A história da família na inquisição é quase tão longa como a do próprio tribunal. Começou logo em 1541, com a prisão do pai, Francisco Rodrigues,(1) nos cárceres do Porto, em tempos de Frei Baltasar Limpo. Antes, porém, conhecera a prisão do mesmo santo ofício, em Valhadolid, terra de Castela. Depois foi a vez da mulher, filhos, netos e mais descendência, ao longo de mais de 200 anos.(2)
Eram 9 os filhos de Francisco Rodrigues, natural de Chaves e Isabel Lopes, de Bragança. Um deles passou à história com o nome de Duarte Chaves, possivelmente porque nasceu e foi batizado naquela cidade, cerca de 1524. Estudaria Leis na universidade de Salamanca e a sua primeira grande intervenção como advogado terá sido em Valhadolid, como defensor do seu pai, uma defesa que ele escreveu em língua castelhana.
Por 1547, foi casar em Miranda do Douro, com Catarina Álvares, filha de Isabel Álvares, originária de Freixo de Espada à Cinta e em casa da sogra, já viúva, ficou morando. Seria uma das casas mais ricas de Miranda do Douro e Isabel uma das pessoas mais prestigiadas. E entre os visitantes famosos contava-se Mestre António de Valença, o físico dos Távoras que ali reunia com os judeus conversos de Miranda e lhes pregava que a vinda do Messias estava próxima.
Foram anos terríveis os de 1544 e seguintes para a nação hebreia de Miranda, com vagas sucessivas de prisões e Isabel(3) foi arrastada logo ao início, denunciada por Mestre Valença. Duarte Chaves, porém, não seria incomodado, até porque ainda estava solteiro e viveria em Bragança com os pais.
Em 1547 regressaram a Mi-
randa os prisioneiros, mercê de um perdão geral decretado pelo papa. Foi sol de pouca dura pois que, na década seguinte, o Nordeste Trasmontano foi varrido por um vendaval nunca visto, nomeadamente as terras de Bragança e Miranda.(4) Assim, nas celas da inquisição de Lisboa, em 1558, foram encerrados os seguintes membros da família:
O Dr. Duarte Chaves; a mãe, Isabel Lopes; o irmão André Ferreira; a irmã Francisca Ferreira; o cunhado, António de Castro; a mulher, Catarina Álvares.
Na cela, em companhia do nosso advogado, meteram os inquisidores um padre açoriano chamado António de Gouveia, que a ele se apresentou como cristão-novo, mercador de Viseu, Francisco Lopes, de nome, preso por judaísmo.(5) Naturalmente que estava ao serviço do alcaide dos cárceres, em trabalho de “espionagem”. Tal como estava um negro, chamado João de Távora que andava pelos corredores fazendo recados e serviços de limpeza. Aquele fora preso por feitiçaria e este por sodomia.
Com falinhas mansas, o falso mercador cristão-novo ganhou a confiança de Duarte Chaves. Convenceu-o de que o melhor era confessar os seus crimes, que logo seria libertado. Chaves pensou na mulher, na mãe e nos irmãos, que estavam noutras celas. Se todos fossem coincidentes nas suas confissões… ganhariam breve a liberdade – acrescentava o padre Gouveia. De resto, o alcaide mostrava-se complacente e dizia-se até amigo do padre. João de Távora, por seu turno, era homem de mão do alcaide e garantia disponibilidade e o mais absoluto segredo. Resta dizer que o alcaide se chamava Brício Camelo, era de Miranda, primo de Amaro da Camelo, de uma das mais enobrecidas famílias. E entre os guardas se destacava um Lopo Godinho, casado na mesma família.
Facto é que o experiente advogado se deixou convencer. Pediu papel e escreveu a confissão que se propunha fazer. E para ser concorde com as confissões da mãe, da mulher e dos irmãos, combinou-se que João de Távora levaria o papel a um e depois a outros para lerem e se apressarem a confessar as mesmas culpas.
Obviamente que o papel foi parar às mãos do alcaide que o levou ao conhecimento dos inquisidores. E depois desta, outras fictícias trocas de mensagens se fizeram entre o Chaves e seus familiares.
Entretanto outros prisioneiros de Miranda tinham já confessado suas culpas e denunciado o Dr. Chaves dizendo que em sua casa se faziam “ajuntamentos” a que ele presidia, ensinando-lhes a lei judaica por uma bíblia que tinha. Alguns acrescentaram que ele pregava a vinda do Messias entre os anos de 1555 e 1560.
Como planeado, Chaves pediu audiência e confessou que andara errado na fé, não acreditando em Jesus Cristo e guardando os sábados de trabalho. Uma confissão muito diminuta, face às denúncias chegadas à mesa e que o davam como “dogmatista” e principal doutrinador judaico em Miranda do Douro, terra onde, no ano anterior à sua prisão, fora vereador da câmara, almotacé e procurador da mesma.
Certo dia, houve alvoroço no pátio da prisão, espalhando-se a notícia que o papa assinara uma bula de perdão aos prisioneiros da diocese de Miranda do Douro, a pedido do respetivo prelado. De imediato, o nosso advogado se apresentou a requerer o cumprimento da bula e a sua libertação.
Não imaginava o Dr. Chaves que o boato fora posto a correr pelo alcaide Brício Camelo e seus comparsas, exatamente para forjar mais uma prova contra ele e outros crédulos prisioneiros Mirandeses. O desengano virou desespero quando o advogado, recebido em audiência pelo inquisidor Campilho, viu nas mãos deste um “correio” que mandara ao seu irmão André Ferreira pelo mourisco António de Távora. Descobriu então que sempre andara enganado pelos dois “bufos”, instruídos pelo alcaide.
Preparou então a sua defesa, revogando as suas confissões e justificando que as fizera, induzido pelo falso padre Gouveia. Acrescentou que foi colocado em situações dramáticas que o fizeram perder o juízo e alterar a sua capacidade de raciocínio. Contou que, com a complacência ou conivência do alcaide, Lopo Godinho e o guarda Teixeira dormiram e tiveram relações sexuais com a sua mulher, prometendo-lhe que, em troca, seria concedida a liberdade ao seu marido. E o desplante foi a tanto que levaram Catarina Álvares à porta da cela de Duarte Chaves, a dizer que fora ela a pedir que dormissem com ela, em troca da libertação do marido! Brício Camelo seria o arquiteto responsável de todas as prepotências e abusos, concluindo Chaves, com a seguinte e perentória afirmação:
— Em suas mãos, do alcaide, está muita parte da prisão e livramento dos presos destes cárceres ou a sua condenação.
A defesa não lhe foi recebida pelos inquisidores, justificando estes que o objetivo do processo era apurar se ele cometera ou não os crimes de judaísmo de que era acusado. O próprio advogado de defesa o abandonou escrevendo para os inquisidores:
— Vossas Mercês façam justiça, que eu não tenho mais que dizer da parte do réu e já o admoestei e lhe disse o que sentia da causa.
Reclamou Duarte Chaves pedindo que a sua defesa fosse enviada ao inquisidor-mor, o cardeal D. Henrique. Inútil. A defesa não lhe foi recebida. Antes foi decretado que, como herege e apóstata, fosse “relaxado à justiça secular”, eufemismo usado para dizer que estava condenado à morte na fogueira, o que aconteceu no auto-da-fé de 24.10.1559.
Notas:
1 - ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… Jornal Nordeste, n.º 1031, de 16/8/2016.
2 - ANDRADE e GUIMARÃES, Jacob de Castro Sarmento, ed. Vega, Lisboa, 2010.
3 - Isabel foi presa em Évora em 1544 (ANTT, pº 9020) e em 1555 em Lisboa (pº 3115). No primeiro saiu em virtude do perdão geral e no segundo foi absolvida, por falta de provas.
4 - De Miranda do Douro estavam então presas 25 pessoas, 7 das quais pertenciam ao clã dos Costanilha-Pimparel. ANDRADE e GUIMARÃES, Judeus em Trás-os-Montes, A Rua da Costanilha, p. 131, Âncora editora, Lisboa, 2015.
5 - ANTT, inq. Lisboa, pº 6105, de Duarte Chaves; pº 5158, de António Gouveia; pº 10855, de João de Távora. António Gouveia era mudado de cela logo que obtinha as confissões dos companheiros, ou que algum desconfiava do seu papel de “bufo”. Assim, algum tempo depois, encontramo-lo feito companheiro de cela de outro prisioneiro de Miranda do Douro: o médico António Fernandes.