Manuel Henriques Pereira, nascido em Moncorvo por 1593, foi um dos 11 filhos de Henrique Lourenço e Isabel Pereira(1) e o único que casou e assentou morada na terra natal, na casa dos pais, sita à rua dos Mercadores, avaliada em 100 mil réis.
E por falarmos na herança dos pais, diga-se que toda estava “obrigada à feitoria d´el-Rei e a obrigou seu irmão Diogo Henriques, já defunto”. E agora vejamos os bens:
Um olival à Fonte do Concelho, que valia 150 mil réis.
Uns moinhos que estão na ribeira de Felgueiras, avaliados em 100 mil réis.
Outro moinho que está na ribeira do Felgar, no valor de 20 mil réis.
Outro moinho que está em Felgueiras que vale 80 mil réis.
Uma terra, cercada, ao Santiago, junto à vila, que valia 100 mil réis.
Uma vinha às Aveleiras, com valor de 70 mil réis.
Uma terra no Larinho, outra à Sobreira e outra aos Engestos, que valiam uns 70 mil réis.
Umas casas por cima de S. Bartolomeu,(2) avaliadas em 20 mil réis.
Três “casas de colher linho, da feitoria d´el-rei, que valem 24 mil réis”.
Não conhecemos qualquer regulamento desta Feitoria criada por Filipe II em Moncorvo, em 1617, tornando-se difícil interpretar a “obrigação” de Manuel Henriques à mesma fábrica.(3) Suspeitamos de uma espécie de parceria público-privada, como hoje dizemos, sendo a Fábrica, Real, em termos de receção da matéria-prima (o linho) e garantia de escoamento do produto: as cordas e enxárcias para equipar os barcos da marinha real. A fábrica, no entanto, seria privada, gerida por Manuel Pereira. E isso dá-nos uma ideia da sua importância. Aliás, na Corte, ele tinha um irmão que era “médico do Conselho de Portugal em Madrid”, uma irmã, Filipa Henriques, casada com Manuel Almeida Castro, líder de uma poderosa família de mercadores e assentistas instalados na capital ibérica,(4) para além de outros familiares em círculos comerciais estratégicos como o do fabrico de sedas em Pastrana(5) ou andavam pelas Índias de Castela(6).
Não sabemos se algum dos moinhos inventariados pertenceu aos pais de Branca Coutinho,(7) sua mulher, e foi levado por esta em dote no casamento, juntamente com um olival sito no limite da vila, no sítio chamado Bragança (pela chamada curva da ferradura) e duas vinhas, uma na Costinha (junto do campo de futebol) e outra em Ribacavada (quinta do Cuco).
Conhecendo as propriedades citadas, podemos apresentar este homem como um lavrador abastado. E podemos também defini-lo como industrial de panificação, rezando as crónicas que dos moinhos de Felgueiras saía quase todo o pão que se comia na vila de Moncorvo.
No entanto, a profissão de Manuel Henriques Pereira era a de rendeiro e trazia arrematadas as rendas do arcebispado na área da comarca de Torre de Moncorvo. Nesta qualidade fazia muitas viagens a Braga e na sede arcebispal teria um bom relacionamento.
E sendo ele o rendeiro das terças arcebispais, entendiam os mordomos da confraria do Santíssimo de Cabeça Boa e Cabeça de Mouro, recentemente criada, que deveria contribuir para as despesas com a cera e o azeite consumido na igreja matriz. Nesse sentido, dirigiram-se à sede do concelho e, na praça central, apertaram com ele para que desse o dinheiro para a compra do azeite e da cera. Manuel Pereira terá respondido “que lhes daria um corno”, o que foi interpretado como um insulto ao Santíssimo Sacramento.
A cena ocorreu em dezembro de 1632 e, em abril de 1633, o ferrador Domingos Pires Álvares apresentou-se na inquisição de Coimbra a contar o sucedido, acrescentando o nome de 5 pessoas que com ele estavam presentes na praça e assistiram à cena, entre elas 3 padres e o advogado João Gois,(8) uma das mais destacadas figuras da aristocracia cristã de Moncorvo.
Os inquisidores abririam um processo e nele escreveriam a denúncia e, em Torre de Moncorvo, tudo ficaria sossegado. Porém, 4 anos depois, em Agosto de 1637, veio de Coimbra a Trás-os-Montes o inquisidor Diogo de Sousa, em visitação. E então, no segredo da “casa onde pousava o santo ofício” e cobertos pela capa do anonimato, o advogado Gois e outros destacados homens da nobreza e da governança da terra, apareceram e denunciar Manuel Henriques Pereira, como foi o caso de Luís Figueiredo Bandeira,(9) Tomé de Castro Borges,(10) Mateus de Sá Pereira…(11)
Espremendo as denúncias, verifica-se que nenhum deles viu coisa de importância contra o santo ofício, todos referindo cenas que ouviram contar a criados e criadas e muito em especial a Francisco Rodrigues Preto, que costumava acompanhar o rendeiro a Braga e nas visitas relacionadas com a recolha das rendas. Francisco era natural do Peredo dos Castelhanos e andara um ano a servir de graça, em paga de uma dívida contraída pelo pai, perante o nosso rendeiro. Depois, de pagar a dívida, continuou no mesmo serviço, livremente contratado.
Este, sim, apresentou-se perante o inquisidor e contou que seus amos guardavam o sábado, não comiam carne de porco, às sextas-feiras à tarde limpavam a casa e acendiam um candeeiro especial, com torcida nova, que ficava aceso até consumir todo o azeite. Em prova de seu testemunho nomeou duas mulheres (Catarina e Apolónia Luís) que, em tempos, serviram como criadas em casa de Manuel e Branca.
Parece que Francisco se arrependeu e foi pedir perdão a seu amo, que o pressionava por todas as formas para que fosse, judicialmente, desdizer-se. Não o conseguiu mas, a verdade é que foi preso e levado a Coimbra, acusado por Manuel Pereira de perjuro e de ter induzido as criadas a jurar falso.
Se Manuel Pereira pressionava o serviçal para se desdizer, o advogado Gois pressionava em sentido contrário e o vigário-geral, Paulo Castelino de Freitas,(12) comissário do santo ofício desdobrava-se em diligências e informações para Coimbra indiciando comportamentos judaizantes na família de Manuel e Branca e aconselhando a sua prisão, pois “são os oráculos da gente da nação desta vila”.(13) Efetivamente, foram presos em 9.6.1641 e conduzidos a Coimbra pelo familiar do santo ofício Francisco de Gouveia Pinto.(14)
A estadia de Manuel Pereira na cadeia foi curta. Menos de 4 meses depois, em 30.9.1641, morreu, com o corpo cheio de borbulhas que “botaram por vezes muita peçonha”. A sentença, porém, só foi lida no auto da fé de 15.11.1643 mandando-lhe dar sepultura eclesiástica e fazer por sua alma os sufrágios cristãos. No entanto, por ter sido herege, mandaram que os seus bens fossem confiscados, bens que foram inventariados pelo comissário Castelino que terminou o inventário escrevendo:
— Achei muito móvel e fazenda demais!
Notas:
1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 7498, de Manuel Henriques Pereira.
2 - Ignoramos se a capela de S. Bartolomeu era a atual da invocação Sr.ª dos Remédios, ou se haveria outra capela nas proximidades, pois à rua dos Sapateiros se seguia a rua de S. Bartolomeu.
3 - ANDRADE, António Júlio – Moncorvo: Páginas de História 15 – A Fábrica dos Linhos Cânhamos, in: Jornal Terra Quente de 1.1.1996. A fábrica seria remodelada em 1656, com o rei D. João IV, que lhe deu um regimento, estabelecendo as regras da administração e nomeação de administradores e funcionários pelo poder central e determinando as obrigações dos lavradores das comarcas de Moncorvo e Pinhel na entrega dos linhos, cultura tornada cultura quase obrigatória.
4 - O irmão médico, Pedro Henriques, estudou em Salamanca e Alcalá de Henares e foi casado com Inês Pereira; na Flandres, residia o irmão Julião Henriques, “que fazia viagens para a Índia”, casado com uma filha de Filipa Henriques e Manuel Castro.
5 - Em Pastrana, com o trato das sedas, se estabeleceu sua irmã Violante Pereira casada com Diogo da Mesquita, natural de Trancoso, bem como o irmão António Vaz, casado com Inês Pereira, de Vila Flor.
6 - Fernão Pereira e Henrique Lourenço. Este terá casado no México com uma cristã-velha.
7 - Branca Coutinho era filha de Pedro Henriques Julião e Francisca Vaz.
8 - ANTT, RGM, liv. 5, f. 197v-198. – Alvará de 25.6.1642, nomeando João Góis procurador da Coroa na vila de Moncorvo.
9 - ANTT, TSO, Habilitações, Luís, mç. 2, doc. 49, 1643.Figueiredo Bandeira era natural de Campo de Besteiros, casado em Moncorvo com D. Ana de Madureira.
10 - ANTT, RGM, liv. 7, f. 71-72v – Alvará de 11.11.1648, concedendo-lhe licença para renunciar os ofícios de chanceler, promotor e escrivão da correição de Torre de Moncorvo.
11 - ANTT, DP, leitura de bacharéis, letra M, mç. 18. N.º 13, 1631, processo de leitura do bacharel Mateus de Sá Pereira.
12 - ANTT, RGM, liv, 14, f. 377-377v, 1649, alvará de desembargador da casa da Suplicação, concedido a Paulo Castelino de Freitas.
13 - Significativo do zelo do comissário Castelino é a carta que os inquisidores escreveram e que terminava assim: — É de informar o vigário-geral da vila de Torre de Moncorvo que nesta mesa há grande satisfação, porque se temia que os delatos se ausentassem da dita vila.
14 - ANTT, Habilitações, Francisco, mç. 5, doc. 28, 1640, diligência de habilitação para familiar da inquisição de Francisco de Gouveia Pinto.