Depois de sair das masmorras do santo ofício de Coimbra, em 1667, o padre António Vieira foi para Roma e ali iniciou uma cruzada pessoal contra a inquisição.
Atitude semelhante tomou Pedro Lupina Freire, um homem que, antes de ser preso, fora secretário do tribunal do santo ofício de Lisboa e conhecia por dentro o funcionamento da máquina inquisitorial.
Ao conhecimento do papa chegou um documento (“Notícias Recônditas”) que o terá deixado horrorizado, contando casos concretos dos abusos dos inquisidores. Atribui-se a redação deste documento a Lupina Freire.
Obviamente que um e outro concertavam as suas ações com pessoas influentes da “nação” dos cristãos-novos que viviam em Lisboa, Amesterdão, Roma, Livorno e outras terras. E então, os cristãos-novos portugueses, elaboraram um plano com vista à obtenção de um perdão geral para os presos e a mudança dos métodos da inquisição, nomeadamente dando a conhecer aos processados as razões da sua prisão e as testemunhas dos seus crimes.(1)
Em simultâneo, e de acordo com o padre António Vieira, erigiram o padre Francisco Azevedo como seu representante na Cúria de Roma e instituíram uma comissão que em Lisboa representava os cristãos-novos portugueses, constituída por António Rodrigues Marques, Pedro Álvares Caldas e D. José de Castro.(2)
O facto é significativo da importância e prestígio do nosso biografado, que assumiu a liderança da contestação. Por outro lado, mostra um grande empenhamento da família Mogadouro no pedido do perdão geral e na ofensiva diplomática em Roma contra os métodos da inquisição. De referir também que o homem que levava e trazia o correio entre Lisboa e Roma era um homem da confiança de António Mogadouro, “preceptor” que foi dos seus filhos, chamado Gaspar Rodrigues Pereira, originário também de Mogadouro.(3)
Claro que a primeira tarefa dos negociadores em Roma foi a obtenção de salvo-condutos passados pelo papa àqueles três homens que, teoricamente, os livraria de ser presos pela inquisição. Teoricamente, porque, António Marques, depois da prisão do tio e dos primos Mogadouro, viu a inquisição prender também o “correio” Gaspar Lopes Pereira e, receando o pior, acabou por fugir para Londres, como adiante se verá.
Nascido em Miranda do Douro, por 1637, António era filho de Francisco Rodrigues, o marquês, (alcunha nascida do nome da mãe, Marquesa Rodrigues), irmão de António Mogadouro. Pequeno ainda, seria levado para Lisboa, quando seu pai para ali se mudou e abriu uma loja de mercador, na Rua dos Escudeiros.
Cedo o pai faleceu e António Marques ficou sob a proteção de seu tio António Mogadouro, que o mandou “estagiar” para a Baía, juntamente com o seu filho Francisco que, mais tarde, haveria de confessar na inquisição:
— A pessoa que lhe ensinou a crença na lei de Moisés foi António Rodrigues Marques, cristão-novo, homem de negócio, primo e cunhado dele confidente, viúvo de sua irmã Leonor Rodrigues (…) haverá 14 anos, na cidade de S. Salvador, estado do Brasil, em sua própria casa, onde ele confidente também assistia…
Regressou a Lisboa 7 anos depois e casou com sua prima Leonor Rodrigues, que logo depois faleceu, sem deixar descendência. António não mais casou, ficando a viver em casa do irmão, Diogo Marques, este casado com uma irmã da falecida.
Corriam florescentes os negócios dos Marques, com o António a assumir-se como grande contratador, quando a família Mogadouro foi arrastada para as masmorras da inquisição. E enquanto em Roma se negociava, também por Lisboa promovia António Marques outras diligências visando colher informações sobre os parentes presos e ajudá-los na sua defesa e libertação. Para isso conseguiu “comprar” os serviços do alcaide da cadeia, de modo a este deixar passar cartas e escritos entre ele e o primo Diogo Rodrigues Henriques e também dinheiro, essencial para corromper o alcaide e os guardas.
De Roma não vinha o perdão e em Lisboa os inquisidores descobriram o crime do alcaide. António Marques ficava em maus lençóis e a inquisição ganhava um novo argumento para exibir perante o papa.
António fez então embarcar para Inglaterra os membros da família que ainda não estavam presos, nomeadamente a sua mãe, o irmão, a cunhada e os filhos destes. E terá diligenciado a transferência de todos os valores possíveis, especialmente dinheiro e diamantes. Ele ficou por Lisboa, munido do salvo-conduto, pegando as pontas dos negócios que restavam das empresas dos Marques/Mogadouro. Inclusivamente há notícia de duas idas dele à sala da inquisição, na qualidade de testemunha, por causa da corrupção do alcaide e da morte de um preso, com um tiro que lhe deram, depois de sair da cadeia,(4) suspeitando-se que
os mandantes foram “judeus” por ele ser um traidor e denunciante dos Mogadouro.
Gorado o perdão geral e entrando de novo a funcionar a inquisição, António Rodrigues Marques sentiu que a sua vida corria perigo e nada havia já que o protegesse, pelo que fugiu para Inglaterra. Documentada está a sua presença em Lisboa em 22 de Fevereiro de 1681 quando assinou a carta de que atrás se falou para o padre Francisco de Azevedo. E sabemos que em 4 de Janeiro do ano seguinte, quando a inquisição foi procurá-lo (a ele e aos dois escravos referidos), já se encontrava em Londres.
E em Londres estava ainda em 2 de Janeiro de 1688 “na cama doente, mas de perfeito juízo” a fazer seu testamento.(5) E esta é uma verdadeira janela que se abre sobre as vivências deste homem. Nele deixa como herdeira e administradora de seus bens a sua mãe, Sara Henriques, encarregando-a de fazer diversas ofertas, a começar pela Congregação Hebraica de Londres. Mas entre as ofertas destacamos duas que bem revelam o ânimo deste “judeu novo”, renascido como a Fénix:
Deixava 200 libras esterlinas ao dr. Fernando Mendes para comprar uma jóia para a sua filha Catarina. Deve aqui dizer-se que o dr. Fernando Mendes era médico da rainha de Inglaterra, D. Catarina de Bragança e era casado com uma sobrinha de António Marques. Exatamente porque a rainha de Inglaterra foi madrinha da filha do dr. Fernando Mendes é que esta recebeu também o nome de Catarina. E isto mostra como os irmãos Marques, nascidos em Miranda do Douro, se movimentavam pela Corte de Inglaterra. Eles pertenciam à poderosa classe dos “judeus novos” construtores do mundo moderno capitalista.
Outro legado era para um segundo filho do mesmo, ainda pequeno. Mas nisso impunha o testador uma condição essencial:
— Pretendo que o dr. Fernando Mendes dê o meu nome ao filho e dentro de dois anos deve estar circuncidado. Se isto não acontecer, excluo o dr. Fernando Mendes e seu filho da minha herança.
E fez igualmente questão de incluir cláusulas semelhantes em legados para outros sobrinhos-netos, filhos de David de Medina e Samuel Ximenes, que apenas seriam entregues se tivessem o nome de Marques.
Notas:
1 - TSO-CG/Papeis Avulsos, mç. 7, n.º 2635 – Comprometiam-se a colocar 5 mil homens na Índia, pagando todas as despesas; em cada ano renovariam as mesmas forças militares com 1200 homens e pagariam 20 mil cruzados para o sustento da gente da guerra naquelas paragens; forneceriam viáticos a todos os missionários da Índia e “as letras a todos os bispos” da região; obrigavam-se a criar e manter uma companhia de comércio da Índia, conforme a vontade do rei e em cada mês dariam 200 mil réis a quem o rei mandasse; havendo guerra, mandariam mais 300 homens armados, além dos 1200 referidos; para além disso, dariam todo o apoio aos governadores e os direitos de ida e volta ficariam sob alçada régia e ao rei prometiam mais serviço em caso de guerra em Portugal. O rei D. Pedro estaria disposto a aceitar tão magnânima oferta, até porque os holandeses e ingleses ameaçavam conquistar aquela e outras possessões ultramarinas. Porém, acabaria por recuar, face ao poder da inquisição e ao argumento simplista de um dos seus homens, o bispo de Leiria: — Se os cristãos-novos prometem 500 mil cruzados pelo perdão geral, tem Vossa Alteza leis justas e santas com que, por meio do Fisco, rendem mais que os 200 contos.
2 - ANTT, Armário Jesuítico, mç. 4, doc. 19 – Trata-se de uma carta escrita e assinada por aqueles três homens, dando conta das negociações e garantindo o pagamento de 6 mil escudos de despesas feitas pelo “embaixador” com “prendas” a dignitários da Santa Sé.
3 - ANDRADE e GUIMARÃES, Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira dois cristãos-novos de Mogadouro, in: Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 5, pp. 253 – 297, ed. Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste”, Lisboa, 2005.
4 - ANTT- Inq. Lisboa, pº 81, de Manuel da Costa Martins.
5 - The National Archives – Public Record Office – Catalogue Reference: Prob/11/394 – Image Reference 548. Agradecemos a George Richard Henriques, arquiteto canadiano descendente direto de Ana Rodrigues, tia do nosso biografado, a cedência de cópia deste documento.