Reconciliar-se
É uma palavra sinal dos tempos, uma palavra difícil hoje nas trevas dos conflitos, das guerras, das tragédias sangrentas, mas também entre todos nós, nas diversas comunidades que formamos. O Santo Papa, Paulo VI, em 1975, exortava a juventude – com quem ele tinha uma relação muito próxima- a trazer esta palavra “para o vocabulário das (suas) esperanças”. O vocábulo em questão, reconciliação, significa literalmente “unir-se novamente”. Poderemos nós unir-nos novamente, após uma dilaceração, depois do abismo do rebaixamento, duma raiva cega, e agindo sobre a nossa própria violência e a violência do outro? Não é certo, na minha opinião, que a reconciliação seja uma simples reparação, um ato que nos reconduza a uma mesma situação anterior. Pelo contrário, deve ser entendido que a reconciliação abre algo novo na relação. Transforma mais do que restaura. (Pode ser banal, mas tenho como prática procurar a etimologia da palavra – e a diacronia - pois permite-nos encontrar a carga histórica que transporta o vocábulo); a raiz grega do verbo katallassó (termo eminentemente paulino), que se traduz por reconciliar, evoca uma mudança, um “tornar-se outro”, um “fazer diferente”. A reconciliação transforma as partes presentes e faz com que o próprio relacionamento evolua. Reconciliar significa fazer diferente, criar surpresa e algo novo. Reconciliar significa fazer diferente, criar surpresa e algo novo ou inédito. A reconciliação não pode, portanto, significar apenas o regresso à situação anterior ao conflito, à violência - situação em que as sementes desta violência eram vistas com mais frequência. Rejeito também a ideia romântica duma reconciliação que traria harmonia ou equilíbrio de forças opostas, numa espécie de dialética hegeliana. Não, a reconciliação só é possível reconhecendo o nosso desequilíbrio, as nossas fraquezas, e é também, ainda mais misteriosamente, concordar em unir-nos confiando e estribando-nos nas nossas feridas e nas nossas amarguras. No trauma da violência sofrida e exercida. Aquilo que o filósofo checo Jan Patocka (um dos mais importantes contribuintes da Fenomenologia e da Filosofia na Europa Central do século XX) magnificamente chamou de “a solidariedade dos abalados”. Nas trincheiras da guerra, os combatentes vivenciam uma “transmutação de todos os valores sob o signo da força”, a tal ponto que alguns encontraram uma forma de superá-la. Solidariedade daqueles que entendem que, levados pela violência, esta violência foi-os dominando e fez-lhes perder tudo. “A solidariedade dos abalados constrói-se na perseguição e nas incertezas: esta é a sua frente silenciosa, sem propaganda e sem brilho.» No campo de batalha, escreve Patocka, “o inimigo é aquele com quem podemos chegar a um en- tendimento na oposição, nosso cúmplice na agitação do dia, da paz e da vida” (Ensaios heréticos, cujo interessante prefácio é do Sociolinguista e amigo francês Paul Ricoeur). Se houver reconciliação, ela só pode vir deste abalo das consciências. Perante o desencadeamento da violência, a nossa e a dos outros, como é que podemos trabalhar para uma possível reconciliação? Esta questão está bem presente, bem à frente dos nossos olhos. Deveríamos testemunhar “o avanço da vida durante a noite”, para usar outra expressão de Patocka. A reconciliação não deve querer restaurar, entre as ruínas, os escombros do passado, mas inventar, encontrar o que resta, apesar do conflito, duma promessa não cumprida, um instrumento perdido na empreitada para recomeçar tudo de novo. Na linguagem cristã, a reconciliação é uma graça. Ou seja, uma resposta inédita a um pedido impossível, que não sabíamos, ou não queríamos, poder formular.