António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Branca Coutinho (n. Torre de Moncorvo, 1601)

Branca Coutinho foi uma das filhas de Pedro Henriques Julião e sua mulher Francisca Vaz. Casou com Manuel Henriques Pereira, proprietário agrícola, industrial de moagem de pão e rendeiro. Referindo-se à sua família e à de seu marido, Branca permitiu-se afirmar perante os inquisidores:

— São pessoas honradas e os principais da nação de todo este reino e o mesmo foram seus pais e avós, vivendo sempre honradamente.(1)

Corria-lhe nas veias o sangue de Pero Henriques, o Cavaleiro que acompanhou Sua Alteza Real nas jornadas de África. E mostrava-se também orgulhosa de saber ler e escrever, tal como as suas irmãs.

Para além dos moleiros e assalariados agrícolas que trabalhavam às ordens de seu marido, Branca tinha ao seu serviço, nas tarefas da casa, uma ama que viera de Castro Roupal, para ajudar na criação dos filhos, duas criadas e um criado, que dormia na loja da casa. A este cabia, entre outras tarefas, matar e preparar os cabritos, as galinhas, as perdizes, os porcos e outros animais que cozinhavam e comiam, bem como rachar a lenha, tratar do quintal anexo à casa e outros serviços semelhantes.

Chamava-se este criado Francisco Fernandes Preto, natural de Peredo dos Castelhanos, homem de 37 anos que estava habituado a servir e correr mundo, anualmente se internando por Castela, no verão, como segador.

Entrou ao serviço de Branca Coutinho no S. Pedro de 1636 e ali aguentou 3 anos. Como geralmente acontece, Francisco teria alguns desentendimentos com os patrões e não esteve com meias medidas. Meteu-se a caminho de Coimbra e, no dia 16.4.1639, apresentou-se no tribunal da inquisição dizendo que a patroa sempre lhe mandava degolar os animais que se matavam em casa e que deixasse o sangue correr para o chão. Somente quando matavam os porcos é que permitia que apanhassem o sangue e o comessem os criados. Disse que, em certa ocasião quis levar um filho de Branca chamado Henrique a uma matança ao lugar do Peredo, mas ela não deixou, por recear que lhe dessem sangue a comer. Contou que, em certa ocasião, a patroa se desentendeu com uma vizinha que lhe atirou à cara que eles não comiam sangue por serem judeus. Ao que ela terá respondido:

— Os que tal diziam e comiam sangue eram os cães.

O Preto acrescentou que seus amos guardavam os sábados, começando à sexta-feira a limpar a casa, mudar as camas, vestir roupa lavada e especialmente acendiam nessa noite um candeeiro especial de “3 lumes” a que metiam torcidas novas e azeite limpo, candeeiro que ficava aceso toda a noite até se extinguir por si. Disse que também mandava os criados descansar ao sábado, mas que ao domingo os fazia trabalhar. Em prova de que falava verdade, apresentou como testemunhas as duas criadas da casa: Catarina e Apolónia Luís.

Obviamente que logo seguiram ordens para o comissário da inquisição em Torre de Moncorvo ouvir em declarações as duas criadas que, curiosamente, já não estavam ao serviço de Branca. Catarina deixara Moncorvo e fora-se para a sua terra, em Quintela de Lampaças. Apolónia, vivia casada com um pastor, à Fonte do Concelho, em Moncorvo. O comissário chamava-se Castelino de Freitas, era um novato, desejoso de mostrar serviço e fazer carreira, como efetivamente fez, logo subindo a inquisidor.

Mandou chamar Apolónia mas… o seu testemunho seria uma desilusão. Disse que, na verdade, nunca vira os amos comer sangue, e os animais eram sempre degolados, exceto os porcos cujo sangue era aproveitado para os criados comerem. Porém que o candeeiro da sala todos os dias se acendia da mesma forma, que a patroa nunca a mandou descansar ao sábado nem trabalhar aos domingos e dias santos e “sempre lhe viu comer toucinho e nunca lhe mandou tirar a gordura da carne”.

Para autuar as declarações de Catarina, que entretanto se tinha ido a servir para a vila de Cortiços, foi encarregado o comissário Paulo Peixoto de Sá, abade de Quintela. Catarina, para além de confirmar as denúncias feitas por Francisco Preto, acrescentou que, em dezembro de 1637, quando o inquisidor Diogo de Sousa esteve de visita a Moncorvo, seus amos pressionaram a ela e aos outros empregados para que os não fossem denunciar.

Claro que tudo isto soava como música aos ouvidos do comissário Castelino de Freitas que encontrou mais dois denunciantes. Um deles foi Francisco Durão, de Maçores, que estivera 5 meses servindo em casa de Branca Coutinho que confirmou as denúncias citadas e acrescentou que seus amos, ao anoitecer, se iam para uma varanda interior fazer rezas judaicas. Em sua defesa, diria Isabel que Francisco Durão era parente muito chegado de Francisco Preto, que o terá induzido também.

A outra testemunha foi Mateus de Sá Pereira,(2) escrivão da câmara, o qual declarou que Manuel Pereira e Branca Coutinho e seus familiares guardavam o sábado, não trabalhando e vestindo os “fatos domingueiros”. E isso o sabia porque de sua casa via as portas e janelas dos denunciados.

A grande preocupação do comissário Castelino era que os denunciados fugissem, tal como acontecera em Lampaças, onde Manuel Henriques Pereira tinha uma irmã casada com Manuel Almeida Castro. Por isso escrevia para Coimbra, pedindo a prisão de Manuel e Branca e outros mais, servindo-se do exemplo de Quintela:

— Dos penitenciados que saíram neste último auto, naturais do lugar de Quintela, não assiste ali mais do que António Henriques Raba e sua mulher e estes aos dias santos vão às igrejas com seus hábitos umas vezes mais às claras, outras vezes mais cobertos, com mantilha ela e ele mais contente atrás (…) E se a VM lhes parecer que com isso se há-de fazer obra, que seja com muita pressa, que todos os parentes de Manuel Henriques Pereira estão com o pé no estribo (para fugir) e também aviso que esse homem é irmão da mulher de Manuel de Almeida…

Obviamente que por Moncorvo corriam boatos e Manuel e Branca iam tratando em defender-se, pressionando ou tentando cativar testemunhas. E aconteceu mesmo que Francisco Fernandes Preto, depois de vir de Coimbra, se terá dirigido a casa de seus amos a pedir perdão, dizendo que, num momento de raiva, denunciara falsamente a sua ama quando se foi confessar a um frade do convento de S. Francisco e este o obrigara a ir a Coimbra fazer a dita denúncia na inquisição.

Seria? Facto é que, em Abril de 1641, foi recebida na inquisição de Coimbra uma carta, assinada por Manuel e Branca acusando Francisco Fernandes Preto de falsário e de ter induzido as outras criadas a mentir. Pediam, por isso, que, como falsário, fosse preso e condenado às galés.

Na verdade Francisco foi chamado a esclarecer os senhores inquisidores que, ao início de julho de 1641, mandaram prender Branca Coutinho e o marido.

Por 3 anos, Branca Coutinho suportou os horrores da cadeia, sempre negando as práticas judaicas e não denunciando ninguém. Foi posta a tormento, sendo-lhe dados dois tratos espertos, mantendo-se firme. 

Acabou por sair condenada em cárcere e hábito a arbítrio e ao pagamento de 100 cruzados, no auto da fé de 10.7.1644. Contava então 43 anos e, regressada a Moncorvo, não se ficou por ali a remoer mágoas. Com os filhos rumou a Madrid, certamente contando com o apoio dos parentes. Em 1650, juntamente com os dois filhos mais novos, Diogo e Isabel, abalou para Bayonne, França. O filho mais velho, Henrique, permaneceu em Madrid, trabalhando na Casa Montesinhos, no negócio da distribuição do sal.

Em 1660, depois que Fernando Montesinhos e outros membros da família de Manuel Almeida Castro foram processados pela inquisição de Espanha e se foram viver para a Flandres, também o Henrique foi com eles. E para junto deles, em Antuérpia, seguiram de Bayonne, a Branca e a filha Isabel. Esta acabou por casar com seu primo Francisco Lopes de Castro, enquanto o Henrique casou com Isabel de Barrios. Diogo, o filho de Branca, iria antes para Amesterdão onde trabalhou como escrivão de um negociante, regressando a Madrid onde seria também processado pela inquisição deToledo.(3)

Notas:

1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 4801, de Branca Coutinho.

2 - IDEM, Desembargo do Paço, leitura de bacharéis, letra M, mç. 18, n.º 13, processo de leitura do bacharel Mateus Sá Pereira. Em sua defesa, Branca Coutinho disse que o bacharel Sá Pereira “lhe é muito suspeito porque, tendo um álamo na sua fazenda, que assombrava a quinta da mãe da ré, vindo o álamo a secar, se persuadiu o contraditado que fora ocasião disso um (escravo) negro de Filipa Henriques, irmã dela ré que o escavacara”.

3 - SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600-1670, Estugarda, Franz Steiner Verlag, 1994, pp. 77 – 78.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Henriques Pereira (Torre de Moncorvo, 1593 – Coimbra, 1641)

Manuel Henriques Pereira, nascido em Moncorvo por 1593, foi um dos 11 filhos de Henrique Lourenço e Isabel Pereira(1) e o único que casou e assentou morada na terra natal, na casa dos pais, sita à rua dos Mercadores, avaliada em 100 mil réis.

E por falarmos na herança dos pais, diga-se que toda estava “obrigada à feitoria d´el-Rei e a obrigou seu irmão Diogo Henriques, já defunto”. E agora vejamos os bens:

Um olival à Fonte do Concelho, que valia 150 mil réis.

Uns moinhos que estão na ribeira de Felgueiras, avaliados em 100 mil réis.

Outro moinho que está na ribeira do Felgar, no valor de 20 mil réis.

Outro moinho que está em Felgueiras que vale 80 mil réis.

Uma terra, cercada, ao Santiago, junto à vila, que valia 100 mil réis.

Uma vinha às Aveleiras, com valor de 70 mil réis.

Uma terra no Larinho, outra à Sobreira e outra aos Engestos, que valiam uns 70 mil réis.

Umas casas por cima de S. Bartolomeu,(2) avaliadas em 20 mil réis.

Três “casas de colher linho, da feitoria d´el-rei, que valem 24 mil réis”.

Não conhecemos qualquer regulamento desta Feitoria criada por Filipe II em Moncorvo, em 1617, tornando-se difícil interpretar a “obrigação” de Manuel Henriques à mesma fábrica.(3) Suspeitamos de uma espécie de parceria público-privada, como hoje dizemos, sendo a Fábrica, Real, em termos de receção da matéria-prima (o linho) e garantia de escoamento do produto: as cordas e enxárcias para equipar os barcos da marinha real. A fábrica, no entanto, seria privada, gerida por Manuel Pereira. E isso dá-nos uma ideia da sua importância. Aliás, na Corte, ele tinha um irmão que era “médico do Conselho de Portugal em Madrid”, uma irmã, Filipa Henriques, casada com Manuel Almeida Castro, líder de uma poderosa família de mercadores e assentistas instalados na capital ibérica,(4) para além de outros familiares em círculos comerciais estratégicos como o do fabrico de sedas em Pastrana(5) ou andavam pelas Índias de Castela(6).

Não sabemos se algum dos moinhos inventariados pertenceu aos pais de Branca Coutinho,(7) sua mulher, e foi levado por esta em dote no casamento, juntamente com um olival sito no limite da vila, no sítio chamado Bragança (pela chamada curva da ferradura) e duas vinhas, uma na Costinha (junto do campo de futebol) e outra em Ribacavada (quinta do Cuco).

Conhecendo as propriedades citadas, podemos apresentar este homem como um lavrador abastado. E podemos também defini-lo como industrial de panificação, rezando as crónicas que dos moinhos de Felgueiras saía quase todo o pão que se comia na vila de Moncorvo.

No entanto, a profissão de Manuel Henriques Pereira era a de rendeiro e trazia arrematadas as rendas do arcebispado na área da comarca de Torre de Moncorvo. Nesta qualidade fazia muitas viagens a Braga e na sede arcebispal teria um bom relacionamento.

E sendo ele o rendeiro das terças arcebispais, entendiam os mordomos da confraria do Santíssimo de Cabeça Boa e Cabeça de Mouro, recentemente criada, que deveria contribuir para as despesas com a cera e o azeite consumido na igreja matriz. Nesse sentido, dirigiram-se à sede do concelho e, na praça central, apertaram com ele para que desse o dinheiro para a compra do azeite e da cera. Manuel Pereira terá respondido “que lhes daria um corno”, o que foi interpretado como um insulto ao Santíssimo Sacramento.

A cena ocorreu em dezembro de 1632 e, em abril de 1633, o ferrador Domingos Pires Álvares apresentou-se na inquisição de Coimbra a contar o sucedido, acrescentando o nome de 5 pessoas que com ele estavam presentes na praça e assistiram à cena, entre elas 3 padres e o advogado João Gois,(8) uma das mais destacadas figuras da aristocracia cristã de Moncorvo.

Os inquisidores abririam um processo e nele escreveriam a denúncia e, em Torre de Moncorvo, tudo ficaria sossegado. Porém, 4 anos depois, em Agosto de 1637, veio de Coimbra a Trás-os-Montes o inquisidor Diogo de Sousa, em visitação. E então, no segredo da “casa onde pousava o santo ofício” e cobertos pela capa do anonimato, o advogado Gois e outros destacados homens da nobreza e da governança da terra, apareceram e denunciar Manuel Henriques Pereira, como foi o caso de Luís Figueiredo Bandeira,(9) Tomé de Castro Borges,(10) Mateus de Sá Pereira…(11)

Espremendo as denúncias, verifica-se que nenhum deles viu coisa de importância contra o santo ofício, todos referindo cenas que ouviram contar a criados e criadas e muito em especial a Francisco Rodrigues Preto, que costumava acompanhar o rendeiro a Braga e nas visitas relacionadas com a recolha das rendas. Francisco era natural do Peredo dos Castelhanos e andara um ano a servir de graça, em paga de uma dívida contraída pelo pai, perante o nosso rendeiro. Depois, de pagar a dívida, continuou no mesmo serviço, livremente contratado.

Este, sim, apresentou-se perante o inquisidor e contou que seus amos guardavam o sábado, não comiam carne de porco, às sextas-feiras à tarde limpavam a casa e acendiam um candeeiro especial, com torcida nova, que ficava aceso até consumir todo o azeite. Em prova de seu testemunho nomeou duas mulheres (Catarina e Apolónia Luís) que, em tempos, serviram como criadas em casa de Manuel e Branca.

Parece que Francisco se arrependeu e foi pedir perdão a seu amo, que o pressionava por todas as formas para que fosse, judicialmente, desdizer-se. Não o conseguiu mas, a verdade é que foi preso e levado a Coimbra, acusado por Manuel Pereira de perjuro e de ter induzido as criadas a jurar falso.

Se Manuel Pereira pressionava o serviçal para se desdizer, o advogado Gois pressionava em sentido contrário e o vigário-geral, Paulo Castelino de Freitas,(12) comissário do santo ofício desdobrava-se em diligências e informações para Coimbra indiciando comportamentos judaizantes na família de Manuel e Branca e aconselhando a sua prisão, pois “são os oráculos da gente da nação desta vila”.(13) Efetivamente, foram presos em 9.6.1641 e conduzidos a Coimbra pelo familiar do santo ofício Francisco de Gouveia Pinto.(14)

A estadia de Manuel Pereira na cadeia foi curta. Menos de 4 meses depois, em 30.9.1641, morreu, com o corpo cheio de borbulhas que “botaram por vezes muita peçonha”. A sentença, porém, só foi lida no auto da fé de 15.11.1643 mandando-lhe dar sepultura eclesiástica e fazer por sua alma os sufrágios cristãos. No entanto, por ter sido herege, mandaram que os seus bens fossem confiscados, bens que foram inventariados pelo comissário Castelino que terminou o inventário escrevendo:

— Achei muito móvel e fazenda demais!

 

Notas:

1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 7498, de Manuel Henriques Pereira.

2 - Ignoramos se a capela de S. Bartolomeu era a atual da invocação Sr.ª dos Remédios, ou se haveria outra capela nas proximidades, pois à rua dos Sapateiros se seguia a rua de S. Bartolomeu.

3 - ANDRADE, António Júlio – Moncorvo: Páginas de História 15 – A Fábrica dos Linhos Cânhamos, in: Jornal Terra Quente de 1.1.1996. A fábrica seria remodelada em 1656, com o rei D. João IV, que lhe deu um regimento, estabelecendo as regras da administração e nomeação de administradores e funcionários pelo poder central e determinando as obrigações dos lavradores das comarcas de Moncorvo e Pinhel na entrega dos linhos, cultura tornada cultura quase obrigatória.

4 - O irmão médico, Pedro Henriques, estudou em Salamanca e Alcalá de Henares e foi casado com Inês Pereira; na Flandres, residia o irmão Julião Henriques, “que fazia viagens para a Índia”, casado com uma filha de Filipa Henriques e Manuel Castro.

5 - Em Pastrana, com o trato das sedas, se estabeleceu sua irmã Violante Pereira casada com Diogo da Mesquita, natural de Trancoso, bem como o irmão António Vaz, casado com Inês Pereira, de Vila Flor.

6 - Fernão Pereira e Henrique Lourenço. Este terá casado no México com uma cristã-velha.

7 - Branca Coutinho era filha de Pedro Henriques Julião e Francisca Vaz.

8 - ANTT, RGM, liv. 5, f. 197v-198. – Alvará de 25.6.1642, nomeando João Góis procurador da Coroa na vila de Moncorvo.

9 - ANTT, TSO, Habilitações, Luís, mç. 2, doc. 49, 1643.Figueiredo Bandeira era natural de Campo de Besteiros, casado em Moncorvo com D. Ana de Madureira.

10 - ANTT, RGM, liv. 7, f. 71-72v – Alvará de 11.11.1648, concedendo-lhe licença para renunciar os ofícios de chanceler, promotor e escrivão da correição de Torre de Moncorvo.

11 - ANTT, DP, leitura de bacharéis, letra M, mç. 18. N.º 13, 1631, processo de leitura do bacharel Mateus de Sá Pereira.

12 - ANTT, RGM, liv, 14, f. 377-377v, 1649, alvará de desembargador da casa da Suplicação, concedido a Paulo Castelino de Freitas.

13 - Significativo do zelo do comissário Castelino é a carta que os inquisidores escreveram e que terminava assim: — É de informar o vigário-geral da vila de Torre de Moncorvo que nesta mesa há grande satisfação, porque se temia que os delatos se ausentassem da dita vila.

14 - ANTT, Habilitações, Francisco, mç. 5, doc. 28, 1640, diligência de habilitação para familiar da inquisição de Francisco de Gouveia Pinto.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Torre de Moncorvo 4.º Encontro de História e Cultura Judaicas

Em termos de história e cultura judaica, Torre de Moncorvo constitui caso singular. Com efeito, no ano de 1976, quando em Trás-os-Montes fervilhavam comícios políticos, realizaram-se ali umas jornadas de cultura judaica, promovidas pela câmara municipal presidida pelo Sr. Almiro Sota. Seguiu-se a atribuição do título de cidadão honorário ao embaixador de Israel, Sr. Halevy-Milmar em reunião de câmara de Moncorvo de 1.6.1982 e o pedido de geminação da vila trasmontana com uma cidade israelita.

Quando se esperava que a iniciativa entrasse a “dar frutos”, no campo da cultura e do turismo e do estreitamento de relações culturais, aconteceu o contrário, certamente porque os responsáveis políticos camarários que seguiram consideravam o assunto de menor interesse. Só em 2002,no salão nobre da câmara se realizou uma sessão, com palestras de dois investigadores da Cátedra de Estudos Sefarditas e apresentação do livro “Subsídios para o Estudo da Inquisição em Torre de Moncorvo”. Anos depois, com o mesmo presidente da Câmara, Eng.º Aires Ferreira, foi apresentada a obra “Os Isidros – A Epopeia de uma Família de Cristãos-novos de Torre de Moncorvo” e um prospeto desenhando uma rota dos judeus na vila de Moncorvo, que ainda hoje é distribuído no posto de turismo local.

Entretanto, outros municípios lançaram iniciativas semelhantes (e muito mais agressivas, refira-se), no sentido de estudar e promover os estudos de cultura judaica, com vista à promoção de rotas de turismo. Foi o caso de Belmonte, Guarda, Trancoso, Castelo de Vide, Tomar…

Em 2015, com o atual Presidente da Câmara, Dr. Nuno Gonçalves promoveu-se a adesão de Torre de Moncorvo à Rede das Judiarias e realizou-se o 1.º Encontro de História e Cultura Judaica.

Nos dias 22 e 23 pp. teve lugar o 4.º desses Encontros. A organização foi da responsabilidade da câmara e coordenação científica da Dr.ª Adília Fernandes, e Dr. Adriano Vasco Rodrigues, Moncorvenses de incontestável saber e vasto relacionamento na matéria.

Congratulamo-nos com a iniciativa que trouxe a Torre de Moncorvo Mestres como o Sr. Professor Norberto Cunha, da universidade do Minho, o Sr. Dr. António Assis, da universidade Lisboa, o Sr. Professor Luís Reis Torgal, da universidade Coimbra, o Sr. Dr. Carlos de Almeida Barata, da universidade federal do Rio de Janeiro e o Sr. Dr. Fernando Rosas, da universidade

Nova de Lisboa. Obviamente que não nos atrevemos a comentar os trabalhos apresentados, todos de âmbito mais ou menos geral, relacionados com a inquisição e cristãos-novos. Ao público presente agradou particularmente a intervenção de Fernando Rosas, fazendo uma brilhante história do judaísmo e da inquisição em Portugal. Tratou-se, em parte, da reposição de um programa já transmitido pela RTP-2.

De natureza mais particular e específica foi a conferência do Sr. Dr. Guilherme Maia Loureiro intitulada: – O Moncorvense Francisco Botelho de Morais e a importância da crítica das fontes de Genealogia Sefardita.

Antes de mais, cumpre render homenagem ao genealogista Dr. Loureiro pela preocupação que teve em preparar um trabalho adaptado ao local e ao público-alvo da conferência. Pela primeira vez, na história destes Encontros, alguém que veio de fora apresentou um texto especificamente dirigido ao auditório Moncorvense, tratando um tema referente à história judaica de Torre de Moncorvo.

Perdão: o tema não respeita apenas a Moncorvo, mas também a Freixo E. Cinta e outras terras trasmontanas. Na verdade, ao longo de 500 páginas de diligências para habilitação de António Coelho Meireles e seu irmão José Borges Varejão, desenrolam-se incríveis lutas políticas e questões sociais, mostrando grandezas e misérias da nobreza e da aristocracia cristã-velha da região e do viver quotidiano dos cidadãos.(1) Vamos contar.

Como sabem, a inquisição tornou-se numa poderosa e temida organização que dominava toda a sociedade, muito especialmente a partir da aprovação das leis de limpeza de sangue que proibiam o exercício de determinadas atividades e a entrada nas classes da nobreza e do clero aos cristãos-novos.

Por outro lado, era muito prestigiante e economicamente rentável ser funcionário ou colaborador da inquisição. O acesso, porém, era extremamente difícil e os pretendentes sujeitos a rigorosos processos de investigação.

Aconteceu que, em 1702, José Borges Varejão, filho do capitão-mor de Freixo, então solteiro e depois casado com a não menos nobre D. Maria de Távora de Carvalhais, apresentou o seu pedido para ser familiar da Inquisição.(2)

De acordo com o regimento da inquisição, abriu-se um processo para averiguar se entre os seus ascendentes houve algum com fama de judeu ou cristão-novo. Como o seu avô paterno (António Varejão de Gamboa) era natural de Torre de Moncorvo, foram também feitas investigações nesta vila, ouvindo-se uma dúzia de pessoas das mais velhas e credenciadas da terra. E entre elas foi chamado a testemunhar Francisco Botelho de Morais, que, além de capitão-mor da comarca e homem da governança da câmara, era um dos mais famosos genealogistas Trasmontanos, tendo escrito, entre outras obras, um “Nobiliário de Famílias nobres de Portugal e particularmente da província de Traz-os-Montes”. Em seu depoimento, Botelho de Morais, foi cáustico e, entre outras declarações, afirmou:

— José Borges Varejão é descendente de nação hebreia e cristão-novo por três vias, porquanto Pedro de Esportilho, casado com Mécia de Esportilho, cristão-novo inteiro, vivendo em Valhadolid, sua pátria, foi o dito Pedro Esportilho preso pelo santo ofício e queimado, e o seu retrato se pôs na sé da dita cidade ou igreja onde se costumam pôr semelhantes retratos. E a dita sua mulher com uma filha do mesmo nome vieram para Bragança aonde casou a dita filha com um homem principal e deles foi filha Maria Lopes Esportilho que veio casar a esta vila de Moncorvo e desta foi filho António de Castro, chanceler da correição e deste foi filha Maria de Castro e desta foi filho António Varejão de Gamboa e deste é filho Pedro Varejão de Gamboa, pai do justificante…(3)

Limpo, limpinho, maior clareza não podia haver, a respeito desta primeira via judaica. Além da via dos Portilhos, havia também sangue judeu proveniente de Maria Álvares de Castro que veio de S. Felices de Gallegos para Freixo a casar com João Fadiga. Desta Maria Álvares descendiam Maria Pinta, avó paterna de José Borges Varejão e Catarina de Meireles, avó materna do mesmo. Esta ascendência judaica das avós do habilitando fora já denunciada por outras testemunhas de Freixo. Aliás, havia pessoas que se recordavam de três filhas de Pedro Lopes da Fonseca e Maria Coelha Zuzarte que, em 1669, foram presas pela inquisição de Coimbra, acusadas de judaísmo e eram da família do candidato.

Não vamos falar das investigações que então se fizeram sobre a ascendência de S. Felices de Gallegos. Vamos ater-nos à denúncia de Botelho de Morais sobre os Portilho, uma família muito importante e que tinha descendência espalhada por todas as famílias nobres de Trás-os-Montes. Assim, infamar José Borges Varejão era infamar outras famílias nobres de Trás-os-Montes. Acresce que, antes e depois de Borges Varejão outros candidatos a cargos inquisitoriais ou eclesiásticos da descendência dos Portilho tinham sido considerados como cristãos-velhos, sem qualquer gota de sangue judeu, havendo quantidade de padres como era o caso, em Torre de Moncorvo, do padre Jacinto de Castro Borges, da Companhia de Jesus e do padre Bartolomeu de Castro Borges, beneficiado da igreja matriz de Moncorvo, filhos do Dr. João Gois e sua mulher, Ana Borges. Inclusivamente havia no tribunal de Lisboa, um inquisidor natural do Vimioso – Manuel Pimentel de Sousa – “que descende de Rui Gonçalves de Gusmão e Mécia Portilho”, conforme se escreve neste mesmo processo, em nota à margem.

Tudo isto foi contado por José Borges Varejão em uma longa exposição, acrescentando que Francisco Botelho de Morais “põe nas genealogias das pessoas a quem tem ódio, mácula”. E explicou que o ódio do genealogista vinha de tempos antigos, das lutas entre os Botelhos e os Castros, com “mortes e cortamento de pernas”… contos que darão um livro de história política de Moncorvo naquela época.

Obviamente que os inquisidores mandaram apurar a verdade. Voltou o comissário a Torre de Moncorvo, instalando-se no convento dos frades franciscanos, para evitar que fosse conotado com uma das parcialidades. Ele próprio explicou:

— Por evitar os juízos que os moradores faziam se vissem ir Francisco Botelho de Morais falar comigo tempo dilatado, porque me consta dizem em semelhantes ocasiões: “quem será o miserável sobre que cairá o raio de Francisco Botelho”, por lhe chamarem o inimigo comum e bem mostrar ser, pois o é de sua mulher e filhos, com os quais não só não trata, mas os desacredita por papéis, em litígios que com eles trás (…) na tal vila (Torre de Moncorvo) haveria mais de 70 anos tendo notícia houvera parcialidades entre a família dos Borges, de que descende o justificante e a família dos Botelhos e dos Castros, de que descende Botelho de Morais (…) parcialidades foram tais e os ódios, que continuadamente se andaram infamando nas partes mais públicas, e fazendo pendências que pareciam guerras civis naquela vila (…) nas tais pendências cortaram uma mão os Borges a Damião Caldeira, da família dos Botelho, de que procede o dito Francisco Botelho…(4)

Impossível no âmbito dessa página fazer uma descrição detalhada dos acontecimentos. Diremos tão só que as diligências se dilataram no tempo (por 40 anos!) e no espaço (foram também a Espanha, onde se provou que Maria Álvares descendia de uma família da nobreza, com brasão insculpido na igreja). E o candidato estava já “adiantado em anos e cheio de moléstias e achaques” quando os inquisidores decretaram a sua limpeza de sangue.

Enquanto as diligências de habilitação de José Borges Varejão correram, seu irmão, António Coelho Meireles, que fora juiz de fora em Viseu, corregedor em Portalegre e Coimbra e desembargador da relação do Porto, ascendeu à posição de desembargador da Casa da Suplicação, numa carreira de sucesso. E buscando mais prestígio social e proventos económicos, requereu a continuação do processo e o cargo de familiar do santo ofício. Foi-lhe a carta concedida em 16.9.1745. Nesta altura já Botelho de Morais era também falecido e desacreditado como genealogista.

Notas:

1 - A nossa investigação sobre este caso começou em janeiro de 2018 quando preparávamos a biografia de Antónia Coelho Zuzarte. – Jornal Nordeste, n.º 1106, de 23.1.2018.

2 - Os Familiares eram informadores e executavam as ordens transmitidas pelos comissários, como fossem as de executar as prisões e conduzir os prisioneiros às cadeias da inquisição.

3 - Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 100, doc. 1793. Provou-se mais tarde, com documentos autênticos, que as informações de Francisco Botelho não eram totalmente verdadeiras.

4 - Ao corte da mão de Caldeira, terá seguido uma espiral de violência com Jerónimo Botelho de Vasconcelos, “cabeça do rancho contra a família dos Borges” a matar uns filhos do Dr. João Gois e os Borges a responder, matando Jerónimo Dessa, da parcialidade dos Botelhos. Razão teria o abade do Felgar ao falar de uma verdadeira “guerra civil” em Torre de Moncorvo.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Pero Henriques Julião (Torre de Moncorvo, 1565-1634)

Pero Henriques Julião nasceu em Torre de Moncorvo cerca de 1565. Seu pai, Julião Henriques, era médico e, por 1570, vivia em Castela, na localidade de Vilvestre, sendo acusado perante o inquisidor Jerónimo de Sousa de ter participado numa celebração judaica em Freixo de Espada à Cinta.(1) A mãe, nascida em Vila Flor, chamou-se Branca Coutinho e vinha de uma família principal da burguesia local hebreia, sendo neta materna de Manuel Coutinho, certamente batizado em pé, que foi criado de Álvaro Pires de Távora. Mas isso não impediu que a filha (Brites Coutinho) e o genro (Leonel Fernandes),(2) pais de Branca Coutinho, avós de Pedro Henriques Julião, fossem presos pela inquisição de Coimbra em 1568, acabando ela queimada na fogueira do auto da fé de Lisboa de 20.8.1570.

Não menos importante era a família de Francisca Vaz, a mulher com quem casou Pedro Henriques Julião, neta materna de Pedro Henriques, o Cavaleiro que acompanhou el-rei nas campanhas pelo norte de África.

O casal fixou residência em Torre de Moncorvo, na Rua dos Sapateiros, em uma casa de sobrado avaliada em 80 mil réis, que confrontava com a do boticário Álvaro Nunes.(3) Pedro Julião pertencia à classe aristocrática dos rendeiros e, por isso, andava constantemente fora de casa na cobrança das rendas. E viajava com regularidade, sobretudo para Braga, onde ia arrematar as rendas arcebispais.

Para além disso, ele era “depositário geral das obras públicas deste reino”, cargo de nomeação régia, sob proposta conjunta do corregedor e do provedor da comarca e cujas funções poderíamos, numa comparação grosseira comparar nos dias de hoje às de “banqueiro” e, em simultâneo, “diretor regional de finanças”. O cargo exigia uma grande capacidade financeira,(4) a qual justifica também que Pedro Julião fosse nomeado repartidor e cobrador, na área da comarca, da finta lançada entre os cristãos-novos portugueses, como “serviço a el-rei Filipe”, para obtenção do perdão.

Para além de rendeiro, Pero Henriques, era um verdadeiro empresário agrícola, explorando um olival à Fonte do Concelho, outro ao Vimieiro, outro ao Prado e um na freguesia de Horta da Vilariça. Porém, o maior de todos era o das Porreiras que valia mais de 500 mil réis. Era ainda proprietário da Quinta do Montesinho, que começava ao fundo da Rua dos Sapateiros. Tinha um pedaço de vinha à Pipa e um sumagral no Vimieiro. O sumagre recolhia-o em dois palheiros e o moía, para o que dispunha de uma atafona, cuja localização não conseguimos apurar.

Em 1618, a inquisição lançou uma grande operação sobre a classe mercantil portuense, prendendo, nomeadamente, alguns que eram originários de Vila Flor e Torre de Moncorvo,(5) que, por sua vez denunciaram Pero Julião e outros, originando o seguinte despacho dos inquisidores de Coimbra:

— Mandamos a João da Costa, familiar da inquisição, morador nesta cidade, que vades à vila de T. Moncorvo e Vila Flor e ali vos encarregareis das pessoas que vos derem presas…(6)

Dois dos prisioneiros levados de Torre de Moncorvo foram Pero Henriques Julião e Manuel Rodrigues Isidro,(7) possivelmente os dois homens mais endinheirados da terra e as duas maiores referências daquela geração de gente da nação de Torre de Moncorvo.

Olhando o processo de Julião, diremos que, em sua defesa, indicou testemunhas da mais alta nobreza e do clero, a começar por Diogo de Sampaio, cavaleiro fidalgo do hábito de Cristo, pelo arcediago da sé de Braga, Pedro da Fonseca e pelo reitor da igreja matriz de Torre de Moncorvo, padre João Lopes. Todos as testemunhas ouvidas o consideravam cristão exemplar, irmão da Misericórdia, membro das confrarias de Santo António e da Senhora do Rosário. E referiram que, quando se tratou de fazer o retábulo do altar da Senhora do Rosário, na igreja matriz, Pero Henriques Julião, se responsabilizou pelo pagamento de um painel do mesmo retábulo.(8)

De referir também que as duas denúncias registadas no processo, uma de Tomé Vaz, negociante do Porto e outra de Pedro de Matos, morador em Lagoa, Macedo de Cavaleiros, foram feitas depois de Pedro Julião estar preso em Coimbra, significando isto que os inquisidores de Coimbra mostravam então pouco respeito pelo regimento da inquisição.

Concluiu-se o processo dois anos depois, com o réu a abjurar de leve suspeito no auto da fé de 29.11.1621, regressando a casa onde o esperava sua mulher, 3 filhos e 3 filhas, então todos solteiros. Apesar de tudo o que a inquisição lhe comeu, a sua casa continuaria a crescer, acrescentada nomeadamente com 3 moinhos na ribeira de Santa Marinha, no termo da aldeia de Felgueiras, conforme conta do processo de sua mulher, geridos pelo moleiro, seu criado, Francisco Brás. Pedro H. Julião viria a falecer por 1634, contando 69 anos de idade e deixando casadas as 3 filhas(9) e os filhos solteiros. Um deles faleceu logo de seguida, outro andava pelas Índias de Castela e o terceiro assistindo em Vigo, de onde abalaria mais tarde, “não sabe para onde”, conforme testemunho de sua mãe.

Francisca Vaz, sua mulher, viria a ser também presa pela inquisição em Julho de 1641. Requerendo a prisão de Francisca Vaz, suas filhas Filipa e Branca e seu genro Manuel Henriques Pereira, o promotor justificava:

— Lembro a vossas mercês que a Torre é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a inquisição que fez muito fruto entrando também por testemunhos de cerimónias em Quintela (de Lampaças) e em Sambade.(10)

O processo de Francisca foi iniciado em Torre de Moncorvo pelo vigário-geral do arcebispo de Braga e comissário da inquisição, o Dr. Paulo Castelino de Freitas que viria a ser inquisidor do tribunal de Goa. A vida desta mulher no cárcere foi verdadeiramente dramática, sendo-lhe dados “três tratos corridos” que a deixaram à beira da morte. Com efeito, nem sequer compareceu no auto da fé de 12.7.1644, em que seria lida a sua sentença. “Estava para morrer, sem sentidos”, conforme ficou escrito no processo.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, livro 662, visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa em Torre de Moncorvo: — Bartolomeu Fernandes (…) disse que haverá 11 anos, morando ele com Álvaro Vaz, cristão-novo, mercador nesta vila e agora está casado com uma irmã de Julião Henriques (…) e indo uma vez a Castela com panos, passaram a barca de Vilvestre de noite e se vieram agasalhar a Freixo de Espada à Cinta, em casa de uma viúva, Francisca Rodrigues (…) estalajadeira e ali veio ter com o dito seu amo Julião Henriques, físico, que então morava em Vilvestre e agora mora em Vila Flor (…) depois de se deitar, fez que dormia e o dito seu amo, com os mais cristãos-novos, a estalajadeira e duas filhas suas mulheres se juntaram junto do fogo e mandaram pôr uma mesa com um alambel por cima, e puseram duas velas em dois castiçais, acesas na dita mesa e entre estas velas puseram um livro de quarto que poderia ter duas mãos de papel e o abriram e cada um deles lia pelo dito livro e o primeiro que começou a ler foi Julião Henriques…

2 - Inq. Lisboa, pº 2182, de Leonel Fernandes; pº 807, de Brites Coutinho.

3 - Tinha também casas que trazia arrendadas, uma delas no Prado de Cima, junto “à cruz de Bragança”, outra defronte da casa de Diogo Sampaio, outra que partia com os herdeiros de Pedro da Mesquita, além de duas que serviam de armazéns, ao fundo da Rua dos Sapateiros…

4 - O depositário que o antecedeu foi Domingos Henriques, filho de Pero H. Cavaleiro.

5 - O nome de Feliciana Henriques, natural de T. Moncorvo, casada com o ourives Álvaro Rodrigues Preto, integrava a primeira lista de pessoas a prender na cidade do Porto. Tal como o de Tomé Vaz, advogado, que tinha “algum parentesco” com Pedro Julião e o primeiro a denunciá-lo.

6 - Inq. Coimbra, pº 5814, de Pedro Henriques Julião.

7 - Inq. Coimbra, pº 448. ANDRADE e GUIMARÃES, Os Isidros a Epopeia de uma Família de Cristãos-Novos de Torre de Moncorvo, Lema d´Origem, Porto, 2012.

8 - O altar da Senhora do Rosário foi posteriormente substituído. Dele resta um painel da Senhora do Rosário que foi metido no retábulo que hoje ornamenta a sacristia da igreja matriz, segundo informação do falecido sacristão, Sr. Júlio Dias.

9 - Catarina Henriques, nascida por 1600, casou em S. João da Pesqueira, com Manuel Francisco da Mesquita, que faleceu por 1656, morando o casal na cidade do Porto e ela, ficando viúva, foi presa pela inquisição, terminando queimada na fogueira do auto da fé de 3.5.1660; Filipa Henriques, casou em Vila Flor, com António Henriques Alvim, rendeiro e sendo já viúva em 1641, foi presa pela inquisição, saindo penitenciada em cárcere e hábito; Branca Coutinho casou em Torre de Moncorvo com Manuel Henriques Pereira, também rendeiro e, como as irmãs, também ela foi prisioneira da inquisição.

10 - Inq. Lisboa, pº 5022, de Francisca Vaz.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Somos Douro – O Património Judaico

Aconteceu há dias, em Torre de Moncorvo, na igreja da Misericórdia, (1) uma conferência sobre o tema, organizada pela CIM-Douro e proferida por Richard Zimler, autor de “O Último Cabalista de Lisboa”.  Congratulamo-nos com a iniciativa e achamos imperioso que se estude esse património. Na verdade o património judaico da região é muito importante e quase inteiramente desconhecido.

E sendo desconhecido e pouco estudado, nasceram algumas ideias e teorias erradas e contraditórias. Uns dizem, por exemplo, que foi o dinheiro dos judeus e cristãos-novos que pagou a construção das igrejas e dos palácios da região e que eles eram médicos, advogados, banqueiros, rendeiros e grandes mercadores, movimentando quase toda a economia.

Outros, ao contrário, baseados em estudos fragmentados, fazem afirmações estonteantes dizendo que 99% deles eram pobres e, dando como exemplo a comunidade de Belmonte, dizem que nela não encontraram um médico, nem um advogado, nem uma mulher que soubesse ler e escrever.

Por nós, baseados em cerca de 1 500 processos da inquisição, a grande maioria referentes a gente da nação trasmontana e duriense, diremos que, nem 8 nem 80 e que, embora a gente da nação seja, por natureza, universalista e errante, cada comunidade é um caso e em cada lugar eles se adaptavam às circunstâncias, derivadas da geografia e do clima, mas também da organização da sociedade, constituída por cristãos-velhos e cristãos-novos, gente da nobreza, do clero e do povo.

Assim, em terras onde abundavam serviços e funcionários públicos, como era o caso de Torre de Moncorvo, Bragança ou Vila Real, sobressaem médicos, advogados, cobradores de rendas e prestadores de serviços à casa real. E também à cúria episcopal de Miranda do Douro e às casas da nobreza: os Távoras em Mirandela e Mogadouro, os senhores de Sampaio em Vila Flor. Tinham verdadeiras cortes e os mais celebrados de seus cortesãos foram o Dr. Francisco da Fonseca Henriques, o célebre Dr. Mirandela e Maese António de Valença (2)  , o afamado físico de Mogadouro, ambos da etnia hebreia.

O que não encontrámos foi um único cristão-novo que fosse criado de servir. Encontrámos apenas uma viúva de Bragança, chamada Mariana de Santiago, pertencente a uma família da aristocracia que, vivendo em Lisboa caiu na pobreza e foi recolhida como serviçal, em casa de uns parentes. (3) De contrário, encontramos numerosos hebreus que tinham criados e criadas de servir em suas casas e jornaleiros cristãos-velhos a trabalhar em suas propriedades agrícolas ou industriais.

Por falar em propriedades, existe a ideia errada que eles desprezavam a agricultura. A verdade é que não seria bem assim. Olhemos para a veiga de Mirandela onde a cultura predominante era a do linho. Pois, o maior produtor era o cristão-novo Manuel Pereira da Fonseca, que, em 1693, colhia 360 pedras de linho, suplantando até a colheita dos Távoras. O mesmo concelho seria então o maior produtor de azeite. Pois, o primeiro lagar de azeite de que temos notícia naquela cidade, situava-se na Rua de Santo António e pertencia ao cristão-novo Manuel Mendes, o Bicho de alcunha. (4) Na região de Bragança abundavam lameiros e ganhava importância a pecuária. Também nisso investiam os da nação. Manuel Almeida Castro, (5)  por exemplo, possuía em Izeda um efetivo pecuário de cerca de 100 vacas e bois. Se formos ao planalto mirandês, onde a cultura cerealífera domina, vemos que as maiores tulhas e celeiros pertenciam igualmente a homens da nação. Sambade situava-se em meio da rota da lã e, naturalmente, a comunidade hebreia era constituída sobretudo por cardadores. Os de Chacim eram surradores e sericultores, morando aqueles nas bandas da ribeira que atravessa a vila e estes na zona alta e nobre da Praça. Falando em seda, não podemos esquecer Bragança onde a Rua Direita era uma verdadeira zona industrial com a generalidade das casas habitadas por cristãos-novos, dotadas de tornos e teares, ao nível do r/chão.

Cada comunidade é um caso e, como tal, deve ser estudada. Carção, por exemplo, foi uma comunidade de curtidores de peles, com os filhos a seguir o exemplo dos pais, no que respeita a carreiras profissionais, e também face à sociedade e à inquisição. Ao longo de gerações, ali viveram, resistindo em clandestina religiosidade, eles, os filhos e os netos. Por isso, Carção merece o título de capital do marranismo. Raros foram os que se decidiram pela fuga. Mesmo quando iam a Livorno buscar alguma bíblia e aprofundar os conhecimentos da lei mosaica, (6) eles voltavam a Carção, à casa e à atividade de seus pais e avós, enquanto na generalidade das terras, os surradores e curtidores queriam que seus filhos fossem mercadores ou torcedores de seda e estes educavam os filhos para serem médicos, advogados ou padres, em ascensão social gradativa.

Freixo de Espada à Cinta, ao contrário, era uma comunidade absolutamente instável. Poucos encontramos nascendo e morrendo na terra. Logo nos primórdios, vemos a inquisição prender Jerónimo Reinoso (7) e 3 filhos que viviam no Torrão (Alentejo) e João Garcia (8) morador em Vinhais. Branca Lourenço nasceu em Freixo e cedo se foi para Ferrara (Itália) onde viveu como judia com o nome de Isaca Rodriga. Viajou depois para Sevilha e ali se fez estalajadeira. São vários os prisioneiros da inquisição do México que falam desta estalagem onde se hospedavam muitos dos que a Sevilha iam embarcar para as Índias de Castela. Ali, um dos primeiros a chegar às minas de Tlalpujahua, por 1550, terá sido Tomás da Fonseca, nascido em Freixo, por 1620. No México o foi encontrar Pelayo Álvares, irmão da estalajadeira de Sevilha. (9) Por terras de mouros, entrando em mesquitas e sinagogas do norte de África, andava então o mercador freixenista cristão-novo António Fernandes. (10) Ele nos diz que das Canárias vinham pessoas em peregrinação a Freixo, à ermida da Senhora do Vilar.

Olhemos agora o Alto Douro onde, nos séculos de 500 e 600, a cultura do sumagre era verdadeiramente interessante. Sim, os sumagrais eram então mais rentáveis do que as vinhas, os olivais e os amendoais. A exportação de sumagre para os países nórdicos comparava-se à do vinho e, segundo  o historiador galego Lois Ladra, “nos primeiros três quarteis do século XVII, a importância económica das exportações do sumagre feitas através da barra do Douro, pesava muito mais que a do vinho”. Resta acrescentar que, a produção, comércio e utilização do pó de sumagre no curtimento das peles e preparação das solas corria sobretudo pelas mãos da gente dos hebreus. Um dos maiores produtores e exportadores de sumagre, nos anos de 700, chamava-se António Dias Fernandes, (11) natural e morador em Freixo de Numão, proprietário de 4 sumagrais, a quem a inquisição sequestrou entre 800 e 1000 arrobas de pó de sumagre, cujo preço variava entre 240 e 300 réis cada arroba.

Ainda a região vinícola do Douro não era demarcada, mas o vinho da região já seguia para as tabernas de Lisboa e do Porto. Morador em Maçal do Chão e assistente em Lisboa, Rodrigo del Cano (12) explorava na capital do Reino uma dezena de tabernas, para onde seguia quantidade de vinhos comprados em terras do Alto Douro. Bartolomeu Garcia, (13) com casa de morada em Vilarelhos, aldeia da Vilariça e casa comercial em Provesende, Sabrosa, era apenas um dos muitos mercadores cristãos-novos que, em barcos rabelos, faziam chegar ao Porto os vinhos do Alto Douro. Quando foi preso pela inquisição tinha uns 1800 almudes de vinho armazenados em Provesende, e no mês que antecedeu a prisão mandou para o Porto 30 pipas de vinho, no valor de 140 mil réis. Lamego era então a capital vinícola do Douro, a ponto de o vinho que hoje dizem do Porto, na altura era apresentado como “vinho de Lamego”. Heitor Mendes (14) era um cristão-novo natural de Gojim, casado com Branca Henriques, de Torre de Moncorvo mercador de vinhos, com armazéns estabelecidos em Gogim, Folgosa e Vila Seca, com um mínimo de 8 tonéis em cada um. A maioria destes vinhos era exportada para os países nórdicos, recebendo em troca barras de ferro e produtos manufaturados como fossem lanças e espingardas.

Em paralelo corria o comércio de vinagres e aguardentes. E aqui permitimo-nos falar de uma unidade industrial dotada com 2 alambiques grandes, valendo mais de um conto e duzentos mil réis, sita no Vale da Cabra, termo de Alijó. O citado António Dias Fernandes tinha a terça parte desta destilaria e dali exportava lotes de 40 pipas de aguardente para a Inglaterra, Lisboa ou Brasil.

Desçamos ao Baixo Douro, a Mesão Frio, aos anos de 1543, quando na cidade do Porto havia um tribunal da inquisição, presidido pelo bispo D. Baltasar Limpo que em Mesão Frio fez um dos primeiros e mais cruéis arrasos. Ali nasceu Branca Cardosa (15) que depois foi para o Porto, casar com Afonso Baeça, torcedor de seda. Era já viúva, quando foi presa pela inquisição, em 1569. Morava na Rua de Belmonte e, embora viúva, apresentava-se como uma dinâmica empresária que “tinha torno de seda e nisso se ocupava e ganhava a vida e dava que fazer a 50 casas do Porto”.

Desta família Cardoso-Baeça descende Miguel Cardoso (16) que foi, no Rio de Janeiro, o Administrador da Companhia Geral do Comércio do Brasil. E este Miguel Cardoso foi o bisavô materno de António José da Silva, o Judeu.

Terminamos com Jorge Luís Borges orgulhosos se em nossas veias correr uma gota de sangue judeu e muito honrados pela herança que recebemos dos nossos antepassados Sefarditas.

Notas:

1-Foi ali dito que esta igreja se construiu com o dinheiro dos judeus. Ignoramos onde foi colhida uma tal informação. Por nós, sabemos que “o recebedor do dinheiro da Misericórdia que se dava de esmola quando se fez a casa” foi efetivamente o hebreu Vasco Pires (pº 5118-L) e que um dos primeiros provedores terá sido o advogado hebreu André Nunes (pº 12301-L).

2-inq. Lisboa, pº 8232.

3-Inq. Coimbra, pº 8301.

4-IDEM, pº 7 106.

5-IDEM, pº 5496.

6-Foi o caso de Domingos Oliveira (pº 2865-C) e Roque Rodrigues (pº 7626-C).

7-Inq. Évora, pº 9527.

8-Inq. Lisboa, pº 883.

9-UCHMANY, Eva Alexandra – La vida entre el judaísmo y el cristianismo en la Nueva España 1580 – 1606, ed. Archivo General de la Nación, México, 1992.

10-Inq. Lisboa, pº 7815.

11-IDEM, pº 1437.

12-IDEM, pº 8410.

13-Inq. Coimbra pº 9619.

14-IDEM, pº 6907; pº 1901, de Branca Henriques: sabia bem ler e escrever.

15-IDEM, pº 241.

16-Inq. Lisboa, pº 17999.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Pedro Henriques da Mesquita (Moncorvo, 1589 - Coimbra, 1638 )

Um dos filhos de Pero Henriques, o Cavaleiro, chamou-se Francisco Vaz, o Amarelo, de alcunha e viveu em Torre de Moncorvo, casado com Maria Vaz, que lhe deu 5 filhos e 3 filhas. Por 1618, quando em Moncorvo começou uma nova vaga de prisões, Maria Vaz era já falecida e Francisco, vendo prender o irmão Domingos, abalou com os filhos solteiros para Medina del Campo, Castela. Dali passaram a Madrid, onde permaneceram 2/3 anos, acabando por fixar residência em Pastrana, onde viviam já uns parentes de Maria Vaz.

Dos filhos de Francisco, fixemos o nome de dois que, passaremos a designar como os irmãos Munhóz. Um deles era o nosso biografado, Pedro da Mesquita, que tinha uns 28 anos quando saiu de Moncorvo. Seria ainda solteiro quando rumou a Pastrana, vindo a casar mais tarde, com Mécia de Penha, natural de Vila Franca de Lampaças.

O outro, Diogo da Mesquita Munhóz, era 5 anos mais novo e casou com Genebra Henriques, da família Eminente, de Vila Flor, terra onde fixaram residência.

Pedro e Diogo eram mercadores e trabalhavam em conjunto, levando e trazendo linhos e tecidos, entre Portugal e Espanha. Possivelmente a sua rede de negócios estender-se-ia a outros familiares, nomeadamente aos irmãos e cunhados.

Na vaga de prisões de que atrás se falou foram levados vários tios dos Munhóz, que os denunciaram como judaizantes, pelo que lhe foram abertos os respetivos processos na inquisição de Coimbra que, em 16.5.1636, emitiu um decreto de prisão, escrevendo, nomeadamente:

- … Prisão de Pero Henriques e Diogo Henriques, ambos irmãos, naturais de Torre de Moncorvo (…) de onde se ausentaram mudando os nomes e de presente se chamam Diogo da Mesquita Munhóz e Pedro da Mesquita Munhóz… (1)

Obviamente que o decreto de prisão foi enviado aos comissários da inquisição existentes em Trás-os-Montes. Especialmente atento e vigilante ficaria o comissário Francisco Luís, arcediago de Mirandela no cabido da sé de Miranda do Douro.

Quase um ano depois, em 16.4.1637, “com muita diligência e com alguns espias”, o arcediago prendeu os irmãos Munhóz, no decurso de uma das suas viagens de negócios entre Pastrana e Trás-os-Montes. Pedro foi preso na alfândega da cidade de Miranda quando estava despachando 7 cargas de linhos e lenços que levava para Castela. (2) Diogo foi preso em Rossas, junto a Bragança, onde iria acertar algum negócio. (3)

Juntamente com as mercadorias e o dinheiro que traziam, foi apreendido a Diogo Munhóz um papel que trazia dentro de “uma caixa de folha de lata, com um cordão de seda encarnada cosida e lacrada em um pano de estopa”. Era uma certidão, assinada pelo cirurgião-mor do hospital real de Madrid, Andrés de Tamajo, dizendo que, por causa de uma doença venérea, tinha sido necessário cortar-lhe o prepúcio.

Presos os dois mercadores, sequestrados os bens e garantidos os 20 mil réis estipulados para as despesas de alimentação (4) e transporte de cada um deles para Coimbra, tratou o comissário de fazer um relato minucioso da ação, tudo enviando para Coimbra. Manuel Escobar foi o homem escolhido para dirigir a leva dos prisioneiros que foram entregues ao alcaide dos cárceres em 29.4.1637.

Sobre o processo de Diogo Munhóz, diremos que a certidão assinada em 1620 pelo Dr. Tamajo lhe foi de vital importância, já que os três médicos de Coimbra que o observaram, todos concluíram que o corte do prepúcio não fora motivado por qualquer doença, mas sim da circuncisão que lhe terão feito. A certidão, possivelmente falsificada, seria um mero disfarce. O caso era de extrema gravidade. Ele, porém, continuava a defender-se com a certidão e não houve outro remédio senão contactar a inquisição de Toledo para averiguar da veracidade da certidão. E sendo interrogado o dito cirurgião pelos inquisidores espanhóis, confessou lembrar-se do caso e de a assinar. (5)

De resto, processo correu normal, já que Diogo Henriques da Mesquita, aliás, Diogo da Mesquita Munhóz, logo confessou suas culpas e pediu misericórdia. Acabou condenado em cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 30.10.1638.

Mais complicado foi o processo de Pedro Henriques da Mesquita, que foi queimado no mesmo auto da fé. A sentença é muito clara e elucidativa do curso do processo e da sua vivência religiosa dentro dos cárceres:

- Por serem suas confissões muito estreitas, mostrando que confessaria mais alguma coisa se nesta mesa se contentassem com isso (…) nem confessar as guaias (6) que fez no cárcere (…) nem confessar que deixava de comer carne de porco no cárcere (…) e estar o réu tão entranhado na lei de Moisés que por sua guarda fez nestes cárceres muitos jejuns judaicos, como dizem os vigias e o réu confessou declarando também que se não podia ver livre da dita crença (…) e o réu pretendia embuçar com as contradições e repugnâncias de sua crença em que, mesmo ensinado e advertido com grande miudeza, respondia como pessoa de pouco juízo e capacidade, sendo de bom entendimento e muito acautelado no que mostrava não querer responder a propósito…

Cristão ou judeu? Bem ou mal julgado? Só Deus o saberá. Por nós temos a certeza de que Deus aceitará que rezemos a seguinte oração que Pedro da Mesquita Munhóz costumava rezar:

Perdóname Señor que te he ofendido,

perdona al miserable que te llama,

perdóname Señor que me he perdido.

No me condenes Señor a la eterna llama,

antes vuelve tus ojos a mirarme.

Sufre el que por amarte se desama,

valga pera contigo confessarme,

válgame ante Ti llorara mi ofensa

y pliegote un poco de escucharme,

que se tu graça disto me despensa

e me ayudas Señor, en lo que digo

servirá el escucharme de defensa.

Pecador soy, Señor, tu eres testigo,

que a tus ojos divinos no hay negarlo,

pues desde mininés andas conmigo,

que aunque a Ti el dissimularlo

era tiempo perdido. E no por eso lache

de amar mi mal o ejecutarlo,

mas quien te podrá contar  aquel processo

y aquel larga historia de mis males,

que el corazón me ahoga com su peso.

Verguenza he de pensar en los mortalhes

pecados, que en tus ojos cometía,

com que lachaba atrás los animales.

Quien duda pues que quando te offendía,

tu grande misericordia me miraba.

 

Notas:

1-ANTT, inq. Coimbra, pº 7067, de Diogo da Mesquita Munhóz; pº 5770, de Pedro Henriques da Mesquita.

2-Pº 7067 - Relatório feito pelo notário do santo ofício em Miranda do Douro, Francisco de Chaves: - Em companhia deste preso ia seu irmão Manuel da Mesquita Henriques, solteiro, que levava sete cargas de lenço para Castela e por me parecer que nelas ia fazenda do preso, as sequestrei…

3-IDEM : - Por me constar que o dito Diogo da Mesquita Munhóz partira do lugar de Duas Igrejas, em companhia de seu irmão Manuel de Mesquita Henriques e Francisco Vaz Faro e de outro mercador que não sei o nome (Pedro Munhóz?), todos de Vila Flor e que antes de eu tornar a esta cidade, o dito Diogo da Mesquita se apartara dos mais. E depois de eu o ter buscado, os vi na alfândega onde os companheiros estavam despachando as mercadorias que levavam, como em outras partes, e por o não achar, nem notícia dele, de mandado do senhor comissário me pus a cavalo para me ir em seu alcance pelo caminho que vai para Castela, e por me dizer o comissário que levasse gente comigo, chamei Manuel de Escobar, cidadão desta cidade e meirinho nela, e ambos fomos (…) e no lugar de Rossas o prendi e trouxe a esta cidade…

4-Do inventário dos bens que trazia o Diogo, consta “um macho que ao tempo de sua prisão se vendeu na praça de Miranda por 12500 réis e uma escopeta por 1500 réis”. Dos restantes bens foi logo passada ordem pelo arcediago para o juiz de fora de Vila Flor inventariar. Não sabemos se alguma das 13 cargas que o grupo estava despachando na alfândega era de Diogo, uma vez que 7 delas seriam de seu irmão.

5-A operação não foi feita pelo Dr. Tamajo mas pelo médico português, cristão-novo, então residente em Madrid e que, por 1630, deixou se foi para a Flandres, Manuel Nunes de Leão, apresentado como “cirujano e romancista”.

6-Guaias são orações em forma de lamentos, com inclinações simultâneas do corpo e da cabeça, com as mãos levantadas e abertas. Há quem veja nesta forma de rezar a origem do Fado, a original canção portuguesa.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Diogo Henriques (n. Torre de Moncorvo, c. 1590)

Pero Henriques Cavaleiro é figura mítica da comunidade cristã-nova de Torre de Moncorvo do século de 500. O sobrenome é honorífico e ganhou-o nas campanhas militares pelo Norte de África. Pertencia, pois, à burguesia cristã-nova enobrecida. Foi casado com Leonor Henriques, de Vila Flor e ali assentaram morada. Tiveram pelo menos 5 filhos e 2 filhas, que chegaram à maioridade. Ficando viúvo, casou segunda vez, com uma mulher de Vila Real e dela não houve descendência.

De sua mulher, Leonor Henriques, temos mais informações, colhidas nos processos de seus irmãos e sua mãe, Branca da Mesquita, que todos foram presos pela inquisição de Coimbra, no seguimento da visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa, em 1583. (1) E conhecemos também os ascendentes de Branca, desde a geração dos batizados em pé.

Também alguns dos filhos do Cavaleiro estagiaram nas celas do tribunal do santo ofício. Foi o caso de Domingos Henriques, preso em 1618, (2) que denunciou familiares e amigos e confessou ter sido doutrinado na lei de Moisés por seu pai e por seu tio materno, o letrado Domingos Marcos.

De seguida, também a filha, Violante Henriques, (3) foi prisioneira da inquisição. Era casada com António Vaz que cedo se abalou para as Américas, concretamente para o Perú, conforme o testemunho de Diogo.

Um terceiro filho do Cavaleiro, alvo da perseguição inquisitorial chamou-se Diogo Henriques, o nosso biografado. Nasceu em Torre de Moncorvo, por 1590. Foi casar em Vila Real com uma Branca Dias. (4) O casal fixou morada em Vila Flor, onde viviam, com seus 4 filhos: Pedro, Violante, Francisco e Leonor, o mais velho nascido em 1615. Esta Leonor viria a casar com Manuel do Vale e estes seriam os bisavôs maternos de Jacob Rodrigues Pereira, o inventor do alfabeto para os surdos-mudos. (5)

Foi no dia 9 de fevereiro de 1620 que Diogo Henriques foi preso pelo meirinho da inquisição de Coimbra, António Moreira, juntamente com sua irmã Violante, sua cunhada Águeda Correia (6) e o seu parente Mateus Marcos, que morreu na cadeia antes de completar um mês de estadia no cárcere, contando apenas 19 anos de idade. (7) A lista de pessoas que António Moreira trazia para prender em Torre de Moncorvo incluía ainda mais 4 pessoas. (8)

Diogo terá sido denunciado por seu irmão Domingos morador em Torre de Moncorvo, preso em 1618, que deu o seguinte testemunho:

- Haverá 12 anos, em Vila Flor, em casa de seu pai, Pero Henriques, Cavaleiro, se achou com seu irmão Diogo Henriques, solteiro, e agora casado em Vila Real, morador em Vila Flor, e estando ambos sós com o dito seu pai, que então era viúvo e morava em Vila Flor, e foi depois do último perdão geral… doutrinou-os na lei de Moisés. (9)

Entregue ao alcaide da cadeia do tribunal de Coimbra no dia 24 do dito mês de fevereiro, logo naquela ocasião, “antes de ir para o seu aposento”, Diogo manifestou o desejo de confessar os seus erros e pedir misericórdia e perdão. Semelhante disposição manifestariam os que com ele foram presos e a “estratégia” terá sido combinada pelo caminho, pois que todos eles foram sentenciados e mandados embora no mês seguinte. Para além disso, veja-se a seguinte nota, escrita logo ao início do processo de Diogo Henriques:

- Não se lançaram no processo as mudanças (de cárcere) deste réu, por ser muita gente (presa) e os notários muito ocupados.

Sim, os notários e os inquisidores de Coimbra estavam bem ocupados. Naqueles anos, desde 1618, foram “levas” sucessivas de grandes mercadores da cidade do Porto e das terras durienses, nomeadamente de Torre de Moncorvo e Vila Flor. Aliás, o próprio despacho final mandado lançar no processo de Diogo, em 22.3.1620, é bem elucidativo:

- Foram vistos nesta mesa do santo ofício estes autos e culpas e confissões de Diogo, cristão-novo, neles conteúdo, e pareceu que se devia despachar para sair neste auto, por haver confessado e satisfeito aos autos, por onde o não podem deter, em razão da justiça, como também porque muita razões de conveniência pedem o mesmo, visto ser o réu de terra tão despovoada, e estarem os cárceres tão cheios, e a conjugação do tempo mostrar que convém dar expedição aos confitentes. E porém que destas razões se fizesse aqui menção para constar das que houve para se correr com pressa em este processo e não ficar exemplo para outros casos que em tudo não seriam a este semelhantes.

Contava 30 anos de idade quando regressou a Vila Flor. Não trazia já vestido o abominado sambenito. E pouco mais sabemos sobre Diogo Henriques, que morreu antes de 1637, segundo informação colhida no processo de seu sobrinho Pedro Henriques da Mesquita. Com este e muitos outros descendentes do Cavaleiro a saga da família nas masmorras da inquisição haveria de continuar.

Notas:

1-ANTT, inq. Coimbra, pº 9316, de Branca da Mesquita; pº 2376, de Brites Marcos; pº 12457, de Gonçalo Marcos.

2-IDEM, pº 2466, de Domingos Henriques. Este foi casado com Inês Henriques, cristã-nova de Chacim. Depois de penitenciado, o casal deixou a Torre de Moncorvo e foi viver para Vila Nova de Foz Côa.

3-IDEM, pº 3209, de Violante Henriques. Depois de libertada, Violante abalou para Castela, onde vivia por 1637, contando uns 60 anos, conforme declaração feita por seu sobrinho Diogo da Mesquita Munhoz.

4-Branca Dias era filha de Francisco do Vale e Violante Dias. Também esta foi processada pela inquisição de Coimbra, em 1622 – pº 6074. Branca Dias estará também ligada à família de Manuel Fernandes Vila Real.

5-ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira, Cidadão do mundo, Sefardita e Trasmontano, Lema d´Origem, Porto, 20014.

6-ANTT, inq. Coimbra, pº 5693, de Águeda Correia, natural de Chacim. Em 1620, Águeda contava 50 anos e era já viúva de seu marido, António Henriques, mercador de panos. Morava na Rua da Fonte do Concelho, em uma casa de sobrado. Tinha uma vinha, sita por cima da Fonte do Concelho e que valia uns 70 mil réis. Depois de penitenciada, abandonou Moncorvo e foi-se para Castela, fixando morada em Medina d´el Campo.

7-IDEM, pº 3270, de Mateus Marcos.

8-IDEM, pº 5693, de Águeda Correia: - Lista das pessoas da nação que se hão-de prender em Torre de Moncorvo: Vasco Fernandes, mercador, casado com Filipa Gomes, ausentes há um ano; Violante Henriques; Inês Henriques, fugiu poucos dias depois de prenderem seu marido, Domingos Henriques; Francisco Vaz, mercador, casado com Maria Vaz, já defunto e ele é irmão de Domingos Henriques; Águeda Correia, viúva de António Henriques, o qual é irmão de Domingos Henriques; Paulo Henriques, mercador, casado com Violante Rodrigues, irmão de Domingos Henriques, fugiram para fora do reino; Isabel Henriques, irmã de Domingos Henriques, viúva de Luís Marcos, fugida há muitos anos; Mateus Marcos.

9-IDEM, pº 2456, de Diogo Henriques.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Diogo Henriques, aliás, Abraham Bueno (n. Medina de Rio Seco c. 1620)

Um dos filhos de António Henriques, o Fastio, chamou-se Pedro Henriques, o qual casou com Ana Vaz, irmã de Pero Henriques, o Cavaleiro. O casal morava na Rua do Concelho, em Torre de Moncorvo, aquando da visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa, em 1583. Foram denunciados como judaizantes, por uma Ana Pires, nos seguintes termos:

- Disse mais que ela foi forneira haverá dois anos, em um forno da Fonte do Concelho e tinha por vizinhos (…) Pedro Henriques Fastio, mercador, casado com Ana Vaz (…) e as mulheres destes eram suas freguesas e coziam no seu forno, e nunca cozeram ao sábado, e nunca as viu fiar nem fazer outro serviço, levantavam-se muito tarde e abriam as suas portas e janelas tarde, o que ela via por estar atenta a isso, e que nos outros dias, assim aos domingos como pelos mais dias da semana, se levantavam sempre muito cedo, o que faziam elas e seus maridos e assim os via nos ditos sábados trazerem camisas lavadas e as mulheres toucados limpos e visitavam-se umas às outras. (1)

Talvez por não haver mais denúncias, Pedro e Ana não foram incomodados pela inquisição, naquela altura. Por 1620, na sequência da prisão de Manuel Rodrigues Isidro, certamente receando ser também presos, meteram-se em fuga para Espanha, levando consigo os filhos, que seriam dois: o Manuel e uma rapariga cujo nome ignoramos.

Ana levava no ventre um terceiro filho e, chegando a Medina de Rio Seco, não aguentou mais, dando à luz uma criança que ali batizaram com o nome de Diogo Henriques. Em Medina terão permanecido por 10 meses, posto o que se meteram a caminho de França, indo assentar casa em La Bastide de Clarence, região da Gasconha. Ali chegariam nessa mesma altura outros membros do clã familiar dos Fastio, nomeadamente, o tio paterno de Diogo, António Henriques e sua mulher Filipa da Mesquita, também sua tia, pelo lado materno. Assim como a filha destes, Filipa da Mesquita e o marido, Francisco Álvares Frade, natural de Mogadouro. (2)

Nesta parte de França haveria uma certa liberdade religiosa e os hebreus professavam mais ou menos publicamente a lei de Moisés, se bem que não lhes fosse permitido ter sinagogas, nem manifestações públicas de sua religião. Diogo seria logo mandado circuncidar, recebendo então o nome judeu de Abraham Bueno. E, se bem que frequentasse a catequese com as crianças católicas, aprenderia, em paralelo, a lei de Moisés, uma educação algo esmerada, com um mestre “judeu”. E chegado aos 12-13 anos, começaria a acompanhar o pai e os parentes na vida de mercador ambulante. Nas suas deambulações terá conhecido a cidade de Tartas, onde morava Cristóvão Luís, com sua família, fugido de Bragança, em cuja casa ficaria hospedado. A relação com um dos filhos de Cristóvão (Isaac Tartas) (3) haveria de prolongar-se por Amesterdão e Recife.

Aos 15 anos, Bueno andava comprando e vendendo pelos reinos de Castela, Aragão e Navarra, detendo-se em Madrid por espaço de 7 meses.

Por 1637, faleceu o pai, Pedro Henriques e Ana Vaz e os filhos deixaram La Bastide e foram-se a viver em Amesterdão, a grande metrópole judaica da época. Ali, sim podiam abertamente professar a lei de Moisés e apresentar-se com os nomes judeus que, entretanto tomaram, dos quais conhecemos: Rachel Baruch (Violante Henriques), Ester (Catarina) e Jacob Bueno. Escusado será dizer que, em Amesterdão encontraram os Bueno alguns parentes e muitos conhecidos e amigos de Vila Flor e Torre de Moncorvo.

Naquele tempo os Holandeses tinham uma grande marinha mercante e adotaram uma política de criação de colónias e construção de um império. E, contrariamente aos espanhóis e portugueses, onde o comércio marítimo e a defesa das colónias dependia do Estado, na Holanda criaram-se duas grandes empresas capitalistas que receberam do Estado o monopólio do comércio e responsabilidades de administração e defesa das colónias: a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais.

Nesta política de expansão, os holandeses, que já dominavam algumas regiões do mar das Caraíbas, tomaram o Recife, no coração da região açucareira do Brasil e implantaram ali a capital do chamado Brasil Holandês, que se estendeu pelo Rio de S. Francisco e capitania de Pernambuco. E ao Brasil Holandês acorreram muitos portugueses da nação hebreia, com financiamento e apoio comercial da Companhia das Índias Ocidentais.

Entre os muitos dos nossos conhecidos de Vila Flor, Torre de Moncorvo e Trás-os-Montes que então deixaram Amesterdão e rumaram ao Recife e Pernambuco, contaram-se Ana Vaz, os seus 4 filhos solteiros, as duas filhas e respetivos maridos. (4) Dos filhos de Ana Vaz, apenas um terá ficado pela Europa, na região da Gasconha, em França – Jacob Bueno. (5)

A partir de 1644, quando Maurício de Nassau entrou em choque com os diretores da Companhia das Índias Ocidentais e deixou o governo do Recife, os Portugueses iniciaram a recuperação da colónia. E entre os prisioneiros que os Portugueses fizeram, mereceu tratamento especial um grupo de 10 “judeus”, entre eles o já citado Isaac de Tartas, aliás, José de Lis e o nosso biografado, pelos outros identificado como “o Judeu francês”.

Depois de preso no Rio de S. Francisco, em Maio de 1646, Abraham foi enviado para a Baía e ali interrogado pelo bispo D. Pedro da Silva. Dali foi embarcado para a inquisição de Lisboa, dando entrada nos cárceres da penitência. A qui, tratava-se de averiguar se Abraham era mesmo judeu e nunca fora batizado. Nesse caso, não seria processado pela inquisição.

Foi este o caminho que Abraão tentou seguir, na sua defesa. Disse que nunca foi batizado e logo em pequeno foi circuncidado, pois no lugar onde os pais moravam havia liberdade de crença, por um tributo que pagavam ao rei de França. Sobre isto foram ouvidas várias testemunhas, entre elas o embaixador de França em Lisboa, que todas afirmaram que só na cidade de Metz isso era possível. De resto, em toda a França era obrigatório o batismo de todas as crianças.

Acabou o prisioneiro por contar toda a verdade sobre a sua vida, confessar que foi batizado em Espanha, onde lhe puseram o nome de Diogo Henriques e que foi depois circuncidado, secretamente, tornando-se judeu, com o nome de Abraham Bueno.

Logicamente, foi então mandado meter nos cárceres secretos, (5) com sequestro de bens. O processo correu, com o promotor a formular a acusação de herege, apóstata, diminuto e fingido e a pedir que fosse relaxado à justiça secular.

Entre os companheiros de cela, teve o padre António Nabo de Mendonça, cuja missão seria ensinar-lhe a doutrina cristã, mas que, na realidade, servia de bufo, em busca de mais culpas contra ele. Foi contar aos inquisidores que Abraham era um fingido, que sabia perfeitamente a doutrina cristã e que até sabia ajudar à missa. Acrescentou que sabia latim “mostrava ter princípios de ciência e filosofia e sabia muitas escrituras do testamento velho e novo”. Mais disse que, falando da teologia sagrada, Bueno lhe dissera que a teologia de Portugal “era uma pequena de trampa e uma panela sem água e adubo e somente as nações que sabiam o hebraico tinham verdadeiro sentido da sagrada escritura”

O padre Mendonça fora também companheiro de cela de Isaac Tartas. Testemunhou que ambos argumentavam e se defendiam de maneira muito semelhante e usando argumentos parecidos. Por isso, em uma das audiências, perante os inquisidores, aventou mesmo a hipótese de Bueno e Tartas serem irmãos e que o Bueno já fora prisioneiro da inquisição de Madrid e contara ao Tartas como era a vida dentro dos cárceres. Defendeu-se o Diogo, dizendo que o padre se movia por ódio contra ele e contra o Tartas. E explicou aos senhores inquisidores que o seu arrependimento era tão verdadeiro e a vontade de ser bom cristão muito grande, que se empenhou com toda a força a aprender a doutrina cristã com os companheiros de cela, pelo que rapidamente a aprendeu.

Entrou também a denunciar familiares, amigos e conhecidos que com ele judaizaram em La Bastide de Clarence, em Amesterdão e Pernambuco. Acabou o processo com Diogo Henriques saindo condenado em cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 15 de dezembro de 1647. Tinha apenas 27 anos quando ganhou a liberdade. Nós, porém, não temos informação segura sobre a sua vida a partir daí.

Notas:

1-ANTT, inq. Coimbra, livro 662, f. 65v.

2-António Henriques, a mulher, a filha e o genro foram depois para a Itália.

3-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontano… jornal Nordeste nº 1023, de 21 de junho de 2016.

4-A irmã Violante Henriques, aliás, Rachel Baruch, casou com Isaac Baruch. Este fora de pequeno para Itália. Catarina Henriques, a outra irmã, era casada com Jacob Levi, originário de Vila Flor, filho de Manuel Francisco Resio, conhecidos também de Amesterdão.

5-ANTT, inq. Lisboa, pº 1770, de Diogo Henriques.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - André Nunes (n. Torre de Moncorvo c. 1518)

Procuramos, com este texto, celebrar os 500 anos do nascimento do primeiro advogado de Torre de Moncorvo de que temos notícia – Dr. André Nunes, que concluiu o curso de direito civil na universidade de Salamanca em 8.5.1539. (1) Procuramos fazê-lo ressurgir da tumba do esquecimento e trazê-lo para a galeria dos mais ilustres Moncorvenses.   

Por 40 anos, o Dr. André Nunes foi homem liderante da comunidade cristã-nova de Moncorvo. Cerca de 1550, ao início da sua carreira, encontramo-lo a disputar com o poderoso e cristão-velho Luís de Azevedo, as eleições para o cargo de provedor da misericórdia. (2) Mais tarde, em 1580, seria ele a congregar gentes da Torre de Moncorvo no apoio ao Prior do Crato, como rei de Portugal. Por isso foi mandado prender pelo corregedor da comarca, Diogo Dias Magro, para acalmar os levantamentos. (3) De resto ele era o advogado da Casa Sampaio e mantinha estreitas relações com as principais famílias da comarca. A sua morada era no castelo e isso é bem significativo da sua posição na sociedade Moncorvense. (4)

Nascido por 1618 em Torre de Moncorvo, foram seus pais um António Nunes, de Mogadouro e uma Branca Lopes, de Moncorvo. Trata-se de duas famílias, com largo historial na inquisição.

André Nunes casou em Vila Flor, com Leonor da Mesquita, que lhe deu 6 filhas. A mais velha chamou-se Isabel da Mesquita. Casou com seu primo direito, o médico Gaspar Nunes. (5) O casamento realizou-se por 1574, altura em que André Nunes tinha morada estabelecida no Felgar. Como eram primos e necessitavam de dispensa para casar, foi o próprio Gaspar buscá-la a Roma. Logo depois do casamento, Isabel e Gaspar embarcaram para o Perú.

Branca Nunes, a segunda filha, casou com outro médico, nascido em Bragança, morador em Vila Flor, Luís Álvares da Silva. Viveram algum tempo em Vila Flor, passando a Viana do Castelo, pelo ano de 1580.

Com o Dr. Francisco Rodrigues da Silva, advogado, irmão do anterior, casou Ângela Nunes, a terceira filha do casal. Ficaram morando em Torre de Moncorvo, trabalhando ele com o sogro. (6) As 3 filhas mais novas (Susana, Ana e Inês) mantinham-se solteiras.

Em Vila Flor tinha o Dr. André Nunes uma tia materna chamada Isabel Lopes, (7) casada com Vasco Fernandes, que era tabelião. De entre a numerosa prole, o casal teve uma filha chamada Violante Álvares. E Vasco Fernandes empenhou-se em arranjar para ela um noivo cristão-velho da nobreza da terra: Gaspar da Rosa, cavaleiro-fidalgo. Em dote de casamento, Vasco Fernandes fez-lhe escritura da própria casa, que tomaria à sua morte, e da propriedade do ofício de tabelião, que logo passou a exercer. O casamento realizou-se por 1571 e pouco depois faleceu Vasco Fernandes.

O maior opositor a este casamento seria o primo de Violante, o advogado André Nunes, que, naturalmente, ganharia em Gaspar Rosa um inimigo de estimação. E mais ainda, em um estranho personagem que entretanto chegou à “terra Flor” de D. Dinis: o inquisidor de Évora Jerónimo de Sousa, nomeado abade da matriz de S. Bartolomeu. Imagine-se: Gaspar da Rosa deixou a própria casa, para a oferecer de morada ao novo abade-inquisidor! (8)

No dia 30.9.1577, em casa do inquisidor, com o padre João Álvares, a servir de escrivão, foi formalmente registado o testemunho de Gaspar da Rosa contando que o Dr. André Nunes se opôs ao casamento “da menina” com um cristão-velho e como ele era considerado por saber muitas coisas da lei de Moisés e o diziam “bem-aventurado”.

Um mês depois, Gaspar da Rosa e Violante Álvares entravam na inquisição de Coimbra, onde foram chamados e Violante contou para os inquisidores o que se tinha passado, dizendo, nomeadamente:

- Haverá 7 anos, tratando-se do seu casamento com Gaspar da Rosa, tabelião, foi ter a sua casa o licenciado André Nunes, sobrinho da mãe dela testemunha, o qual disse à dita sua mãe e irmã Maria Álvares e a seu marido Gaspar Vaz, estando todos juntos em uma câmara “que pena era casar ela testemunha com um cristão-velho que não defendia a sua lei e a sua regra” (…) e a dita sua mãe e irmã o gabavam que sabia muito e era bem-aventurado. (9)

Obviamente que na inquisição de Coimbra logo se abriu um processo contra o Dr. André Nunes, que ficou aguardando outras culpas.

Passaram 5 anos e o abade foi mandado assumir o papel de inquisidor, com poder delegado pelo tribunal de Coimbra para “visitar” terras do Minho e Trás-os-Montes, oficialmente investigando crimes contra a fé cristã. E em Março de 1583, depois de Guimarães, Vila Real e outras terras a “visitação” chegou a Moncorvo onde, nos dias 20-24 daquele mês, na “casa da inquisição”, (10) foram ouvidas as pessoas que se apresentaram a denunciar.

Maria Martins, solteira, “que se agasalha por onde pode” foi uma das denunciantes, declarando o seguinte:

-Haverá 2 anos que veio para esta vila e morou um ano em casa de André Nunes (…) e em todo esse tempo, viu ela denunciante que nem eles nem as filhas, que então eram crianças, não comiam carne de porco, nem toucinho, nem a cozia em panela que se havia de fazer cozinha para eles, mas antes a mandavam cozer em outra panela estremada para os criados e gente que traziam a trabalhar (…) por algumas vezes lhe dava sua ama coelhos para os moços, mas que não é recordada vê-los comer aos ditos seus amos… (11)

Outro testemunho implicando como judaizantes o Dr. Nunes e a família foi prestado por outra criada que serviu em sua casa apenas um mês. Disse que aos sábados eles se vestiam com roupas lavadas e não trabalhavam e que também nunca foram cozer pão ao forno em dia de sábado.

No seguimento destas e outras denúncias feitas no decurso da visitação de Jerónimo de Sousa, foram logo instaurados uns 38 processos e presas umas 17 pessoas de Moncorvo, acusadas de judaísmo. Entre elas contou-se André Nunes, 2 irmãos, 5 filhas e 2 genros. Escaparam a filha mais velha e o genro, que estavam no Perú, bem como a sua cunhada Inês Fernandes “que não se achou”. A mulher, já falecida, foi também processada, acabando os seus ossos por ser desenterrados e queimados na fogueira de um auto da fé, 4 anos mais tarde. (12)

Encarcerado em Coimbra, e como geralmente acontecia, o Dr. André Nunes viu acrescentar as culpas, especialmente pelas suas filhas que contaram como em casa faziam jejuns judaicos e guardavam os sábados começando na sexta-feira à tarde com a limpeza e o acender das candeias com torcidas novas e azeite limpo. A mais grave, porém, das acusações relacionava-se com a posse de uma bíblia. Veja-se, por exemplo, o testemunho de sua filha Ângela Nunes:

- Disse que o seu pai tinha uma bíblia que era um livro grande encadernado de tábuas, e não tinha conto por cima, pelo qual lia algumas vezes algumas histórias da lei velha a ela confitente e a sua irmã Branca Nunes e que às outras mais novas não atentou nisso. E que este livro tinha seu pai em casa escondido ora por detrás dos livros, ora entre a roupa e outras vezes o levava consigo debaixo da capa a casa de Inês Fernandes, viúva de Torre de Moncorvo, sua cunhada, mulher que foi de Francisco Nunes, irmão de seu pai, por as suas casas serem pequenas e não terem onde esconder.

Em sua defesa e de toda a família, foi elaborado por André Nunes e pelo genro Francisco Silva um documento com o título: “Petição dos cristãos-novos de Torre de Moncorvo”. (13) Trata-se de uma exposição arrasadora dos métodos usados na visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa e um fantástico quadro das lutas sociais e políticas envolvendo a comunidade hebreia e os homens da nobreza e da governança da Torre de Moncorvo naquela época. Não será este o espaço para fazer a análise do documento e terminamos dizendo que, depois de penitenciado e libertado o Dr. André Nunes, nenhuma notícia mais temos sobre ele nem sobre nenhum dos seus familiares diretos. Dir-se-á que ele e a sua a família desapareceram definitivamente.

 

Notas:

1-A.U.S. Cursos, lv. 555, f. 23v.

2-ANTT, inq. Lisboa, pº 12301, de Luís Vaz.

3-IDEM, pº 8450, de Francisco Rodrigues da Silva.

4-ANTT, inq. Coimbra, pº 276, de Branca Nunes.

5-Gaspar Nunes era filho de uma irmã de André Nunes. Também ele se formou na universidade de Salamanca. Antes de 1568, foi prisioneiro da inquisição de Valhadolid, segundo informação de seu primo Duarte Nunes. – ANTT, inq. Coimbra, pº 68.

6-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… in: jornal Nordeste nº 1121, de 8.5.2018.

7-IDEM, jornal Nordeste nº 1075, de 20.6.2017.

8-ANDRADE e GUIMARÃES, Jerónimo de Sousa, inquisidor de Évora e abade em Vila Flor, in: jornal Terra Quente de 1.6.2009 e seguintes.

9-ANTT, inq. Coimbra, pº 266, de André Nunes.

10-É conhecida como “casa da inquisição” por nela se fazerem geralmente as “audiências” relacionadas com diligências inquisitoriais. Na verdade deveria chamar-se “casa dos Jesuítas” pois tem insculpidas no alçado principal as armas daquela instituição e nelas terá funcionado uma “aula” de português, latim e filosofia. Em tempos do Estado Novo serviu de sede do núcleo local da Legião Portuguesa.

11-ANTT, inq. Coimbra, livro 662, f. 64.

12-IDEM, pº3710, de Leonor da Mesquita.

13-MEA, Elvira Cunha de Azevedo – O procedimento inquisitorial garante da depuração das visitas pastorais de Braga (Século XVI), in: Actas do Congresso Internacional do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, Volume II/2, pg. 67-95.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - António Henriques, o Fastio (f. Torre de Moncorvo c. 1580)

António Henriques, o Fastio, de alcunha, é figura incontornável na história dos cristãos-novos de Torre de Moncorvo. Antes de mais porque a ele se ligava, por laços familiares, uma boa parte da gente da nação hebreia da terra. Depois porque, dos casamentos de sua numerosa prole (11 filhos), se originaram famílias e personagens marcantes, não apenas ao nível local mas também nos territórios da diáspora sefardita.

Traçar a sua biografia é tarefa impossível, pois ao tempo em que ele nasceu não havia sequer registos oficiais de nascimentos, casamentos e óbitos. E todas as informações que sobre ele temos, foram dadas depois do seu falecimento, pouco antes de 1583, sendo que em 1580 ainda era vivo e morava na Rua Nova, (1) de Torre de Moncorvo. Era então casado com Filipa Rodrigues, originária de Trancoso. (2) Esta era a segunda mulher e antes fora casado com uma Fulana da Mesquita, que lhe deu pelo menos 2 filhos: Henrique Fernandes, que morou em Vila Nova de Fozcôa, casado com Filipa do Vale e Fernão Álvares, o Fastio, que casou em Trancoso com Francisca de Nágera. (3) Estes tiveram 8 filhos e na sua descendência encontramos homens tão importantes como o Dr. Fernando Mendes, médico da rainha de Inglaterra.

António Henriques, como o pai, se chamou um filho do segundo matrimónio, com Filipa Rodrigues. Era “baixo de corpo, preto e magro”. (4) Mercador, andava por Castela e foi preso pela inquisição de Toledo. Casou em Torre de Moncorvo com Inês Vaz e, em 1586, era já viúvo. Casou em segundas núpcias com Filipa da Mesquita e, face às prisões que a inquisição efetuava em Moncorvo e Vila Flor, abalou com a família para a Itália, estabelecendo casa na cidade de Pádua.

De sua descendência conhecemos uma filha, chamada Isabel da Mesquita, que casou com Francisco Álvares Frade, natural do Mogadouro. Da vivência de António Henriques em Castela, nasceria a alcunha de Malo, com que passou a ser distinguido.

Pero Henriques, Fastio, se chamou outro filho do casal. Casou com Ana Vaz, irmã de Filipa da Mesquita, sua cunhada, que acabamos de referir. Tiveram 5 filhos e 2 filhas, que se dispersaram por Itália, Holanda, França e 4 deles viveram na cidade do Recife, à época do chamado Brasil Holandês. Um deles, Diogo Henriques, aliás, Abraham, merece especial referência, por ter sido um dos primeiros a usar o sobrenome de “Bueno”, juntamente com o seu primo Filipe de Nágera. (5)

Dos 11 filhos do Fastio, da Rua Nova de Torre de Moncorvo, citemos ainda a filha Brites Henriques, que morou em Vila Flor onde foi casar com o mercador João (Jerónimo) Lopes e que foi presa pela inquisição em 1583. (6)

Para além dos filhos, importa ainda fazer outras ligações familiares do patriarca António Henriques Fastio, morador na Rua Nova, nomeadamente a Francisco da Silva, e seus pais, o Dr. Henrique Dias e a sua mulher, Isabel Henriques, moradores em Torre de Moncorvo, originários de Vila Nova de Fozcôa. (7)

Outra relação de parentesco é com Pero Henriques, que foi preso pela inquisição de Lisboa em 1556. Era filho de Henrique de Miranda e Filipa Dias, sua mulher. Preso pela inquisição de Lisboa em 1556,ao falar de sua família, disse que tinha um irmão chamado António Henriques. Cremos tratar-se do nosso biografado António Henriques Fastio, morador na Rua Nova. Contudo, por falta de documentos não podemos confirmar esta ligação de fraternidade entre eles. Mais uma nota sugestiva: depois que o soltaram, Pero Henriques foi-se “com sua mulher e casa para Florença”, na Itália. (8)

Apresentada a família do Fastio, voltemos ao início, à Torre de Moncorvo onde o inquisidor Jerónimo de Sousa estava de visitação, enviado pelo tribunal de Coimbra. Perante ele, no dia 9 de abril de 1583, (9) apresentou-se Beatriz, uma moça de 24 anos, criada de servir, natural de Sarzedo, terra de Lamego e fez o depoimento seguinte:

- Irá em 3 anos que ela saiu de casa de António Henriques, o fastio, cristão-novo, mercador já falecido, casado que era com Filipa Rodrigues, cristã-nova que agora está viúva, e vive nesta vila na Rua Direita, e esteve com eles um ano e viu no dito tempo que com eles morou, que muitas sextas-feiras à tarde uma Violante Henriques, filha dos ditos seus amos, que então era solteira e estava com seus pais, mas agora é casada (…) varria e limpava as casas e as concertava, o que não fazia por nenhum dos outros dias (…) e que a via aos sábados pela manhã tirar de uma câmara que tinham uma candeia de azeite morna, como se estivera de noite acesa na dita casa, e que aquelas noites de sexta-feira para sábado fechavam a dita casa, costumando estar aberta pelas outras noites, porque era casa de despejos, onde ela denunciante entrava muitas vezes, e por ela ver que na dita semana só fechavam naquela noite, atentou pela candeia que de lá tiravam ao sábado pela manhã. E declarou mais que vira fazer tudo isto e também fazia as camas nas ditas sextas-feiras à tarde e lhe deitava lençóis lavados, o que não fazia em nenhum dos outros dias, e que a dita sua filha vestia aos sábados camisa lavada. Disse mais que em nenhum do dito tempo viu comer na dita casa nenhuma carne de porco a nenhum deles, antes quando lhe mandavam alguma, ela denunciante a comia, porque eles lha davam, e a comia assada e o espeto em que a assava estava apartado, porque nele se não assava outra carne. (10)

 

Notas

1-A Rua Nova faz parte do núcleo medieval da vila e desenvolve-se em paralelo com a Rua Direita. Tomaria aquele nome no tempo do rei D. Manuel, depois da expulsão dos judeus. Corresponderia à antiga judiaria e nela se conserva uma casa que, segundo a tradição, foi a antiga sinagoga dos judeus.

2-Filipa Rodrigues foi presa pela inquisição em 1583. – ANTT, inq. Coimbra, pº 493. E depois dela foram presas duas irmãs suas. - ANTT, inq. Lisboa, pº 7555, de Florença Dias; pº 11945, de Ana Lopes.

3-ANDRADE e GUIMARÃES, Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, ed. Câmara Municipal de Celorico da Beira, 2015. 

4-ANTT, inq. Coimbra, pº 1382, de Francisco da Silva: - Haverá 17 anos (1587), na vila da Torre, se achou com António Henriques, seu primo coirmão, viúvo mercador, que morava na Torre e que agora mora em Madrid, baixo de corpo, preto e magro.

5-Filipe de Nágera foi um dos 8 filhos de António Henriques e Francisca de Nágera. Estudou em Salamanca, formando-se em Medicina.

6-ANTT, inq. Coimbra, pº 4, de Brites Henriques.

7-IDEM, pº 43, de Francisca da Silva, irmã de Isabel Henriques; pº 1382, de Francisco da Silva: - Disse que haverá 17 anos (1586) na vila de Torre de Moncorvo, se encontrou com António Henriques, seu primo co- irmão, mercador, viúvo, que morava na Torre de Moncorvo e agora mora em Madrid…

8-ANTT, inq. Lisboa, pº 6771, de Pero Henriques; Nós Trasmontanos… in: jornal NORDESTE, nº 1069, de 9.5.2017.

9-Note-se que a visitação de Jerónimo de Sousa a Torre de Moncorvo decorreu nos dias 20 e 24 de Março, seguindo-se a visitação a Freixo de Espada à Cinta, Mogadouro e Felgar, termo do concelho de Mós. Algo estranho que ali se fosse apresentar Beatriz que, por acaso, era então criada do escrivão do vigário da Torre de Moncorvo. Teria sido mais uma das testemunhas arregimentadas pelos inimigos dos cristãos-novos, como eles disseram em uma petição dirigida ao inquisidor geral?

10-ANTT, inq. Coimbra, livro 662, fl 100v. Note-se que, depois da morte do marido, Filipa Rodrigues mudou a residência para a Rua Direita. Esta rua do núcleo medieval, atualmente com o nome de Campos Monteiro, ligava a porta norte da muralha medieval ao castelo da vila. O edifício mais importante desta rua é a igreja da misericórdia, construída em meados do século XVI. Nas suas traseiras era a judiaria.