Afonso Álvares, natural de Vilvestre, Castela, veio para Mogadouro e ali se tornou rendeiro e casou com Ana Dias. O casal teve uma filha, chamada Branca Lopes, a qual casou em Mogadouro com António de la Peña. Teve também um filho, de António Álvares, que casou com Ana Rodrigues, emigrando o casal para Madrid onde ele amealhou fortuna, tornando-se o maior fornecedor de tijolos na capital do reino, alcançando até o monopólio do fabrico e venda daquele material.(1)
Um outro filho de Afonso e Ana chamou-se Diogo Álvares Marques, que viveu em Mogadouro, casado com Marquesa Rodrigues. Estes foram os pais do nosso biografado, António Rodrigues Mogadouro.(2)
No Mogadouro viveu António até aos 22 anos, altura em que rumou a Madrid, onde permaneceu por 5/6 anos. Regressou a Mogadouro e logo casou com Maria Lopes, de Vila Real, para esta terra mudando a residência. Cedo ficou viúvo e sem filhos. Voltou a Madrid e ali permaneceu mais 2 anos. Ao início da década de 1630, viajou para Lisboa e ali casou, de novo, com Isabel Henriques, também originária da capital trasmontana, irmã do célebre diplomata Manuel Fernandes Vila Real.
Da numerosa prole de António Mogadouro e Isabel Henriques, chegaram à maioridade 3 filhos e 5 filhas. Deles falaremos adiante, que todos se viram envolvidos no processo que a inquisição moveu ao patriarca, sendo já viúvo e contando 73 anos.
Situemo-nos agora em Lisboa, na Rua das Mudas onde a Casa Mogadouro se destacava pelo movimento comercial. Seria efetivamente uma das maiores firmas de importação de produtos, nomeadamente açúcar do Brasil, especiarias e diamantes da Índia, tecidos, ferro e utensílios do Norte da Europa e da Itália. De referir que os Mogadouro tinham representação comercial na Baía, por vezes dirigida por seus filhos e trabalhavam em rede com parentes seus de Madrid, Bordéus e Livorno.
E se mercadorias estrangeiras chegavam de barco a Lisboa e entravam nos armazéns da Casa Mogadouro, era também ali que muitos mercadores de Trás-os-Montes, Porto, Coimbra e outras terras vinham abastecer-se para suas vendas a retalho. Muito em especial os de origem hebreia e trasmontana, estabelecidos por todo o território nacional.
Para além disso, numa época em que os bancos davam os primeiros passos entre nós, a Casa Mogadouro desempenhava também algumas funções de crédito e penhora, próprias de uma casa bancária.
E tratando-se de uma das grandes empresas do País, obviamente que o seu alinhamento político era importante, ainda mais numa época de grandes alterações, derivadas do “golpe de estado” de 27.1.1668 em que o rei D. Afonso VI foi deposto e no trono colocado o seu irmão D. Pedro II. Nesse “golpe de estado” o papel da inquisição terá sido essencial e as Cortes que sancionaram o novo rei eram absolutamente dominadas por familiares da inquisição.
E se, em tempos do rei D. João IV e Afonso VI e muito em especial durante a governação do “primeiro-ministro” Conde de Castelo Melhor, as empresas Mogadouro ajudaram a suportar o poder político, nomeadamente no abastecimento de géneros e pagamento às tropas estacionadas em Trás-os-Montes,
na Guerra da Restauração (1640-
-1668),(3) já com o novo rei e o aumento do poder da inquisição, o horizonte começou a enevoar-se e a Casa Mogadouro seria referenciada em alguns círculos do poder e da inquisição, como um alvo a abater.
Assim se explica a vigilância mantida por vários familiares da inquisição sobre os Mogadouro e as pessoas de suas relações, não apenas em Lisboa, mas também em Madrid, Bordéus e Livorno. Isso mesmo é atestado por várias cartas arroladas no seu processo. E também isso explica os boatos que surgiram a seguir ao caso do Senhor Roubado da igreja de Odivelas, na noite de 10-
-11.5.1671, dizendo que foram os Mogadouro os mandantes do roubo. Na Guarda, por exemplo, dias depois, apareceu um indivíduo a dizer que o autor do roubo foi um seu irmão, mandado pelos Mogadouro e pelos Penso.(4)
A primeira denúncia contra António Mogadouro foi feita na inquisição de Coimbra, em 1666, por Manuel Mascarenhas, prebendeiro da universidade, dizendo que “havia 11 anos” em Lisboa, na Rua das Mudas, em casa de António Mogadouro, com ele se tinha declarado seguidor da lei de Moisés. Um ano depois, revogou esta declaração.
Em fevereiro de 1670, João e Isabel, dois escravos de António Rodrigues Marques, sobrinho de António Mogadouro, dirigiram-se à inquisição e denunciaram seus amos dizendo que 3 anos atrás tinham guardado o jejum do dia grande e que à noite vieram ter a sua casa António Mogadouro e os filhos e ali cearam peixe e ficaram até às duas horas depois da meia-noite.
Em 23.5.1672, o familiar Pedro Ferreira apresentou-se nos Estaus e contou que no Tejo estava fundeada uma nau inglesa, contratada pelos Mogadouro para nela se embarcarem e fugirem para Livorno onde estavam construindo grandes casas para eles, estando planeado o casamento do filho mais velho do Mogadouro com uma filha de Gabriel Medina, seu sobrinho, filho de sua irmã Ana.
O familiar Pedro Ferreira entregou também duas cartas recebidas de informadores de Madrid e Bordéus denunciando os Mogadouro como “passadores de judeus” na nau “Jerusalém”, propriedade sua e de seu sobrinho Gabriel de Medina.
Logo de seguida, apareceu outro familiar, António Castro Guimarães, acrescentando denúncias de planos de fuga e contando que dias antes, na nau “Jerusalém”, os Mogadouro tinham despachado para Itália grande quantidade de diamantes e que, para maior segurança, a tripulação foi aumentada com 50 homens. Estas informações foram corroboradas por um terceiro familiar do santo ofício chamado Luís Rodrigues.
Entretanto, a inquisição tinha prendido alguns mercadores da capital e um deles, Manuel da Costa Martins, contratador dos portos secos, membro da também poderosa família Pestana, confessou que, 9 anos antes, ele e António Mogadouro se tinham declarado seguidores da lei de Moisés.
Dois dias depois, a inquisição prendeu António Mogadouro e os dois filhos mais velhos: Diogo Rodrigues Henriques e Francisco Rodrigues Mogadouro.(5)
Os três se mantinham negativos, negando todas as acusações. Talvez por isso e com o objetivo de conseguir provas mais concludentes contra eles, um ano e meio depois, os inquisidores mandaram prender 3 filhas e o filho mais novo de António Mogadouro. Uma delas, Violante Henriques, viúva do contratador Pedro Franco Azevedo e prometida em casamento a seu primo João Lopes de Leão, faleceu de parto, 20 dias depois de entrar na cadeia. O mesmo aconteceu com Branca Henriques que faleceu no cárcere em 20.8.1676. A sua estátua e ossos foram queimados no auto da fé de 16.8.1684. Brites Henriques e Pantaleão Rodrigues, os filhos mais novos, esses sobreviveram e denunciaram seu pai e irmãos.(6) Sobrevivente e também denunciador do pai foi o irmão Francisco Rodrigues, atrás referido.
Por 5 anos, o velho Mogadouro aguentou os tormentos da prisão, vindo a falecer em 8.7.1679, tendo-se confessado por 3 vezes no decurso da doença que o vitimou, conforme declarou Bernardo de Sousa, seu companheiro de cárcere que acrescentou:
— Entende que ele morrera com actos de cristão fazendo várias orações e actos de contrição, que ele testemunha lhe estava repetindo.
Apesar deste e de outros testemunhos semelhantes, o processo continuou seus trâmites, apenas se encerrando em 26.10.1684, com os inquisidores a concluírem que ele “em sua vida não quis confessar suas culpas e delas pedir perdão (…) que viveu e morreu em seus erros e na chamada crença da lei de Moisés” pelo que ordenaram que os seus ossos fossem desenterrados e queimados com sua estátua. A sentença foi cumprida no auto-da-fé de 26.11.1684, realizado na igreja de S. Domingos. Escusado será dizer que grande parte da fortuna dos Mogadouro foi sequestrada e comida pela inquisição. E não seria toda porque, entretanto, eles conseguiram encaminhar muitos valores e capitais para Itália, nomeadamente um baú cheio de diamantes.
Notas:
1 - SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid, p.135 Stuttgard, Steiner Verlag, 1994.
2 - Outros filhos de Diogo Álvares e Marquesa Rodrigues: Francisca Lopes, que morou em Sambade, casada com Manuel de Leão e foi presa pela inquisição de Coimbra – pº 1253; Isabel Rodrigues, que casou com Francisco Vaz de Leão; Diogo Álvares Marques, que casou em Vila Real, com Branca Henriques, seguindo para Madrid onde ganhou relevo entre os “hombres de negócios” de origem portuguesa e acabaria os seus dias em França; Ana Rodrigues, moradora em Miranda do Douro, relaxada pela inquisição de Coimbra – pº 4990; Francisco Rodrigues Marques, que casou em Miranda do Douro, com Maria Lopes e viveram em Lisboa, na Rua da Fancaria de Cima, pais de António e Diogo Rodrigues Marques.
3 - ANDRADE, António Júlio e GUIMARÃES, Maria Fernanda – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, pp. 111-119, ed. Nova Veja, 2009.
4 - Inq. Lisboa, pº 131320, de Clemente da Fonseca Pinto.
5 - Idem, pº 5412, de António Rodrigues Mogadouro; pº 11262, de Diogo Rodrigues Henriques; pº 1747, de Francisco Rodrigues Mogadouro.
6 - Idem, pº 8408, de Violante Henriques; pº 8447, de Branca Henriques; pº 4427, de Brites Henriques; pº 7100, de Pantaleão Rodrigues.