Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Marquesa (Sara) Rodrigues (Lisboa, c. 1640 – Londres, d. 1677)

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Filha de António Rodrigues Mogadouro e sua mulher Isabel Henriques, Marquesa recebeu o nome da avó paterna, tendo nascido em Lisboa, ao final década de 1640, casando, por 1660, com seu primo Diogo Rodrigues Marques.

Em 1674, depois que a inquisição prendeu seu pai e dois irmãos, Marquesa e Diogo fugiram para Londres, com os 4 filhos que então tinham, o mais velho de 14 anos. Naquele país seria bem acolhida e com acesso à própria Corte, facilitado pelo facto de o seu pai ter sido um dos empresários portugueses que contribuíram para o extraordinário dote de casamento de Catarina de Bragança com o rei Carlos II de Inglaterra, no montante de 2 milhões de cruzados (800 contos de réis!).(1)

Mais facilitado ainda, depois que Isabel, a filha mais velha de Marquesa, casou com o Dr. Fernando Mendes da Costa,(2) médico da Corte. Aliás, a própria rainha foi madrinha da filha mais velha de Isabel e Fernando, batizada por isso com o nome de Catarina (1678-1756). Catarina casou com seu primo Antony Costa (1667-1747) e estes foram os pais de Rachel, que, em 1714, casou com António Lopes Suasso, um dos homens mais ricos do seu tempo. Outra filha de Fernando e Catarina chamou-se Leonor, a qual casou com José da Costa e estes foram os pais de Kitty, que veio a desposar José da Costa Vila Real.

Voltemos a Marquesa Rodrigues que, chegada a Londres, abraçou abertamente o judaísmo, tomando o nome de Sara Henriques. Por 1675, ficou viúva e em fevereiro de 1677, estando de perfeita saúde e inteiro juízo, escreveu pela própria mão o seu testamento. É um documento de muito interesse pelas relações que deixa transparecer. Por isso o publicamos na íntegra, agradecendo ao arquiteto canadiano Sir Georges Richard Henriques, que no-lo facultou, com autorização de publicação. Vejam:

— À minha filha Raquel(3) deixo 200 libras esterlinas, para benefício de minha alma, e que fique bem esclarecido que devem ser repartidas durante 7 ou 11 meses, não só pelos pobres deste país, mas também onde houver necessitados. E com o mesmo objetivo deixo 15 libras, para ser colocada na sinagoga uma candeia acesa.

Deixo 10 libras a Daniel Rodrigues, para comprar roupas aos filhos.

Para Silva Aarão deixo 20 mil réis que lhe devem ser entregues e a minha filha Rachel os enviará para Portugal.

O resto que se encontrar em minha casa, como sejam, joias, dinheiro ou mercadorias deve ser dividido igualmente entre os meus filhos, exceto as coisas que nomeio e que não devem ser incluídas na dita divisão.

À minha filha Rachel deixo a nossa bacia grande de prata, um jarro com flores e duas salvas, também com flores e a nossa muito bonita carpete da Índia.

Também deixo à minha filha Ester(4) o nosso cesto grande de flores.

Deixo à minha filha Ribka o nosso bonito cesto e uma colcha trabalhada.

Ao meu filho Isaac Marques,(5) se ele tiver bom comportamento, deixo a corrente de ouro e um cesto de flores. Se ele não melhorar o seu comportamento, não será contemplado com as divisões acima mencionadas e também não receberá nada desta casa.

Ao meu filho Jacob(6) deixo a nossa grande medalha de ouro com duas correntes.

Ao meu filho Moisés Marques deixo os nossos cordões de ouro e um cordão de diamantes.

O resto das joias, pérolas e prata devem ser igualmente repartidas pelas minhas filhas, mas os bens de minha filha Rachel não devem ser incluídos nesta divisão.

Ao meu cunhado António Rodrigues Marques deixo um anel com 3 diamantes, que foi encomendado em Middlemost Benny a Isaac Álvares, e um candeeiro de 9 lâmpadas.

À minha filha Ester deixo a melhor colcha que se encontrar em minha casa.

Para a minha tia Sara Henriques(7) não encontro nada suficientemente bom para lhe deixar. E como guardiã dos meus filhos, ela deve gerir o meu testamento; e peço que seja mais amorosa com os seus netos do que tem sido até ao presente, e que haja com as pobres crianças mais como uma avó do que como uma madrasta.

À minha irmã Branca(8) deixo um anel de diamantes e uma rosa feita em Portugal e uma carpete da Índia de veludo e prata.

Para a minha irmã Beatriz deixo outro anel de diamantes e uma carpete da Índia.

Mais declaro que, se alguma tiver falecido, devem ser entregues a meus filhos e algumas esmolas devem ser dadas pelas suas almas.

Para a minha irmã Violante Henriques,(9) um anel de diamantes.

Para a minha sobrinha M. Elizabeth Asser, 4 libras, saias, blusas e coifas.

Para a minha criada Tallid deixo 5 libras.

As minhas roupas devem ser divididas pelas minhas filhas.

Sobre os negócios é meu desejo que os mesmos devem prosseguir, mas que Ralph de Lis não deve fazer outra coisa senão regularizar as contas e comprar algumas mercadorias, mas não sem aprovação de meu primo Joseph Henriques, declarando que assim se proceda até que o meu primo António Rodrigues Marques tome conta da administração desta casa.

Para a filha da mencionada Tallis, Sara, deixo uma colcha da Índia e um cesto de flores.

 

Notas:

1 - SERRÃO, Joel – Dicionário de História de Portugal, vol. 1, Livraria Figueirinhas, Porto.

2 - Fernando Mendes da Costa era originário de Trancoso. Nasceu por 1647 e foi levado ainda jovem para França, onde estudou medicina na universidade de Montpelier. Para além de médico da rainha de Inglaterra, o Dr. Fernando Mendes ficou ligado à descoberta de um famoso remédio chamado “Água da Inglaterra”. Faleceu em 26.11.1724 “sem mais doença que a sua muita idade, havia semanas que tinha vindo à minha casa, tão debilitado que entendi não podia durar muito tempo, testou de cento e dez mil libras esterlinas que importa em moeda do nosso reino em um milhão e cem mil cruzados”, conforme escrevia para Lisboa o embaixador António Galvão Castelo Branco.

3 - É o nome judeu adotado por Isabel, nascida em Lisboa por 1660.

4 - Ester é o nome judeu adotado por Ana, nascida em Lisboa por 1671.

5 - Trata-se de Francisco, nascido em Lisboa, por 1662.

6 - Nasceu em Lisboa, por 1672 e foi batizado com o nome de José.

7 - Sara Henriques é o nome judeu de Maria Lopes, sogra de Marquesa, nascida em Miranda do Douro e que ali casou com Francisco Rodrigues. Com dois filhos pequenos (António e Diogo Marques) o casal rumou a Lisboa. Ali, falecendo Francisco Rodrigues, Maria Lopes e os filhos ficariam sob a tutela de António Rodrigues Mogadouro. Não sabemos se terá ido para Londres com o filho e a nora.

8 - Não imaginava que sua irmã era falecida 6 meses antes, em 28.8.1676) nas masmorras da inquisição, sendo relaxada em estátua no auto-da-fé de 16.8.1684.

9 - Morreu de parto na cadeia da inquisição em 18.2.1674, um mês depois que ali deu entrada. Foi relaxada no mesmo auto.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães