castela, faleceu o padre Abreu Moutinho, de Vila Flor. E logo Lopo Machado, invocando a qualidade de juiz dos órfãos, se meteu a fazer o inventário dos bens do defunto. Porém, o vedor da fazenda encarregou disso um cunhado de Julião Henriques, chamado Rodrigo Fernandes Portello. Ou porque Lopo Machado não respeitasse a ordem do vedor ou porque na execução do inventário tivesse lesado a fazenda nacional, os seus adversários conseguiram que o rei ordenasse ao corregedor da comarca a instauração de um processo. Em consequência, o corregedor decretou a prisão de Lopo Machado.

Competia ao meirinho da correição executar a ordem de prisão. Este, porém, “não se atreveu a isso”. Então, o corregedor tirou-lhe a vara de meirinho, entregando-a a um filho de Julião Henriques, juntamente com o decreto seguinte:

— Eu, André Barreto Ferraz, corregedor desta comarca de Torre de Moncorvo, por este meu ofício e assinado, dou poder a Luís Henriques, morador na dita vila de Vila Flor para que, como meirinho desta correição, possa prender a Lopo Machado, morador na dita vila, por culpas mui graves que dele há neste juízo, e preso o trará à cadeia desta vila, e poderá o dito Luís Henriques, com este mandado, requerer sobre a prisão, todo o favor e ajuda às justiças desta comarca, a qual lhe darão, da maneira que ele requerer, com pena de suspensão de seus ofícios; e feita a dita prisão, não poderá o dito Luís Henriques usar o dito mandado em outra diligência porque só por esta vez lhe dou este poder, por assim convir ao serviço de Sua Majestade; e para o trazer preso à cadeia desta vila poderá pedir ajuda às pessoas que lhe convier, à custa do dito Lopo Machado. Dado na vila da Torre de Moncorvo, feito e assinado por mim, se minha letra e sinal, aos 30 de Agosto de 1644. Ferraz.(8)

 

Notas:

1 - MORAIS, Cristiano de, Cronologia da História de Vila Flor 1286 - 1986, p. 12.

2 - Inq. Lisboa, pº 2893, de Maria Álvares.

3 - ANTT, inq. Coimbra, pº 536, de Isabel Lopes.

4 - Idem, pº 2903, de Leonor Henriques.

5 - Idem, pº 3869, de Julião Henriques.

6 - Segundo alguns testemunhos, apenas 5 moradores cristãos-novos não contribuíram para esta “finta”. O dinheiro serviria, naturalmente, para contratar bons advogados e “meter cunhas” em Lisboa, na Corte real.

7 - Idem, pº 2903.

8 - Idem, pº 3996, de Jerónimo Guterres.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - João Lopes da Mesquita (n. Viseu, 1650)

Na noite de 10 para 11 de maio de 1671, o sacrário da igreja de Odivelas foi profanado, com hóstias espalhadas pelo chão. O país foi então varrido por uma onda de indignação,(1) seguida de outra não menor, de boatos e falsas notícias. E, competindo ao santo ofício zelar pela fé e castigar os crimes contra a religião, imagina-se como os familiares, comissários e outros esbirros da inquisição andariam numa roda-viva, farejando possíveis criminosos.

Por esses dias passavam por Moncorvo dois homens novos, irmãos, chamados Francisco da Mesquita e João Lopes da Mesquita. Não sabemos como as coisas se passaram mas tão só que os forasteiros foram metidos na cadeia, por suspeitas de envolvimento no caso de Odivelas.(2) Ali permaneceram por 6 meses e meio. 

Vendo-se injustamente preso, João Lopes pensou que o melhor seria falar com o comissário local do santo ofício, dizer-lhe que não tinha nada a ver com o caso do “Senhor Roubado”, explicando bem por quais caminhos andara naquele tempo. E para ganhar mais credibilidade, diria ao comissário que, até então, ele seguira a lei de Moisés. Acrescentaria que a sua prisão, embora injusta, foi uma bênção de Deus pois que, estando na prisão, foi alumiado pelo Espírito Santo, para abandonar a Lei errada em que andava e se tornar verdadeiro cristão.(3) E foi o Espírito Santo que o inspirou a chamar o comissário para confessar seus erros e pedir perdão.

Supomos que o plano foi combinado com o irmão que ali estava também preso, se bem que ele o negasse. Facto é que o comissário Caldeira foi à cadeia da Torre de Moncorvo ouvir a confissão dos dois irmãos, certamente em separado e em outra dependência da casa. Foi muito notada a visita do comissário, pois que, antes, se fez uma faxina completa da prisão.

As declarações de João Lopes foram passadas a escrito pelo próprio comissário que, no fim, lhe disse que ia mandá-las para a inquisição de Coimbra. E também lhe ordenou que, saindo dali, se fosse apresentar no mesmo tribunal.

Saídos da cadeia, os dois irmãos dirigiram-se para a cidade do Porto onde João Lopes teria já contratado casa de morada, pois estava de casamento marcado. No Porto estaria também morando nessa altura um terceiro irmão, chamado António Rodrigues da Mesquita,(4) médico formado pela universidade de Coimbra, casado com Ana Pereira, da vila de Muxagata.

Antes de prosseguirmos, vamos até Vila Flor, cerca de 1640, ao casamento de Manuel Lopes Álvares,(5) e Branca Rodrigues, cristãos-novos. O filho mais velho do casal chamou-se Matias da Silva Pereira,(6) o qual viria a casar com Filipa Gomes. Em Vila Flor nasceram também o Dr. António e o Francisco da Mesquita, atrás referidos.

Ao findar da década de 40, acaso receando ser presos pela inquisição, Manuel e Branca pegaram nos filhos e foram para Viseu.

Em Viseu, por 1650, nasceria um quarto filho do casal, o biografado João Lopes da Mesquita que, por 1672, casaria com Filipa Rodrigues,(7) de Vila Flor. Começaram por se estabelecer no Porto, cedo rumando a Viseu, trabalhando João Lopes com o pai e o irmão Francisco, que eram rendeiros e mercadores de grosso trato. João Lopes dizia-se mesmo “um homem muito rico”.

Ano e meio depois do casamento, Filipa Rodrigues faleceu e João dirigiu-se a Madrid, onde morava sua sogra, então casada, em segundas núpcias, com Diogo Lopes, levando-lhe alguns vestidos de sua falecida esposa. Por Castela terá andado algum tempo e, regressado a Portugal, foi casar em Freixo de Numão, com Beatriz de Matos, filha de João Matos.

Os anos de 1690 foram terríveis para os marranos de Trás-os-Montes, vivessem eles na terra natal ou em outras localidades, pois o sistema de informações e registo de denúncias na inquisição foi pioneiro, em relação às modernas polícias.

Nessa vaga de prisões foi também apanhado João Lopes da Mesquita, em agosto de 1693. As culpas remontavam a 1671, quando seu irmão António se apresentou e disse que fizera cerimónias judaicas com ele. Confissão semelhante fizera seu parente Jorge Nunes Ximenes. Havia uma terceira acusação, feita por seu irmão Francisco da Mesquita,(8) preso em novembro de 1692 e que, em 4.5.1693, denunciou o seguinte:

— Disse que havia 28 anos em Viseu, se achou com seu irmão João Lopes da Mesquita e se declararam…

Estranho, pois que os factos remontavam ao tempo anterior a 1671 em que ele se comprometeu perante o comissário Caldeira a abandonar a lei de Moisés. A partir daí, ele provava, com testemunhas da maior nobreza e seriedade de Viseu, que sempre fora cristão exemplar. Por isso, não descortinava razão para estar preso.

Havia, porém, um pequeno obstáculo. O comissário Caldeira ordenara-lhe que fosse apresentar-se à inquisição de Coimbra, quando saísse da cadeia de Moncorvo, coisa que ele não fez.

Confrontado com a falta, explicou que o comissário Caldeira lhe disse “que mandara a dita apresentação a este tribunal, aonde ele confitente viria buscar a absolvição, sendo chamado”. Como nunca foi chamado…

Tempos passados, João Lopes pediu audiência e perante os inquisidores disse que “dava mil louvores ao divino Senhor, que lhe abriu a sua memória para alimpar a sua alma”.

Contou então que, saindo de Moncorvo para o Porto, ali ficou doente e o seu irmão Francisco não esperou por ele e foi apresentar-se em Coimbra. Depois de curado, foi a Viseu ter com o dito irmão e este lhe dissera que já não era necessário ele ir apresentar-se.

Claro que os inquisidores não acreditaram nele e o mantiveram preso, que “o tempo amadura a fruta”. Efetivamente, não demorou que João voltasse a pedir audiência, a qual começou com esta declaração:

— Quando o prenderam, achara que não podia ser preso senão por via de seus inimigos, e essa logo foi a causa de seu pecado não caminhar direito, que a causa por onde foi feita a sua prisão acha que não foi mais do que o divino Espírito Santo bater nos corações dos senhores inquisidores o mandassem prender e foi para bem da sua alma.

Fantástico: a sua prisão foi um verdadeiro milagre, uma benesse que os inquisidores, guiados pelo Espírito Santo, lhe ofereceram!

A partir de então, começou a confessar que sempre fora judeu, “que segunda-feira fez 8 dias, estando no cárcere, fez um jejum judaico e a razão de o fazer foi por se ver muito atribulado e carregado com as culpas, em tal forma que em uma noite das antecedentes chegou a botar um lenço ao pescoço para se afogar, do que quis Deus nosso senhor livrá-lo”.

Contou que chegara a jejuar 40 dias seguidos, à imitação de Moisés, tomando apenas pão e água, à noite. Descreveu quantidade de celebrações judaicas e denunciou familiares, amigos e outros correligionários. Explicou ritualidades e cerimónias da lei Mosaica e ditou para o processo muitas orações, mostrando um grande conhecimento das escrituras sagradas. E aquelas orações e este conhecimento, tornarão indispensável a leitura do seu processo, num estudo aprofundado da vivência dos marranos de Trás-os-Montes.

 

Notas:

1 - O rei e a corte vestiram-se de luto durante 3 dias e decretaram missas, procissões e preces públicas de desagravo, em todo o país.

2 - Casos semelhantes terão acontecido em outras localidades, nomeadamente na cidade da Guarda onde, em consequência, foi processado e afastado do cargo o comissário Clemente da Fonseca Pinto. ANDRADE e GUIMARÃES – Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, p. 50, ed. câmara municipal de Celorico da Beira, 2015.

3 - Inq. Coimbra, pº 6655, de João Lopes da Mesquita: — Considerando seus erros e que estava preso pelo caso de Odivelas, injustamente, e considerando que Nosso Senhor Jesus Cristo o queria castigar, arrependido das ditas culpas, mandou chamar o dito comissário e diante dele fez sua apresentação, deixando os ditos erros e de os haver cometido está muito arrependido.

4 - Idem, pº 734, de António Rodrigues da Mesquita, apresentou-se na inquisição de Coimbra em Julho de 1671, quando os irmãos estavam presos em Moncorvo. Foi mandado regressar a casa e, logo depois, internar-se-ia por Castela, onde andou cerca de 20 anos. Regressado a Viseu, foi chamado ao tribunal onde abjurou, em 31.8.1693. Preso em 2.3.1694, saiu condenado em cárcere e hábito perpétuo e 4 anos de degredo para Angola. Faleceu em 12.10.1704, no cárcere da inquisição de Coimbra, onde estava novamente preso. A sentença foi lida no auto da fé de 25.7.1706, mandando-se desenterrar os seus ossos e queimá-los, juntamente com o seu retrato.

5 - Manuel Lopes era filho de Matias Lopes e Isabel Manuel, aquele de Sambade e esta de Fozcôa. Casaram em Madrid e viveram em Sambade na década de 1620. Voltaram a Castela onde, por 1651, foram presos pela inquisição de Toledo. Reconciliados, foram-se para Labastide Clairence, onde Matias faleceu. Por 1660, a viúva, residia em Bidache. – SCHEIBER, Marcus – Marranen in Madrid 1600 – 1670, pp. 115-116, Verlag Stuttgart.

6 - Matias Pereira casou com Filipa Gomes, também originária de Vila Flor. Residiram em Viseu onde foi tendeiro. Em 1671 residiam em Málaga, Castela.

7 - Inq. Coimbra, pº 5326, de Filipa Rodrigues, filha de Jorge Fernandes e Ana Mendes.

8 - Idem, pº 7322.