Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Martim Rodrigues (n. Mogadouro, 1605)
Nasceu em Mogadouro pelo ano de 1605, filho de Belchior Garcia e Ana Rodrigues, cristãos-novos. Grande parte dos seus muitos tios, paternos e maternos, viveram e morreram em Madrid, facto muito natural, ainda mais por ser tempo de união dos reinos ibéricos, sob a coroa dos Filipes. O mesmo se diga de 3 de seus irmãos.
Martim Rodrigues era curtidor e negociante de solas, profissão bem rendosa, tratando-se de uma região particularmente adaptada à criação de gado bovino, verdadeiro solar da conhecida raça mirandesa.
Ao início da década de 1630, Martim foi casar a Quintela de Lampaças com Clara Fernandes, de uma família com largo historial na inquisição, nomeadamente o pai e o avô paterno.(1) Em Quintela estabeleceu morada em dezembro de 1637 quando a inquisição promoveu uma autêntica operação de limpeza da gente da “nação infecta” da aldeia, ordenando a prisão de 19 moradores, acusados de participar na celebração de uma “missa judaica”(2) Muitos dos mandatos de prisão não foram cumpridos porque, entretanto, os réus tinham fugido. Logo surgiram informações de que Jorge Fernandes, de Carção, intercetara o correio e viera na frente avisar que fugissem. Foi também preso e processado.(3) E destes acontecimentos nasceram as primeiras culpas contra Martim Rodrigues. Uma delas, assim descrita por Amaro Luís Igreja, cristão-velho, perante o comissário Francisco Luís, arcediago de Mirandela, em 25.10.1637:
— Viu ele testemunha, às 10, 11 horas da noite a Luís da Serra, morador em Quintela, cristão-novo, andar batendo com um pauzinho pelas portas dos cristãos-novos e outro chamado Martim Rodrigues, mas o que batia era Luís da Serra e dizia: - Olá, vinde!...(4)
Era o chamamento para mais um “ajuntamento judaico”. Outra culpa respeitava ao facto de ter sido ele a receber em casa Jorge Henriques e ter-lhe dado ajuda no aviso aos outros para que fugissem. O comissário da inquisição, Paulo Peixoto de Sá, esperava então que Martim fosse preso e escrevia para Coimbra, em 14.3.1638:
— Martim Rodrigues é da nação e ainda está neste lugar e cuido estar ainda por ser curtidor e ter couros em pelames (…) se não fosse isso, já teria ido, visto ter sua fazenda vendida…(5)
Na verdade as acusações feitas contra o nosso homem não seriam suficientes para os inquisidores de Coimbra decretarem a sua prisão. E se ele tinha vendido a sua fazenda em Quintela, não seria para fugir, mas com o objetivo de mudar a residência para Mogadouro, na sequência da morte de sua mulher, Clara Fernandes, que lhe deixou dois filhos: Leonor e Francisco, nascidos, respetivamente, por 1631 e 1633.
Em Mogadouro casou de novo, com Maria de Robles, cristã-nova, que lhe deu mais dois filhos: Manuel e António, a qual viria a falecer por 1645, posto o que, Martim casou pela terceira vez, então com Ana Lopes, natural da Torre de Moncorvo.
O casal vivia desafogadamente e, à boa maneira da gente da nação, todos trabalhavam, exercendo atividades múltiplas. Martim comprava e tratava couros e vendia solas, “selaria” e outra “obra-prima” pelas feiras. Mas também cobrava rendas e foros como as “sanjoaneiras” do Conde de Távora ou “os quintos” do arcebispo de Braga.
E se Ana Lopes declarou para os inquisidores que “vivia da fazenda que ganhava seu marido”, não é crível que ficasse parada, a olhar para a enteada Leonor que em sua casa morava e “vivia de fiar seda” ou para o enteado Francisco que pelos 14 anos era já “tendeiro de especiarias”.
Entretanto “vacinada” que foi a povoação de Quintela e analisadas pelo santo ofício as denúncias ali feitas contra Martim Rodrigues, o procurador do tribunal de Coimbra requereu a sua prisão, nos seguintes termos:
— Contra Martim Rodrigues, natural e morador em Mogadouro, que já residiu em Quintela de Lampaças, ofereço os testemunhos (…) dos ajuntamentos que a gente da nação fazia de noite em Quintela em que o delato andava chamando pelas portas. Os presos de Quintela todos confessaram culpas de judaísmo e o delato é morador em Mogadouro, onde não entrou o santo ofício e há muita gente da nação indiciada”.(6)
Ou seja: com a prisão de Martim, em janeiro de 1648, planeava o procurador do santo ofício uma nova operação de limpeza da heresia judaica. Aliás, os próprios inquisidores, poucos anos depois, mandariam escrever no processo de um “passador de judeus” do Vimioso, a seguinte nota:
— (…) Mogadouro, que há muito tempo arde em judaísmo e aonde o santo ofício tem presas mais de 60 pessoas e tem fugidas outras tantas ou mais, para não serem presas.(7)
Na verdade, à prisão de Martim Lopes seguiu-se a da mulher e dos filhos,(8) denunciados por ele, naturalmente. E, de seguida, mais uma dezena e meia de cristãos-novos Mogadourenses deram entrada na cadeia de Coimbra, igualmente denunciados por Martim. Tal como aqueles denunciaram outros, num crescendo exponencial de denúncias, seguidas de prisões e fugas. Era o início da maior operação realizada em Trás-os-Montes. Só de uma vez foi decretada a prisão de uma centena de cristãos-novos Mogadourenses!
Não vamos falar das pessoas que Martim Rodrigues denunciou como seus correligionários, as quais, por sua vez, o denunciaram a ele. Diremos tão só que boa parte dessas denúncias aconteceu na feira dos Chãos, freguesia de Salsas, termo de Bragança, então a maior feira de gado do Nordeste Trasmontano. Entre os seus confitentes, destacamos Diogo Nunes Cardoso, de Freixo de Espada à Cinta, pelo simples facto de ser “tratante de bacalhau”, o primeiro que encontramos em semelhante atividade profissional.
Em termos de matéria de delito, para além das muitas declarações de judaísmo e companheiros nos jejuns do kipur, da rainha Ester e da Judith, veja-se a confissão seguinte:
— Disse que haverá dois anos, no Mogadouro, em casa de Francisca Dias, já defunta, estando ambos, deu ele confitente um tostão ou 4 vinténs para a dita Francisca fazer um jejum pela alma de Maria Robles.(9)
Do processo de M. Rodrigues, destacamos o facto de, na própria prisão, ele ter feito o jejum do Kipur de 1648. E, certamente porque não tinha a certeza do dia em que calhava, jejuou três dias seguidos.
A prisão de Martim, como, aliás, o da mulher e dos filhos, terminou com a condenação em confisco de bens, cárcere e hábito perpétuo e penitências espirituais, saindo penitenciados no auto-da-fé de 10.7.1650.
Regressado a Mogadouro, logo Martim Rodrigues começou a planear a fuga para Castela. Tratava-se de uma jornada bastante perigosa, pois se estava no mais aceso da guerra da Restauração, com a fronteira cheia de soldados, de um e outro lado. Além do outro “exército” constituído por frades e beatos e familiares da inquisição, sempre empenhados em espiar os movimentos dos “judeus”. E porque se tratava de uma jornada perigosa, Martim contratou o mais seguro dos “passadores de judeus” que então operavam na região, o padre Belchior de Macedo,(10) membro de uma nobre família do Vimioso, pároco da freguesia de S. Martinho de Angueira, uma aldeia sita mesmo da fronteira de Castela.
Pela passagem dele, da mulher e dos filhos penitenciados pagou 12 patacas ao padre Belchior. Este, por sua vez, contratou, para o ajudar, dois outros “passadores” do Vimioso, pagando a cada um 3 mil réis, quantia bem avultada, correspondente a 30 jornas de trabalho. Um dos “passadores” contaria mais tarde, na inquisição de Coimbra, que o padre o contratou para ir com ele a Mogadouro a buscar uma carga de incenso e só quando chegaram à capela de Santa Cruz, perto das “tinarias dos pelames”, onde os fugitivos esperavam, escondidos, é que lhe revelou ao que iam.(11)
Notas:
1 - Inq. Coimbra, pº 641, de Francisco Rodrigues, o temeroso; pº 8990, de António Rodrigues, o antão.
2 - ANDRADE e GUIMARÃES – Nas Rotas dos Marranos de Trás-os-Montes, pp. 15-40, Âncora Editora, Lisboa, 2014.
3 - Inq. Coimbra, pº 3271, Jorge Lopes Henriques
4 - Idem, pº 3305, de Guiomar de Leão.
5 - Idem, pº 8227, Martim Rodrigues.
6 - Idem, fl. 13.
7 - Idem, pº 3491, de Manuel Álvares.
8 - Idem, pº 8216, de Ana Lopes; pº 8224, de Leonor Nunes; pº 1163, de Francisco Nunes.
9 - Pº 8227, tif 145.
10 - ANDRADE e GUIMARÃES – Uma Rede de Passadores de Judeus desmantelada pela Inquisição de Coimbra, in: Nas Rotas dos marranos de Trás-os-Montes, pp. 137-140. Inq. Coimbra, pº 8025, de Belchior Macedo.
11 - Idem, pp. 103-105. Inq. Coimbra, pº 861, de Francisco Rodrigues.