Para além do conde de Sampaio, que vivia geralmente em Lisboa, junto à Corte, o homem de maior poder no concelho de Vila Flor era o capitão-mor. Por isso, os inquisidores lhe encarregavam a execução das tarefas mais importantes (e mais rendosas, acrescente-se).
Assim, no seguimento das prisões de Diogo Henriques Julião e de seu pai, Julião Henriques, terá sido o capitão-mor Lopo Machado(1) que, em 1652, coordenou a vaga de prisões que então se registou na terra, por parte do santo ofício. Tal como em 1664 aconteceu com o capitão-mor Álvaro Morais de Ataíde que, além da execução das prisões, foi responsável pela condução de uma leva de prisioneiros até Coimbra.(2)
Obviamente, o capitão-mor e seus familiares foram então colocados na lista dos inimigos capitais da gente da nação de Vila Flor. E nos planos da “conjuração” por estes urdida, se bem que dissessem publicamente “que desde S. Luzia, que é no cimo da vila, até S. Sebastião, que é o fim da dita vila, não havia de ficar nenhum homem nobre que eles não fizessem vir presos pelo santo ofício”, é certo que especialmente “todos ali conjuraram de dar em os filhos e parentes do capitão-mor Álvaro Morais de Ataíde”.
Para além dos filhos, entre os parentes do capitão-mor, foram assim, presos dois cunhados do mesmo, irmãos de sua mulher, chamados Pedro Morais Sil(3) e António Sil Morais,(4) em janeiro de 1667.
Pedro Sil tinha 52 anos e mantinha-se solteiro. Morava em Moncorvo, sendo proprietário do ofício de escrivão da câmara.
Nascido em Vila Flor, ali frequentou a escola, segundo informação de Manuel Borges,(5) alcaide (menor) do castelo de Moncorvo. Seu pai chamou-se Diogo Borges, meio cristão-novo, natural de Moncorvo, feitor e guarda-mor das alfândegas.
A mãe, Maria do Sil, cristã-velha, era natural de Vila Flor.
Andaria pelos 18/20 anos, quando Pedro Sil se mudou para Moncorvo, para casa de D. Ana Borges, irmã de sua avó, Maria Nunes de Meireles. Dela herdou um grande olival sito no Rego da Barca, avaliado em 200 mil réis, sob compromisso de duas missas por ano. Nicolau Lobão, irmão das anteriores deixou-lhe um olival e terra de lavoura, avaliado em 100 mil réis, no sítio de N.ª Senhora da Teixeira, também com a obrigação de duas missas/ano por sua alma. Aliás, todas as propriedades de sua grande casa agrícola, se situavam no termo de Moncorvo. Como curiosidade do seu inventário, diga-se que ele tinha 5 vacas de renda(6) em mãos de lavradores do termo.
Em Torre Moncorvo Pedro Sil obteve o emprego de meirinho da correição e nessa qualidade foi enviado pelo corregedor João Medeiros Correia a Vila Flor, em devassa por causa de um Manuel da Mesquita que fora preso, por bestialidade, e fugira da cadeia. Dessa devassa resultou a condenação de Julião Henriques e seu cunhado Dinis Álvares. Estes recorreram para a Relação do Porto, que os absolveu. Ficou, no entanto, semeada a desavença entre Pedro Sil e os Juliões.
Tais desavenças agravaram-se anos depois quando António do Sil, seu irmão, e Rodrigo Fernandes Julião, se envolveram em luta, na praça pública, frente à câmara, dizendo-se que António Sil andava amancebado com Isabel Jerónima, a “pássara-gaga”, cristã-nova, a qual terá depois sido induzida por Diogo Julião a ir a Coimbra, denunciar os Sil por judaísmo.
E esta não foi a única a apresentar-se em Coimbra e denunciar Pedro Sil. Com ela, entre outros mais, foram também a sua irmã, Filipa Jerónima e Constança Rodrigues. Veja-se um extrato do depoimento desta:
— Disse que há 10 anos, em Vila Flor, em sua casa, se achou com seu parente em terceiro grau de consanguinidade, via materna, António Sil, casado com Maria Aguirre, e com Pedro Sil, irmão, filhos de Diogo de Morais, meio cristão-novo e de Maria do Sil, que tinha parte de cristã-nova, (…) e na ocasião de seus parentes lhe darem algum dinheiro para lhes fazer jejuns judaicos, em razão de saberem de outras pessoas, que ela confitente vivia na lei de Moisés; e António do Sil nas ocasiões do jejum do dia grande dava dinheiro a ela confitente para lho fazer, por sua intenção.(7)
Pedro Sil foi preso em janeiro de 1667. Nessa altura desempenhava o ofício de escrivão da câmara “quando podia” e “ia para a câmara em besta de albarda e às vezes em um jumento”, no dizer de um vizinho. Como se vê, era um homem de muitos achaques e, nem mesmo para o enterro de sua mãe, uma dúzia de anos antes, voltou a Vila Flor. Obviamente que usou esta justificação para dizer que as testemunhas mentiam quando afirmavam que em Vila Flor o viram fazer cerimónias judaicas, “de 30 anos a esta parte”.
De resto a sua defesa foi organizada em função da luta política entre os cristãos-novos e os homens nobres de Vila Flor, apresentando-se ele próprio como verdadeiro cristão “mordomo das confrarias das Chagas e das Almas, aonde não entram senão homens nobres, cristãos-velhos e dos principais da terra, e irmão dos nobres na casa da santa Misericórdia de Torre de Moncorvo e dos 12 da mesa dela e tesoureiro duas vezes da dita casa, e confrade da confraria de N.ª Sr.ª do Rosário e da confraria de Santo António”.
Desmontou uma a uma as acusações que lhe fizeram e apontou os que contra ele e os outros se conjuraram. Vejamos um excerto da defesa:
— Provará que levando preso Pedro da Costa,(8) partista, à casa da Misericórdia e posto aí em companhia de umas 30 pessoas que nesse dia foram presas, em que entrava João Lopes, o surdo, genro de Luís Henriques, irmão de Diogo Henriques (Julião), e sua mulher Branca Rodrigues, filha do dito Luís Henriques, (…) e estando ali presos por espaço de dois dias, publicamente ameaçaram ao dito capitão-mor que lhe haviam de fazer vir também presos a seus filhos e parentes e como com efeito o fizeram e é pública voz e fama que pela tal conjuração foi ele réu preso e mais parentes.
Contou que na viagem de Vila Flor para a cadeia da comarca, os mesmos prisioneiros vieram publicamente lançando ameaças, dizendo que atrás deles iriam os nobres de Vila Flor parar às cadeias da inquisição. Uma das testemunhas arroladas por Pedro Sil em prova das suas palavras foi Paulo Montes Madureira, homem da nobreza, escrivão da câmara de Vila Flor, que acrescentou:
— Chegando esta notícia aos homens nobres ameaçados, se viram dizendo: “ora vão embora os cães, que a Coimbra não vais senão quem é judeu”.
Em Moncorvo, a cadeia da comarca situava-se junto à praça do município e dela se viam as procissões passar pela mesma praça. Na cadeia, com os presos da inquisição, estava um ferreiro da aldeia de Felgueiras, João da Costa, que Pedro Sil apontou como testemunha da cena que ele contou aos inquisidores, nos seguintes termos:
— Levados os ditos presos da casa da Misericórdia para a cadeia de Torre de Moncorvo, aonde assim todos juntos estiveram por espaço de alguns 15 dias, indo ele acompanhando o Santíssimo e levando uma vara do pálio, levando ao pescoço um cendal preto, vendo-o passar os ditos presos, lhe disse Pedro da Costa, acima contraditado, para os outros presos: “Vós de cendal ao pescoço não haveis de cá ficar”, com palavras muito altas que o ouviram as demais pessoas que com ele estavam.
Ao fim de mais de 6 anos de cadeia, muito embora os inquisidores tivessem reconhecido que não havia prova suficiente e o réu nunca tenha confessado, a verdade é que Pedro Sil compareceu no auto-da-fé de 12.3.1673, sentenciado em “cárcere e hábito a arbítrio”.