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NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Henrique Rodrigues Gabriel (c. 1671 – antes de 1740)

A família Gabriel, de Bragança, começa com o curtidor Henrique Rodrigues e sua mulher Brites Fernandes. (1) Tiveram 3 filhos, mercadores de profissão e 2 filhas, ambas casadas com curtidores. Entre os netos (e foram muitos) predominavam os fabricantes de seda, letrados e rendeiros e também um padre. (2) E esta é a norma entre os marranos de Trás-os-Montes, já que os pais sempre procuram para os filhos uma profissão mais digna, do ponto de vista social.
Um dos filhos foi batizado com o nome de António Rodrigues Gabriel mas ficou mais conhecido pela alcunha de Cachicão. Casou em primeiras núpcias, com Luísa Nunes que lhe deu dois filhos e faleceu nova. Da segunda mulher, Isabel Rodrigues, (3) teria o Cachicão prole mais numerosa.
Um dos filhos de António Cachicão e Luísa Nunes chamou-se Henrique Rodrigues Gabriel e é o nosso biografado de hoje. Nasceu em Bragança, por 1671 e nesta cidade viveu, com exceção de um curto período em que foi para Madrid em viagem de negócios de seu pai e antes de casar com Beatriz Nunes de Castro. (4)
Definir a sua profissão é mais complicado, pois “pegava a tudo”. Assim o encontramos como rendeiro da comenda de Santiago de Coelhoso. Interessante: para a cobrança das rendas da comenda estabeleceu uma parceria com Henrique Novais da Costa que era rendeiro da comenda de S. Pedro dos Sarracenos. Os mesmos homens faziam o trabalho conjunto, certamente com menos despesa e mais lucro.
Pelo ano de 1708 tinha o réu uns 500 alqueires de cereal na tulha. E sendo assentistas na província de Trás-os-Montes os irmãos José e Manuel da Costa Vila Real, estes lhe tomaram o dito cereal para alimento das tropas. E correndo nesse ano o alqueire a 400 réis, eles só lho pagaram no ano seguinte e a um preço muito inferior.
Encontramo-lo também como mercador e de produtos os mais diversos. Em certa ocasião, um tal Jorge Pessanha, morador na cidade do Porto, ter-lhe-á encomendado uma parelha de mulas. E, uma vez que ele ia ao Porto levar as mulas, combinou com um tio paterno que ali morava e “comerciava por grosso” que lhe arranjasse umas caixas de açúcar para vender em Bragança. Pensava pagar o açúcar com o dinheiro das mulas. Porém, o dito comprador não gostou das mulas (ou do preço) e não ficou com elas. Como não tinha dinheiro para pagar o açúcar... voltou de mãos a abanar pois o tio José Rodrigues Gabriel não lho deu fiado... (5)
Porém, o tio não seria o único fornecedor de açúcar, pois que, na sua relação de bens, ficou registada uma dívida de 200 mil réis ao mercador portuense Manuel Álvares Fernandes, procedida de fornecimentos daquele produto. Tal como ficou registada a dívida de 82 mil 320 réis a Belchior Rios, da cidade de Guimarães que lhe forneceu “caixas de doce para vender”.
Mas a profissão de que ele se orgulhava era a de alferes da companhia de ordenanças da cidade de Bragança. E deste ponto de vista, pensamos que o seu processo é deveras importante e deve ser tido em conta pelos estudiosos da sociedade brigantina daqueles anos e da vida “policial” da cidade. É que, sendo o policiamento feito por “quadrilheiros” das “ordenanças”, uma das responsabilidades do alferes Gabriel era assegurar a manutenção de um posto de sentinela no “Principal”. E tanto quanto parece, as guardas eram feitas por gente da nação.
Deveremos concluir que, sendo a rua Direita maioritariamente habitada por hebreus, também a estes competia estar de sentinela nesta parte da cidade, enquanto a tropa regular vigiava a “vila” e o castelo?
Certamente que o posto de alferes lhe dava autoridade e prestígio social, a ponto de ele ter mandado fazer uma pera de prata para encimar a haste da “bandeira de alferes” ao ourives António Mendes. (6) Mas também lhe trazia aborrecimentos e desavenças. Como foi o caso de José Henriques Mendes, aliás, Moisés Mendes Pereira (7) que “fugia e largava o posto de vigia e ele o foi buscar a casa, de onde fugiu e se acoitou no hospital real”.
A outros que abandonavam o posto, ele os mandava prender e com Afonso de Valença, o caso foi mais sério. Este era sargento da mesma companhia e, possivelmente, aspirava subir ao posto de alferes, ocupado por aquele. Para o conseguir, precisava que fosse demitido, o que apenas estaria nas mãos do Governador militar. Assim, o Valença terá ido meter intrigas e empenhos ao Governador dizendo que o alferes Gabriel não conseguia gente para assegurar o serviço de sentinela da praça, que muitas vezes ficava abandonado. Resultou daí que os dois andaram às cutiladas e Afonso de Valença foi parar à prisão.
Porém, o dever das ordenanças não se limitava à ocupação do posto de vigia e guarda da cidade. Eles eram também soldados e tinham de estar preparados. Até por que as invasões castelhanas de 1710 estavam ainda bem vivas na memória de todos. Daí que o principal trabalho do alferes de ordenanças seria o recrutamento e treino dos ordenanças que, embora voluntários (à força), não deixavam de ser soldados. E muitos se queixavam que Gabriel os metia de soldados para se vingar. Por vezes, os mancebos escapavam ao recrutamento oferecendo cavalos para o serviço da tropa.
A fama das sedas de Bragança corria mundo e o mercador Gabriel não podia alhear-se de negócio tão rentável. Não sabemos se tinha produção própria de sirgo ou se compraria a seda em bruto. Sabemos é que ele a mandava tecer e debanar e muitas vezes se queixava que lhe roubavam nas teias de seda ou lhas deixavam “sujas de goma” ou “cheias de azeite” o que gerava frequentes queixas e inimizades. A dois desses tecelões lançaria em cara o argumento final: - Se queriam mais roubar que fossem à serra Morena!
Obviamente que todas estas e outras muitas inimizades surgidas com os seus correligionários (todos eles igualmente presos pela inquisição e seus denunciantes prováveis) foram bem aproveitadas por Henrique Gabriel para se defender das culpas de judaísmo que lhe imputavam as quase 3 dezenas de testemunhas, quando se viu encarcerado nas masmorras da inquisição de Coimbra onde deu entrada em 19 de Novembro de 1714 e onde permaneceu quase 4 anos.
Tal como aproveitou o facto de Pedro Rodrigues Carvalho, seu companheiro de cárcere, lhe ter partido o cântaro da água, para o nomear como inimigo capital e desvalorizar o seu testemunho. E a inimizade ter-se-á agravado quando o mesmo companheiro lhe deu com “uma ratoeira de cepo” na testa “e sem dúvida o matava se a ratoeira não quebrara”.
Para além da desvalorização das culpas que lhe imputavam, mostrando que elas eram fruto de vinganças mesquinhas e não do amor à verdade e à religião católica, Henrique Rodrigues Gabriel conseguiu que 4 padres de Bragança, entre eles o rev. António de Távora, prestassem testemunhos muito abonatórios da sua cristandade, perante o comissário Dr. Manuel Camelo de Morais. Acabou, assim, por ser condenado em pena relativamente leve: cárcere e hábito a arbítrio dos inquisidores.

NOTAS E BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 4902, de Brites Fernandes.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 2894, pe Francisco Mendes Gabriel.
3-Ficando viúva, Isabel Rodrigues entrou para o convento de Santa Clara em 1699.
4-IDEM, inq. Coimbra, pº 10487, de Henrique Rodrigues Gabriel; pº 7832, Beatriz Nunes de Castro.
5-IDEM, inq. Lisboa, pº 11679, de José Rodrigues Gabriel. Vivendo no Porto, foi apresentar-se voluntariamente na inquisição de Lisboa onde contou que, quando foi a Roma buscar a bula papal para poder casar com uma prima carnal, passou por Livorno onde permaneceu algum tempo. Ali, em casa de Gabriel de Medina, fez-se circuncidar, pois aquele lhe disse que “para viver com perfeição na lei de Moisés” deveria circuncidar-se. Sobre Gabriel de Medina, ver: ANDRADE e GUIMARÃES – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Vega, Lisboa, 2009.
6-IDEM, inq. Coimbra, pº 180, de António Mendes.
7-IDEM, inq. Lisboa, pº 4939, de Moisés Mendes Pereira.

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

Este Novembro de todos os Santos

Neste mês de Novembro repetimos as emoções, como se um chamamento vindo da eternidade nos obrigasse a revisitar temas banais, mas, que para nós, são duma infinda importância.
Há pouco chegamos a casa, acendemos a lareira, amiga de mil Invernos. A ruralidade do nosso espaço aldeão é profanada pelo espavento dum computador onde demoradamente escrevemos pedaços de vida, coisas sem importância, ou então, intervenções que em nada mudarão o mundo, mas que pelo menos nos devolvem o sonho de podermos tornar a humanidade um pouco melhor e mais fraterna.
   E nós aqui estamos, à volta com este mês de Novembro, mergulhando na intimidade das nossas recordações, efémeras, vindas dum passado onde a morte era tão-somente um acontecimento que tinha lugar na casa dos outros e levava os idosos para um céu feito de algodão em rama e coisas doces. Um dia, a gata branca foi triturada pela camioneta do correio e pela primeira vez sentimos a morte como um acontecimento injusto e tremendamente trágico. Crescemos e a morte entrou várias vezes em nossa casa deixando este frio de Novembro à beira do escano onde o pai construía mundos no contar de contas fantásticas, mas que terminavam sempre em paz e em beleza. 
Este ano, no dia de todos os Santos, bem cedo, para evitar o choro teatralizado, com frases ouvidas desde sempre e nos chocam, fomos visitar os nossos Santos que repousam em campa rasa no cemitério Bragançano. Os cemitérios são tragicamente taciturnos e o de Bragança encheu desmesuradamente. Um novo cemitério foi construído, igual a quase todos os cemitérios portugueses. Sem dúvida que todos os cemitérios são profundamente tristes, mas poderiam ser mais humanizados, como um jardim, com muita relva, com árvores, com bancos para os vivos repousarem na proximidade e na companhia daqueles que partiram e somente nos deixaram esta solidão enorme.
Continuamos esta romagem a Novembro pelas terras da Lombada onde ainda se acende o magnífico lume de Todos os Santos. Reza-se pelos mortos, o sino toca a finados e no entretém da longa vigia assam-se sardinhas, ou na sua ausência, o frango caseiro e tudo pela alma daqueles que Deus já lá tem.
E já agora, descendo um pouco à terra dos vivos, ouvimos dizer que o Primeiro-ministro, em breve, visitará o Nordeste. Uma boa notícia, pois a sua ausência, por estas terras, já se nota, passado um ano no cargo.
Também o Partido Socialista inaugurou uma nova sede, abandonando o histórico mas decrépito edifício, da Rua Abílio Beça que timidamente ostentou na fachada, durante muitos anos, uma singela placa de acrílico com o logotipo do Partido Socialista. Pois, o PS, abriu uma nova sede, ainda bem, era urgente que tal acontecesse, os tempos mudaram, as dinâmicas são outras. Mas essa sede, na linha dessa nova dinâmica, ostenta uma nova e imponente imagem de marqueting, com uma publicidade partidária bem visível, talvez para contrair algum pessimismo que a crise veio para ficar.
E assim, depois desta duas breves notas, regressamos ao tema da morte que seria tão-somente o absurdo se as Religiões não nos conferissem o dom da fé e a aceitação da transcendência que devolve a dignidade à tragédia do fim.
Mas esta é a nossa contradição, a morte só é verdadeiramente trágica se andar por perto e muitas vezes esquecemos, como por exemplo na Síria, que a morte entrou em quase todas as casas, dizimou famílias inteiras, semeou o caos e a dor. 
E pronto, o lume apagou-se, John Donne está por perto com este recado que nos causa um enorme desassossego: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”

Vendavais - O nome das coisas

Não sei, mas possivelmente a palavra “coisa/s” deve ser a que mais usada é na língua portuguesa para nos referirmos a tudo e a nada, especialmente em ocasiões onde a necessidade de nos expressarmos rapidamente falha a expressão conveniente e lá teremos de chamar a “coisa”. Deste modo, todas coisas são coisas e qualquer coisa é uma outra coisa qualquer.
Mas a verdade é que seja qual foi a coisa a que nos queremos referir, o melhor mesmo é chamá-la pelo nome e mesmo quando não nos lembramos dele, fazer um esforço de memória para que ele surja. Mas não é fácil. Tentar não custa! E não adianta rodear o assunto invocando “aquela coisa” uma série de vezes à espera que outra pessoa pronuncie o nome e nos livre de termos sido nós a chamar pelo nome o que deve ser chamado pelo nome. Enfim! Felizmente ainda há quem chame os bois pelo nome.
Todos sabemos o que é a Caixa Geral de Depósitos. Todos sabemos que é um Banco público. O maior Banco público nacional. Todos sabemos que tem uma nova administração que está a dar que falar e muito. Tanto que está a pôr em perigo não só a sua própria credibilidade como a de toda a banca portuguesa e do governo. Todos sabemos que a culpa de toda esta celeuma é a teimosia do novo administrador não querer declarar os seus rendimentos. Todos sabemos que isso “cheira muito mal”. Pois é.
Quando se advogam razões para que tal não se faça, temos de invocar outras que contradigam aquelas e até referir o porquê de elas existirem numa instituição pública que quer ser diferente de todas as outras instituições públicas. Quero eu dizer com isto que o facto de se querer justificar a atitude do senhor administrador com uma legislação que permite ou torna legal a ocultação dos seus rendimentos, não deveria existir pois não se compreende que um banco público não seja objecto de igual legislação que os outros ou tenha de ser diferente. Se todos são “obrigados” a declarar os seus rendimentos em situações análogas, por que razões o administrador da Caixa não é ou não pode ser sujeito ao mesmo procedimento? Que “coisas” haverá por trás de toda esta complicação que tanto impedem o administrador de cumprir o que se lhe exige e continuar a bater o pé, como se de uma birra de garotos se tratasse? Ora como diz o povo e com razão, quem não deve não teme e sendo assim, o senhor administrador, se nada teme, que declare os seus rendimentos e os torne públicos, já que está numa instituição pública e que a todos nós diz respeito. E não adianta o ministro das finanças reclamar de sua justiça, porque ele é um dos culpados de tal situação. O mesmo se passa com todo o governo ao querer defender o indefensável. Não sei se isto tem um nome mais apropriado. Digam vocês. Experimentem, mas não recorram à “coisa”.
No meio de tanta hipocrisia lá apareceu alguém com vontade de esclarecer todas estas “coisas” e adiantou que o melhor mesmo é o senhor administrador declarar os seus rendimentos. Bom Marcelo. É assim que se exprime um Presidente da República. Com verdade e pondo o nome nas coisas. Sempre quero ver o que é que ele vai fazer agora. Como ameaçou que se ia embora se o obrigassem a declarar os seus rendimentos, pode ser que o faça perante esta sugestão presidencial. Caso o não faça, o governo deveria ter a coragem de o demitir do cargo e ir saber que “coisas” estão a impedir que o senhor não cumpra o que lhe pedem ao mesmo tempo que o impedem de ganhar mil euros por dia, ou seja 30 mil por mês, ou seja quase meio milhão por ano. Quem assim faz e corre risco de não receber tal salário, é porque tem muitos outros rendimentos e não precisa de mais. Haja coragem de pôr o nome nas coisas e de dizer o que se passa afinal com este senhor. É assim tão importante e tão brilhante e indispensável na Caixa? Não haverá mais ninguém que não tenha segredos e não queira ocultar certas “coisas” como os seus rendimentos? Certamente que haverá. Ainda temos gente séria neste país e com vontade de ganhar um bom salário. Acabemos com as hipocrisias e já agora com os salários chorudos num país que passa os dias a contar tostões para pagar milhões a quem não deve.

As Castanhas - Para a Maria do Loreto

Bem alinhadas, reluzentes quais unhas envernizadas, as castanhas, de castanho vestidas, exibiam-se no Festival Nacional de Gastronomia, ocorrido em Santarém. Perguntei sobre a sua procedência. De Marvão, respondeu a Menina. Da memória brotaram memórias do brilho das castanhas apanhadas por meninas e mulheres nos soutos de Bragança e Vinhais, debaixo da luz clemente das manhãs frias a anunciarem o Inverno.
A evocação rebentou-me ao modo das castanhas grávidas de ar interior, puxadas à parição pelo fogo vivo, infiltrado nos assadores, aspergindo os pedaços ao modo de gotas do orvalho gelado na face das destras pesquisadoras dos frutos no emaranhado das folhas e nas rachas dos ouriços.
Naqueles soutos pisados e repisados de Lagarelhos, de Vilar de Ossos, nos soutos passeados das cercanias de Bragança, vi mãos de dedos gretados, vi dedos protegidos até ao meio por luvas grosseiras de lã fiada enquanto os meninos jogavam à arrebunhana, tais dedos laboriosos enchiam cestas e sacas dos frutos pingados a cadência marcial pelos majestáticos castanheiros. Vi!
Entrei inúmeras vezes me apeteceu no ventre da castanheira de Lagarelhos, vozes marotas acusaram-me de em sociedade com o Arménio ter acendido nessa ampla barriga um lume apagado de imediato devido à vigilância de vizinha desconfiada, conhecedora das nossas proezas traquinas. Só ouvimos ralhos e imprecações.
Atropelo recordações no aprazível esparzimento da ternura antiga dos magustos, dos caldos finos, adocicados das castanhas cerceadas, piladas, dos caldos grossos inçados de couves, batatas e chicha gorda comida em cima de pão centeio.
As cozidas com a casca, depois esmagadas por garfos de ferro, comida gulosamente no final da ceia, derivaram em criação de pastelaria fina, parideira da delicadeza baptizada em francês, marron glacé assim se chama, segundo consta os mordomos servem-na às senhoras, mesmo no interior de automóveis luxuosos.
Durante séculos as castanhas ajudaram a matar a fome interior, quase endémica, das comunidades rurais de grande parte de Portugal, a doença da tinta, qual virulenta tinha, apagou da face da terra milhares de castanheiros, ficaram os topónimos: Castanheira dali e de acolá, do Ribatejo, de Pera, Castanheiro de muitos sítios, do Norte, Souto, de fora e da Casa, Soutos, Soutelo, Soutelinho da Raia a delimitar fronteiras. Os meninos bem podiam aprender geografia e tantos saberes mais se lhe ensinassem o ciclo de vida dos castanheiros.
Nomeio Opiano por íntima obrigação, ele, Teofrasto e Ateneu ensinaram-me a ver as árvores tutelares da Terra Fria transmontana, a ficar feliz observando-as recuando o registo até às manhãs de cortinas fechadas de cenceno, até às madrugadas finas de Janeiro, chorosas, de fim de férias, no ir apanhar a careira do Sr. Jerónimo.
O exercício memorialístico é tal como o vento, invisível, intenso, longe da suavidade da brisa, as quentes e boas da canção aquecem as mãos dos turistas a gozarem o verão de S. Martinho na baixa de Lisboa, no tropel apressado bamboleiam máquinas fotográficas, quais achas de guerra dos bárbaros de Átila, a vou roufenha de uma mulher ensina-me: as castanhas são do Norte. O Norte não é Trás-os-Montes respondo a mim mesmo lembrando a ironia de Afonso Praça, do Felgar. Tenho de estar com o Rogério Rodrigues a fim de comermos castanhas e bebermos vinho tinto saudando o Afonso, saudando-nos prazenteiramente.
As castanhas são fruto cumpridor das quatro estações, os chefes de cozinha do estrelato Michelin andam a tecer hossanas e louvores aos produtos da sazão, desde Tóquio (197 estrelas) a Lisboa (vai receber mais), passando por Nova Iorque, São Paulo, Londres, Modena, Roma e Paris (o ancestral umbigo culinário), todos gritam a preferência.
Estes famosos chefes para sorte deles nunca tiveram de comer apenas aquilo que a horta dava, as frutas temporãs e do tempo, as gorduras depositadas na salgadeira e dos potes de unto, e…as providenciais castanhas.
A carta de comeres exclusivamente centrada na castanha desde tempos imemoriais documentados até aos nossos dias, incluindo as especificidades de regozijo está por fazer, não advirá mal ao Mundo se nunca for construída, a herança cultural dos nordestinos fica diminuída. Nada mais. Paciência. A verdade manda dizer: já ficou tantas vezes!
Virá o vento, trará frigidez, cairão as últimas castanhas da estação. Quem irá ao rebusco? Talvez apanhe a ignorância enlaçada no desdém pelo passado. Nunca se sabe!

Olhar para trás

Uma voltinha à aldeia, onde atualmente o sol já se deita muito mais cedo, permanecendo o seu brilho um pouco mais tarde na torre da igreja. Não é uma aldeia deserta mas desertificada. A maior parte das persianas encontram-se fechadas dia e noite.
Olhar para trás de si, qualquer que seja a estação do ano, é contemplar, pelo pensamento, um cemitério cada vez mais vasto onde se levantam silenciosamente as silhuetas dos “nossos defuntos”. É repensar na geração dos nossos pais e dos que foram seus contemporâneos. Mas é cada vez mais, com o passar dos anos, compreender que os mortos de hoje são os nossos contemporâneos, aqueles com quem trabalhámos, caminhámos, convivemos, amámos. Estes rostos obsessivos, que já não passam muitas vezes de fotos armazenadas nos computadores, investem-nos e habitam-nos neste período de luz, cor e perfume de outono. Falam-nos da nossa vida em comum, das paixões partilhadas, do clima dos anos anteriores. Das dificuldades ultrapassadas em comum.
Os mortos são os nossos próximos bem definidos. A partir do momento em que partiram, num estúpido dia de agosto por exemplo, vivem e habitam na nossa memória viva onde se instalaram com direito a tiragem permanente. Nunca os afastaremos e como? Se contaram nas nossas vidas, que continuem a fazê-lo depois da morte. São um recurso permanente para nos ajudar a enfrentar, aguentar e transportar os dias: um casal defunto ou um amigo desaparecido nunca concluíram o seu trabalho dentro de nós mesmos. É como se olhassem por nós, com as suas vozes audíveis, os seus sorrisos perpetuados e a sábia forma de nos aconselhar a relativizar as nossas preocupações.
Ficamos contudo perante uma prova que nada tem a ver com a festa americana que não faz mais do que maquilhar a realidade e o medo. A nossa perspectiva é magnífica, mas aleatória. Nos cemitérios todas as inscrições garantem que os nossos familiares (ou desconhecidos) “descansam aqui à espera da ressurreição”. Esta aposta em forma de afirmação encontra-se no coração da mensagem cristã. Perturbante, apesar de tudo, um tal pressuposto. Difícil de atravessar este mistério. Nada se encontra verificado. Mais ainda; ignoramos completamente a forma como poderiam acontecer as coisas no dia em que essa promessa surgiria. Não conhecemos nem a forma, nem o momento dessa reaparição que vai até ao reencontro do corpo! O nosso corpo com que idade? E em que estado? Não o corpo sofredor dos sofredores, seria um castigo injusto, eterno.
“Transfigurados”, respondem os teólogos desde há séculos. Mas da transfiguração em questão não temos qualquer ideia, qualquer representação. Seria uma “alma” revestida de atributos? Um espírito com uma ancoragem carnal mínima ? Uma forma vaga envolvida por uma tal luz em que nenhum pormenor seria percetível nem necessário? Este mistério faz balançar o nosso imaginário, e deixa-nos no turbilhão do incerto e do improvável. Faz rir às gargalhadas os que não crêem nem em Deus nem no diabo.   
Porém, esta famosa “ressurreição” prometida, porquê esperá-la? Porquê colocar-se numa fila de espera que não levará a nada, nada ao fundo? Para quê, sobretudo, suportar as provas que, no fim da vida, se acumulam tão cruelmente? É preciso consentir ao desconhecimento desta espera e dar sentido aos sofrimentos retirando-lhes a carga de puro escândalo. E admitir que esta espera do desconhecido é a nossa única possibilidade de nutrir a bela virtude da esperança. Loucura, finalmente, esta esperança. Loucura sem provas estabelecidas, sem verificação científica ou experimental, triturada dolorosamente com a razão.
Contudo é talvez o que faz a sua força, esta loucura consentida.

Bragança reclama título de Capital da Castanha

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Qui, 03/11/2016 - 11:38


Bragança vai a partir de agora adoptar o título de capital da castanha. O presidente do município, Hernâni Dias, reclamou para Bragança este estatuto na Norcaça, Norpesca e Norcastanha, já que o concelho é o maior produtor deste fruto seco no país.