Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Pereira d´Aça (n. Chacim 1652)

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Duarte Fernandes se chamou o seu pai, mercador e proprietário agrícola, o qual foi preso pela inquisição de Coimbra, em janeiro de 1670, quando contava 58 anos. Saiu penitenciado em cárcere e hábito e sequestro de bens no auto da fé de 14.6.1671.(1)

Denunciada como judaizante seria também a sua mulher, Ana Pereira, 8 anos mais nova. Não a levaram presa para Coimbra, por se encontrar entrevada na cama, sendo ouvida em casa em 22.10.1671, por um comissário. Isso não impediu que lhe fosse instaurado um processo e nele fossem autuadas as culpas que lhe iam sendo assacadas. Faleceu em 6.2.1680, mas só em 21.8.1687 foi apreciado o seu processo e

ditada a sentenciada.(2)

O casal teve 7 filhos, todos casados em famílias cristãs-novas, também com largo historial na inquisição. Dois deles casaram com filhos de Pascoal Ramos e um terceiro casou com Leonor Nunes, de Bragança, a qual, ficando viúva, casou segunda vez com João da Costa Vila Real.(3)

António Pereira d´Aça, o nosso biografado, nasceu em Chacim, por 1652 e casou em Rebordelo, termo de Vinhais, com Ângela Nunes, que lhe deu dois filhos: Duarte, nascido por 1680 e Clara, 5 anos mais nova.

António era homem muito viajado, não apenas em Portugal mas também por Castela, mercador de panos, especialmente sedas. No verão de 1695, partiu de Chacim rumo à cidade portuária da Corunha, no extremo noroeste da Galiza. Ali embarcou em um navio holandês e viajou para Amesterdão.

Chegou pelo mês de Outubro e foi hospedar-se em uma estalagem sita no arrabalde, junto à sinagoga, propriedade de um judeu ido de Livorno, chamado Moisés Alva. Procurou por Diogo Rodrigues Nunes, viúvo de Maria Pereira d´Aça, mas disseram-lhe que era já falecido. Precisaria, naturalmente, de apoio e lembrou-se de dois irmãos que conhecera no Porto, chamados Manuel e Jerónimo Nunes de Carvalho, recentemente chegados à Holanda, fugidos da inquisição. Perguntaram-lhe se ia também fugido da inquisição e ele respondeu que sim. Ter-lhe-ão dito que o apoio não havia de faltar mas para isso, tinha de frequentar a sinagoga e tornar-se judeu, fazendo-se circuncidar.

O mesmo lhe dizia o estalajadeiro, naturalmente e todos os judeus sefarditas que na “Jerusalém do Norte” ia encontrando. E logo começou a frequentar a sinagoga e foi circuncidado. A cerimónia decorreu na própria estalagem, no dia 3 de novembro, sendo a circuncisão feita por David Leão, testemunhada pelo estalajadeiro, pelos irmãos Carvalho “e cinco ou mais judeus”. Ficou 8 dias de cama a curar a ferida da circuncisão. Ia curá-lo o mesmo David de Leão que também lhe levou 40 patacas angariadas por ele entre os da comunidade.

Viveu na Holanda meio ano e, para além de Amesterdão, conheceu as cidades de Haia, Delft, Roterdão e Leiden. Viveu como judeu, frequentando a sinagoga, instruindo-se e rezando por um livro que lhe deram à chegada. O livro vendeu-o depois que decidiu deixar a Holanda e dirigir-se a Londres, cidade onde chegou ao fim do mês de maio de 1696.

Não temos qualquer informação acerca das pessoas que ele contactou em Londres, para além do capelão-mor da capela(4) da embaixada de Portugal naquela cidade, a quem contou as suas aventuras.

Certamente que se dirigiu ao dito capelão com o objetivo de conseguir um documento que lhe permitisse o regresso a Portugal, sem receio de ser preso pela inquisição, que por todo o lado tinha esbirros e logo a sua fama de judeu público em Amesterdão chegaria com ele. Obteve assim o documento desejado, assinado pelo capelão, pelo “embaixador” Manuel Jacques de Magalhães, visconde de Fonte Arcada e mais 5 testemunhas que assistiram à cerimónia de abjuração na capela. Mas, veja-se o texto:

— Eu, abaixo assinado, capelão de SS. O Visconde de Fonte Arcada (…) certifico e declaro que António Pereira (…) me veio dizer que ele, reduzido a necessidade, na Holanda, para procurar favor e ajuda dos judeus da dita terra, por alguns meses do ano de 1695 e alguns de 1696, comunicou com eles no judaísmo e aceitou os ritos e cerimónias da dita superstição em comunhão com os ditos judeus, durante o sobredito tempo, nas suas sinagogas. Porém, agora, caindo sobre si, resolvera, como verdadeiro penitente, renunciar e abjurar a dita seita e tornar-se ao grémio da sacra santa igreja católica. Certifico mais que, conforme o seu desejo, precedendo-se a exame e todas as demais preliminares disposições e requisitos necessários (…) fez abjuração da dita superstição judaica e profissão das vivíficas doutrinas e crenças da santa madre igreja católica (…) na capela pública do sobredito Senhor Enviado em Londres, aos 25 de junho de 1696. O qual feito, o absolvi da excomunhão e quaisquer outras censuras eclesiásticas incorridas pelas causas sobreditas, conforme o poder e privilégios de missionário nestas terras que para isso tenho…(5)

Obviamente que a absolvição e a entrega do documento impunham que António Pereira, ao chegar a Lisboa se fosse apresentar ao tribunal da inquisição. Caso contrário, ao “crime” de judaísmo se acrescentava o de fingir e estorvar o trabalho reto do santo ofício.

Chegou a Lisboa no dia 1.9.1696 e logo se apresentou na inquisição, sendo ouvido pelo inquisidor António Monteiro Paim. E para justificar a sua ida a Amesterdão, disse que fora com o objetivo de receber 200 mil réis da mão de um Diogo Rodrigues Nunes, que havia deixado em testamento a mulher deste, Maria Pereira d´Aça a sua sobrinha Francisca d´Aça, moradora em Chacim, sua parente. Porém, chegando a Amesterdão, soube que Diogo Rodrigues era já falecido, como atrás se disse e ele se viu obrigado a tornar-se judeu, por uma questão de sobrevivência e não por verdadeira convicção.

Ouvida e autuada a declaração do penitente, a primeira reação do inquisidor foi a de mandar saber se nos diversos tribunais (Lisboa, Coimbra e Évora) havia alguma denúncia contra António Pereira. Depois despachou:

— Que não saia desta cidade, nem da estalagem em que está e continuará a vir na sala desta inquisição todos os dias, de manhã, até se finda a sua causa.

Felizmente não havia qual-

quer culpa registada contra ele, pelo que o processo foi encerrado, com sentença ditada na Mesa do santo ofício em 26.9.1696, impondo abjuração e penitências espirituais.

 

Notas:

1 - Inq. Coimbra, pº 1646, de Duarte Fernandes.

2 - Idem, pº 6040, de Ana Pereira.

3 - Idem, pº 3193, de Francisco Soares Ramos; pº 3605, de Leonor Nunes.

4 - Tratando-se de um reino onde a religião oficial era o anglicanismo, não havia em Inglaterra capelas cristãs abertas ao público mas tão só a nas embaixadas de países católicos para serviço do pessoal da embaixada e seus convidados.

5 - Inquisição de Lisboa, pº 17718, de António Pereira d´Aça: — Depois de dito visconde e o seu capelão o examinarem e lhe declararem o que era obrigado a crer como católico romano, o levaram para a capela que tem nas suas casas, e diante do mesmo enviado, capelão e alguns criados seus, pondo-se ele confitente de joelhos, diante do altar da mesma capela, com uma vela na mão, acesa, estando o dito capelão de sobrepeliz, em pé, e pondo ele confitente as mãos sobre o missal, abjurou de seus heréticos erros e prometeu nunca mais se apartar da fé católica romana…

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães