Filho de Manuel Pires e Isabel Fernandes, Francisco Henriques nasceu em Miranda do Douro, pelo ano de 1583. Casou com Ana Rodrigues, da conhecida família dos Mogadouro. A sua casa, de dois pisos, avaliada em 60 mil réis, situava-se a meio da Rua da Costanilha, confrontando da parte de baixo com a de Isabel Henriques.(1) No r/chão funcionava a sua loja de mercador e seria a mais forte da cidade, a avaliar pela mercadoria arrolada. Assim, no que respeita a tecidos, havia-os de variada espécie: estopa (pano grosso de linho), canequim, bombazine, beirame (tecido da Índia), lenço de Arouca, cassa, beatilha, rengo, panos de Colónia… bem como retrós e botões. De especiarias, ali se vendia canela, incenso, pimenta, cravo, açúcar, tabaco… ao lado do azeite, da cera ou das cordas… E também confeitos, sidra ou caixas de marmelada, tal como sacos de farinha, de trigo ou centeio.(2)
Escusado será dizer que o abastecimento da loja, em produtos importados, era essencialmente feito a partir de Lisboa, pelas empresas do cunhado, António Rodrigues Mogadouro, com o qual tinha largas contas.
Para além disso, Francisco Rodrigues também era rendeiro, trazendo arrendada, ao “contador de Tomar” a comenda de S. Cipriano de Angueira, que era da Ordem de Cristo. E emprestava dinheiro, como se depreende dos objetos de ouro e prata que tinha em seu poder, empenhados.
Dois acontecimentos marcaram a vida deste homem e da sua família. Um deles aconteceu no verão de 1638. Subia Francisco a Rua da Costanilha e, à porta da sua vizinha, Isabel Henriques, estavam estacionadas 3 juntas de bois, jungidas e com os respetivos carros atrelados. Perguntou se era seguro passar. Responderam-lhe que sim, que os animais não atiravam. Porém, aconteceu o contrário e um dos animais acertou um coice na perna de Francisco Henriques e partiu-lha, ficando meio ano em casa a curar e manco para o resto da vida. E com isso ganhou mesmo a alcunha de “Manco”.
O outro acontecimento foi em 1640, em um dos últimos dias do mês de setembro, dia em que calhou o Kipur e coincidiu com o primeiro dia de uma novena que faziam a Nossa Senhora do Rosário, cuja festa se celebrava em Miranda no primeiro domingo de outubro. Ao sair da novena, rezada na Sé, um grupo de rapazes chefiados por dois padres, dirigiram-se para a Rua da Costanilha e foram à porta de Francisco Henriques e “lhe deram grandes matracas” e o grito de ordem era:
— Viva a Nossa Senhora do Rosário e morra a Rainha Ester!
Referiam-se ao facto de os moradores da Costanilha terem celebrado nesse dia o Kipur vestindo fatos “domingueiros”, jejuando e deixando de trabalhar. E especialmente, a uma das 4 filhas de Francisco, chamada Ângela Henriques, acerca do que, um tal João Pires, o Patudo, de alcunha, cristão-velho, diria o seguinte:
— Reparou que (…) no tal dia andavam vestidos de festa, que não trabalhavam e que Francisco Henriques e sua mulher tinham muito enfeitada a sua filha solteira maior, com as melhores joias que tinham, e que a faziam de Rainha Ester, dia que eles festejavam em sua honra e jejuavam, esperando por sua estrela…(3)
Este acontecimento iria provocar um verdadeiro furacão que se abateu sobre a Rua da Costanilha: 40 moradores foram levados para as masmorras da inquisição e muitos deles ali encontraram a morte. Foi o caso da mulher de Francisco, sentenciada no auto-da-fé de 15.11.1643 e nesse dia assada na fogueira do santo ofício.(4)
A prisão de Francisco Henriques e de sua filha, a “rainha Ester” foi decretada em 22.12.1642,(5) sendo entregues em Coimbra em 9 de janeiro seguinte, por Lucas Freire de Andrade, irmão do inquisidor Cristóvão de Andrade Freire.
Um dos companheiros de cela chamava-se Francisco Nunes. Dizia-se judeu mas na verdade era padre, estava preso por sodomia e tornou-se delator. O seu testemunho mostra-nos o estado de espírito de Francisco:
— Disse que Francisco Henriques, em algumas práticas que teve com ele lhe disse que todos os cristãos-novos de Miranda lhe haviam de ter grande respeito, que ainda que viessem presos, o não haviam de culpar (…) e os mais cristãos-novos esperavam o perdão geral (…) e que sua mulher lhe dissera que tivesse bom ânimo, e que se boa fazenda tinha, que a acrescentasse e fizesse melhor porque, ainda que a queimassem e fizessem em carvão, não o havia de descobrir nem culpar; e os outros cristãos-novos daquela terra o mesmo haviam de fazer porque bastava ser um homem velho e manco a quem teriam respeito.(6)
Na verdade, ao cabo de um ano de prisão, o ânimo faltou-lhe e ele próprio confessou suas culpas, dizendo que fora levado para a lei de Moisés por sua irmã. Vejam:
— Disse que haverá 10 anos, em Miranda, se achou com Catarina Vaz, sua irmã, já defunta, casada com Belchior Pires; e estando ambos sós, lhe disse a dita Catarina Vaz que seu marido viera de Roma e estivera na Judiaria e lhe parecera melhor a lei de Moisés que a fé de Cristo e que se passasse ele confitente à crença da dita lei, porque era boa para salvar a alma; e parecendo bem o que lhe ensinava a dita sua irmã, se passou (…) e em casa da dita Catarina Vaz sua irmã se achou com ela e com sua mulher Ana Rodrigues e com Ângela Henriques sua filha e com Isabel Henriques também sua filha casada com Tomás Henriques,
moradores em Alcanices…(7)
Deve acrescentar-se que a casa e quintal de Catarina Vaz era local privilegiado de reunião em sinagoga dos marranos da rua da Costanilha. Sobre o assunto, apresentamos a seguinte confissão de Joana Fernandes:
— Disse que sabe que as pessoas que abaixo nomeará guardam o sábado porque de 5 a 6 anos a esta parte via ela confitente Catarina Vaz (…) vizinha dela (…) e nos sábados de trabalho se punham no seu quintal, vestindo os melhores vestidos… e todas as ditas pessoas, de 5 anos a esta parte vira ela confitente ora umas pessoas ora outras entrar na casa e quintal da dita Catarina Vaz…(8)
Resta dizer que, Francisco Henriques foi condenado em cárcere e hábito, regressando a Trás-os-Montes em dezembro de 1643. Não voltaria, porém, à sua morada, na rua da Costanilha. Antes se foi viver para Mogadouro, conforme informação, de 1654, de António Henriques, membro de uma rede de passadores de judeus, estabelecida em Vimioso:
— Haverá 8 anos se achou ele confitente no Mogadouro, em companhia dos ditos Lucas Ferreira, Pedro Álvares e Gaspar Mendes e ajudou a passar para Castela a Francisco Henriques, cristão-novo, tratante, viúvo, não sabe de quem, mas era natural de Miranda do Douro, morador no Mogadouro e levava consigo duas filhas solteiras, uma de 20 anos (Mariana) e outra de 15 anos (Micaela). E por esta passagem deram a ele confitente e aos companheiros 10 mil réis.(9)
Notas:
1 - Inq. Coimbra, pº 10350: – O rev. Manuel de Oliveira, cónego da sé, disse que (…) a dita Isabel Henriques vive na Rua da Costanilha; pela parte de cima, paredes meias, vivia Francisco Henriques e pela parte de baixo vivia a Cardosa.
2 - Idem, pº 4510, de Francisco Henriques, tif 92-95.
3 - Idem, tif 24.
4 - Idem, pº 4990, de Ana Rodrigues. Segundo a descrição de um padre capuchinho francês, em Coimbra, os condenados à morte eram levados à meia-noite, para o areal da ponte e ali metidos, cada um dentro de uma casota feita de madeira e gesso, à qual deitavam fogo. PEREIRA, Isaías da Rosa – Clio, Auto de fé de Coimbra de 14 de junho de 1699.
5 - Idem, tif 45. Juntamente com Francisco e Ângela foi decretada a prisão de Jerónimo Henriques, Manuel Henriques, André Ramires e Santiago Mendes.
6 - Idem, tif 48-49.
7 - Idem, tif 109-110.
8 - Idem, tif. 14.
9 - Idem, pº 5931, de António Henriques.