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Há 69 anos a tocar na gaita

Ter, 05/11/2019 - 10:28


Como estão os leitores da página do Tio João? Nós cá vamos em maré de aniversário dos 30 anos.

São cada vez mais aqueles que, participando nas emissões, querem mostrar o seu contentamento pela longevidade do nosso programa. Também são muitos os ouvintes antigos, do início do programa, que tinham estado calados mas, como o bom filho a casa torna, têm aproveitado a data para recordar como era a sua vida há 30 anos.

Conhecer a Psoríase

Quais os tipos?

- Psoríase em placas ou psoriases vulgaris, representa a grande maioria dos casos de psoríase. Carateriza-se pelo aparecimento de placas elevadas e avermelhadas na pele cobertas de uma área esbranquiçada ou prateada (que correspondem a células da pele mortas) que podem doer e até sangrar. As lesões podem atingir qualquer área do corpo, embora sejam mais comuns no couro cabeludo, região lombar (fundo das costas), cotovelos e joelhos.

Vendavais - Galinha gorda por… muito dinheiro

Conversávamos despretenciosamente um com o outro, ele dizendo que nem por isso e eu teimando que seria demasiado. Levantámo-nos e iniciámos uma marcha lenta onde a conversa continuou sobre o mesmo tema. Ele na sua e eu na minha, sem desviarmos a certeza inicial que cada um tinha sobre o tema versado. Caminhámos sem destino pelo passeio que a cada passo se estreitava e causava os incómodos de pisar o alcatrão onde os automóveis passavam sem a preocupação de distinguir se a passadeira existia por ali ou não. Apesar de tudo, o assunto em debate continuava a ser o mesmo. O meu amigo fazia valer as suas visões sobre o que se passava e eu contrapunha com as minhas. Nenhum desmarcava. Passou talvez mais de uma hora. Resolvemos parar e sentarmo-nos novamente ocupando uma mesa de esplanada que recebia o Sol do fim de tarde. Era tempo para um café, ou talvez não.

Retomámos o assunto em debate depois de saborearmos o apetitoso e bem cheiroso café. Agora, reconfortados, talvez pudéssemos desviar o assunto para margens mais calmas. Não. O meu amigo não estava satisfeito com a minha posição e tentou convencer-me de que tinha toda a razão. Eu achava que não e tinha o meu direito de o defender. Teimava eu convictamente que o novo governo era demasiado grande para um país tão pequeno e ele continuou a rebater o contrário, aduzindo que a necessidade assim o impunha. Mas que necessidade? Pedi-lhe que me dissesse que necessidade impunha a um país como o nosso, um governo com tantos ministérios. Ele adiantou uns poucos, sem coerência política o que me facilitou a contradição imediata que ele continuou a não aceitar. Continuámos o debate.

Afinal, que não quer galinha gorda por pouco dinheiro, questionei. Todos, respondeu ele. Finalmente tínhamos chegado a um consenso. Claro que sim. Mas era um consenso que não servia para explicar o que estava em debate e me permitiu rebater. Então o que temos no governo é uma galinha gorda, mas por muito dinheiro, ou não será? Ele apressou-se a responder que não, que isso nada tinha a ver com o governo, que era só um modo de falar. Pois é. Falar, falar é o que todos fazem, disse eu. Este governo é uma galinha gorda, primeiro ponto. Ele pediu que eu justificasse e aduzi o facto dos dezanove ministérios e quase cinquenta secretarias de estado. Não gostou, nem ficou satisfeito. Sentiu-se incomodado. Aproveitei para reforçar a ideia das cinquenta secretarias de estado e questionei que razão justificava a existência de uma secretaria para o Cinema, Audiovisual e Média ou para a Internacionalização ou até para a Integração e para as Migrações se, no fundo, isto já estava atribuído a outros serviços e funcionavam adequadamente. É uma necessidade, respondeu. Assim funciona tudo melhor. Pois, se calhar não, respondi, mas mesmo que fosse mais funcional era com toda a certeza mais caro, muito mais caro. Continuei com a minha visão mais minimalista e pedi para me justificar a razão de uma secretaria para a Transição Digital. Transição Digital? O que é isto? Não me soube dizer. Talvez a necessidade de engordar a galinha, disse eu. Olhou-me de soslaio e o esgar do rosto disse tudo o que ele pensava.

O tempo ia passando sem nos apercebermos. Contudo o tema de conversa continuava o mesmo. Ele defendendo a sua dama e eu a minha. Os dois aduzíamos razões plausíveis que sustentavam minimamente as nossas visões egocêntricas. Talvez fosse uma questão de cidadania e igualdade, tal como a nova secretaria de estado à qual eu não achava graça nenhuma por não lhe encontrar justificação. Afinal todos somos cidadãos e a igualdade já é assim considerada desde a Grécia antiga e reforçada ao longo dos séculos e foi uma das causas das revoluções liberais mais recentemente. Refutou a minha justificação, mas não acrescentou mais nada. No intervalo em que ele nada disse, eu chamei-lhe a atenção para o facto da existência da secretaria para o Desenvolvimento Regional e outra para a Valorização do Interior. Então não chegava uma só? É uma necessidade e é mais funcional, retorquiu. Não, não é. Se queremos desenvolver e valorizar o interior ao mesmo tempo que as regiões, não é preciso duplicar, a não ser para engordar a galinha. E ainda acrescentar outra para a Descentralização e Administração Local, piora tudo. Assim é quase triplicar o mesmo serviço. Não é, respondeu ele. E eu que sim e ele que não. Mas afinal o interior não é sempre interior? A região não é sempre a região? Então a administração local não é na região? Na região não está o objetivo do desenvolvimento? Então para quê a descentralização se o interesse é desenvolver o interior e as regiões? Não conseguiu responder. Baralhou-se. Então? Não dizes nada, perguntei. Esta conversa não leva a lado nenhum, disse. Pois não, concordei. Afinal sempre tenho razão, disse eu. Isto não é mais do que uma galinha gorda, mas por muito dinheiro. Mais do que o que temos para o que mais necessitamos. Galinhas destas, ninguém compra.

O húmus poético de Fernando de Castro Branco, em Alquimia das Constelações

«A praça escurece de um excesso de luz / e ele hesita entre os simulacros da sobra.»

(Fernando de Castro Branco, 2005:13)

 

«O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos.»

Sophia, Arte Poética II

 

Fernando de Castro Branco nasceu em Duas Igrejas, Miranda do Douro, em 1959. É doutorado pela Universidade do Porto em Literaturas e Culturas Românicas.

É poeta, ensaísta e professor. A sua obra é vasta e reparte-se por vários géneros, sendo um pio sacerdote de Calíope. Em poesia, publicou os seguintes títulos: Alquimia das Constelações, Lisboa, Roma Editora, 2005; O Nome dos Mortos, Vila Nova de Famalicão, Atelier de Produção Cultural, 2006; Biografia das Sombras, Vila Nova de Famalicão, Atelier de Produção Cultural, 2006; Estrelas Mínimas, Amarante, Editora Labirinto, 2007; Plantas Hidropónicas, Cosmorama Edições, Maia, 2007; Marcas de Verões Partidos, in A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; Arte do Espaço, in A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; Assinatura Irreconhecível, Cosmorama Edições, Maia, 2010; A Caminho de Avoriaz, Cosmorama Edições, Maia, 2011; Carta a Mim Mesmo, Cosmorama Edições, Maia, 2016; Desde Portugal, Cosmorama Edições, Maia, 2016.

Saliente-se a dúzia de obras poéticas que o autor já deu à estampa, apesar de ter começado a publicar tardiamente aos (46 anos), em 2005. Desde esse lapso temporal, tem publicado a um ritmo avassalador, acentuando a profusão que mana do filão inesgotável que nutre a sua poesia. A sua obra poética está, também, representada em diversas antologias de âmbito nacional e internacional e espalhada por outras publicações dispersas.

O poeta cultiva, ainda, a ensaística, sendo especialista em Albano Martins. Sobre este autor, publicou o ensaio Poética do Sensível em Albano Martins, Lisboa, Roma Editora, 2004. O rol de revistas em que o ensaísta escreve é considerável, por esse motivo, permito-me, apenas, referir: Colóquio/Letras, Revista da Universidade de Turim, Teia Literária e O Escritor.

Este ensaio tem o desiderato de apresentar ao leitor, sem preocupações demasiado herméticas, uma ‘iluminação’ desta obra assinalável a vários títulos, pois o escopo deste texto é despertar nos leitores o gosto pela fruição da poética deste escritor trasmontano, porque «O acto crítico, precisamente para poder seu uma iluminação, como afirma T. S. Eliot, não pode ser, todavia, uma abstração e não pode, diremos nós, ser uma reiteração do que outros, de outro modo, disseram já» (Cortez, 2019:15). Para a consecução deste propósito, focar-me-ei no livro de estreia do autor Alquimia das Constelações (2005), onde já são visíveis as linhas temáticas que enformarão a sua poética.

 

A obra com que o poeta Mirandês se apresentou ao público abre com dois paratextos relevantes para a sua descodificação. A dedicatória à mãe, à esposa e aos filhos, primeiros inspiradores e destinatários dos seus poemas, reforça os laços de sangue e a progénie familiar; as três epigrafes realçam as genealogias literárias, traves mestras da formação poética de Fernando de Castro Branco. A de Ruy Belo remete o leitor para o pendor narrativo e para o poema de fôlego que vai encontrar, realçando também a importância da escrita para ambos os poetas, «Escrever-te é a maneira de te ter presente». A de Álvaro de Campos acentua a matriz moderna da lírica do autor de Desde Portugal, na senda do heterónimo pessoano. A de Stéphane Mallarmé liga-se à musicalidade e à espontaneidade da composição poética.

Alquimia das Constelações é uma obra estruturada em cinco andamentos. O primeiro que dá título à obra é composto por 38 poemas; no segundo «Lugares do Tempo» o leitor encontra 18 poemas sobre locais da geografia poética, emotiva e sentimental, do escritor, que se espraiam desde Duas Igrejas, sua terra natal, passam por Miranda, Bragança, Vila Real, Porto, Lisboa, desaguando em Portugal, no derradeiro poema deste andamento «À procura de um país» (2005:75). A memória com o seu poder de revigorar, em termos literários, o passado, está patente nos 7 poemas de «Voz Reminiscente». A metapoesia e a reflexão sobre o labor poético opera-se nas 10 composições do denotativo título «As Máquinas Poéticas». Nos últimos 8 poemas, subordinados ao antitético título «O Lado Azul da Tempestade», a voz poética vai-se progressivamente enfraquecendo até se tornar um simples murmúrio inaudível ao ouvido humano.

Omitindo as inferências que o polissémico título da obra possibilita já escalpelizadas por Albano Martins no texto citado de seguida. O autor domina com mestria o arsenal retórico, comparações com elementos naturais: «como troncos devorados lentamente / numa fogueira de inverno» (p.29) e encavalgamentos, na senda de Eugénio de Andrade: «Deixas as palavras florescer na penumbra / dos segredos e o silêncio não ocupa todo / o vazio desse lugar inerme. Na voz com / que te calas latejam os gestos nus, como / aves poisando no céu o voo integral» (p.20). A poética de Castro Branco é uma poética metafórica, figura inerente ao processo poético, como argutamente notou Albano Martins: «José Fernando de Castro Branco é, além de um cultor de formas e ritmos variados, um exímio criador de metáforas. Metáforas são, pois, as sus “constelações”, metáfora é o seu processo de transformação alquímica do real em ouro poético» (2008:39).

As vozes da tradição lírica e literária são convocadas por Castro Branco para os seus poemas, estabelecendo-se um diálogo enriquecedor. Numa plêiade que vem dos gregos (Zenão e Epicuro), passa pelos latinos (Horácio e Ovídio), pela tradição bíblica, demora-se no renascimento (Camões) e no romantismo (Garrett), desaguando na modernidade e contemporaneidade (Baudelaire, Cesário, Pessanha, Pessoa, Drummond de Andrade, Ana Luísa Amaral…), pois a vida, na sémita de Horácio, eterniza-se na escrita e na leitura que o mundo venha a fazer das palavras escritas daqueles escritores que emudecem, mas não morrem.

Esta poesia escora-se na memória, uma vez que os poemas viajam pelo tempo passado recuperando os materiais concretos – as palavras – para resistir ao império da morte: «Lembro-me das manhãs, / ainda o frio morava nas pedras / e já nós ameaçávamos os pássaros / nos bosques / antes que o sol os acordasse / de luz» (p.80). Todo o poeta é um «pastor do ser», na formulação de Heidegger, sendo, por natureza, nostálgico de um tempo e uma unidade passadas e perdidas. Noutro poema do mesmo andamento lemos: «Lembro-me de uma primavera em que / o vento partiu os ramos tenros das roseiras, / e os pássaros se agitavam perdidos / no frio, debaixo do peso das nuvens, / sem saber o que fazer perante / o alarme interno da nidificação» (p.84). Aliás, a memória como pedra angular na poesia de Castro Branco foi, também, identificada por Albano Martins: «é na memória, que não na reminiscência, pontuada de transcendência e platonismo, que descobre a via de regresso ao passado. Com ele parte ao encontro dos seus paraísos perdidos, na tentativa de recuperação de lugares, imagens, sensações, perfumes, sabores, paisagens…» (2008:42).

O pendor reflexivo atravessa toda a obra, embora atinja o clímax no quarto andamento «As Máquinas Poéticas», associado às figurações do poeta. No poema «Esculpindo Manhãs» (30 versos para Albano Martins) o poeta identificando-se com o interlocutor, acaba por assumir-se como um vigia, um perseguidor e um artífice da palavra: «Vestes a inquietude do dia, e procuras / sem descanso um punhado de palavras / lúcidas, como quem procura uma gruta / para esconder o Sol. // Vigias o abismo discreto das palavras, os perfumes do som, a pele imponderável / do sentido, recolhes uma a uma as letras / com que cercas os ângulos, as pontas, / e com elas o canto das coisas treme / na madrugada, dentro dos olhos das aves. // E persegues a justa simetria das cordas, / o ponto exacto onde se cruzam / o silêncio e o discurso, a regra e a nublosa, / como se no vento das harpas e das cítaras» (p.23). Este belíssimo poema sobre o labor poético termina com duas singulares metáforas: «Agora o poema é uma pedra de sol, / um cometa de água e de sangue (…) // Procuras a lucidez das palavras / até à vertigem do poema» (p.24). Assim, ao poeta, esse procurador da lucidez das palavras, cabe a missão de fazer da poesia um passe de mágica de que todos estamos necessitados nestes tempos de indigência. Apresento, apenas, mais um exemplo do aturado labor poético do autor: «Por muito tempo desembrulhei a tarde / para encontrar o fio de um poema. Iluminei as árvores com a sombra / já distante do outono, instiguei ao voo / os pássaros poisados nas macieiras, / e antecipei por meses a primavera / para que rebentassem flores no inverno / e andorinhas montassem os seus ninhos / no bico do vento em pleno gelo» (p.90). Nestes versos está patente a figuração do poeta, um ser empenhado com o seu tempo, lutando com as palavras, para construir com elas realidades ‘surreais’ que possam acalentar a vida humana, pois o texto poético tenta, de forma contínua, perscrutar os sons do mundo, procurando fixar a realidade difusa do presente, único tempo que existe e a única certeza. O poeta é resiliente: «escreve-se o poema / contra as palavras, / e apesar das palavras» (p.38). Constata-se, assim, que escrever para Fernando de Castro Branco é sobreviver, ou reviver. Esta escrita, próxima dum realismo, à Cesário, escorada por uma linguagem que distende os versos, aproximando-os da narrativa, faz-se com precisão e mestria, onde se destila a dor Transmontana e Portuguesa, na senda de Alexandre O’Neil.

Na segunda estrofe da mesma composição, o poeta questiona o próprio poema, a poesia e todas as poéticas, com grande dose de ironia: «não vi chegar o poema que esperava, / mas estes vinte versos, / que embora nunca frequentem / os ambientes selectos das antologias, / me demonstrem claramente a / imponderabilidade do bucolismo / na construção de uma poética» (p.90).

Por último, uma breve referência ao tom disfórico e elegíaco da poesia do autor, consubstanciado, como já referi, num rumor triste, num silêncio dorido, sombrio, e, por vezes, pessimista, presente em versos como estes: «De vez em quando adormeces / em pleno dia / e ninguém chama por ti / e te diz, é tarde / e continuas quieto / ao sol» (p.43). Noutro poema onde há um diálogo intertextual com o Frei Luís de Sousa, que coadjuva a descodificação do poema, o desânimo do poeta vai mais longe: «Anoitece, repito, / e ninguém grita, ou se arremessa / da falésia, / nem drama nem tragédia / na comédia dos dias, / na farsa dentro dos ossos» (p.48). A passagem para o plural cristaliza o abandono a que o Nordeste Transmontano tem sido votado ao longo das décadas: «Dir-nos-ão que os rios são artérias agudas / no corpo do mar, (…) Dir-nos-ão as lentas palavras / na areia da nortada, (…) Dir-nos-ão que envelhecemos / esperando que passem os invernos / sucessivos, (…) Dir-nos-ão que os mortos exibem os símbolos / e as metáforas no silêncio com / que fustigam as raízes dos arbustos, / e as palavras que calam são a cor / escura com que vivem / outra vez. // E nós diremos que por aqui / enlouquecemos vorazmente / entre os gritos do sol / e o silêncio de Deus» (p.52).

Como se viu, as motivações desta escrita são várias e o seu tanger tenta conciliar a linguagem com a forma de expressar o real, pois o poeta sempre encarou a sua poesia como reflexão, questionação e jamais simples repetição da realidade vivida.

Poderá, em sinopse, colocar-se a eterna questão de Ruy Belo, inserta no poema “ácidos e óxidos”, «Que fica dos teus passos dados e perdidos?». A resposta encontra-se nos interstícios de um labor verbal simultaneamente alusivo e denotativo. O que fica, na poética de Fernando de Castro Branco, é a força da linguagem como lugar do desconcerto pessoal, vivido com prazer e dor.

 

Bibliografia:

BRANCO, Fernando de Castro. Alquimia das Constelações. Lisboa: Roma Editora, 2005.

CORTEZ, António Carlos. Voltar a Ler Alguma Crítica Reunida. Lisboa: Gradiva, 2019.

MARTINS, Albano. Circunlóquios II. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2008.

Do Interior ou da alegoria da caverna

Nasci e cresci na aldeia à beira do velho tanque. Parece que ainda ouço a mãe, com o seu ar sereno, dizer como quem beija, de mão em riste, numa ameaça que não convencia ninguém: — Se cais ao tanque mato-te!

As juntas de vacas, os rebanhos, os burros, os cães, vinham ao entardecer saciar a sede no tanque amigo. Era verão.

As mulheres enchiam os cântaros na torneira, os homens tiravam o chapéu, vindos da segada e bebiam água tão boa, como se não houvesse amanhã. A criançada da escola regalava-se a aguardar a vez para beber água, ou molhar o amigo descuidado. No Inverno o tanque repousava num longo manto de gelo. E aquele “carambelo” partido aos pedaços sabia que nem trigo com nozes. Tempo de fome e servidão, da meia sardinha para cada membro da família, das jeiras escassas, da casa cheia de gente, da emigração, do medo.

Ainda continuo a viver na aldeia, junto do velho tanque. Nunca fui muito longe para conhecer o mundo. Mas conheço a minha aldeia e quase todas as aldeias do nordeste como se me estivessem coladas à pele, às memórias, ao sentir.

As casas e os casebres continuam a cair, numa derrocada medonha que assusta. Tudo se vai com os donos.

Nalgumas ruas ainda cheira a centeio quente mas o forno já não coze. Fica a nostalgia do pão nosso de cada dia, da segada, da acarreja, das malhas, do medeiro, do moinho, da forja. Tudo está tão presente como o carolo de centeio que sabia a beijos, ao lume aceso, à alheira que amaciava o inverno.

Hoje, em quase todas as aldeias do nordeste transmontano já não há fome. Os poucos habitantes vivem com o mínimo de dignidade nas suas casas. Muitos ainda cultivam a horta, apanham as castanhas, a azeitona e cuidam da capoeira. A magra reforma vai chegando para o essencial. Mas, o que há nas nossas aldeias é uma imensa solidão, idosos que se arrastam ao peso dos anos, doenças, lágrimas, memórias, ausências, silêncios. Todos os dias converso, demoradamente, com estes idosos e sinto o seu sentir. E dói-me esta investigação participada e este abandono.

Há muito que a grande maioria das escolas do primeiro ciclo fecharam pela falta de crianças. Em muitas aldeias já se conta quem será o próximo a morrer e calcula-se com uma previsibilidade assustadora quando a aldeia vai capitular pela partida do último habitante. Raramente nasce uma criança e os sinos poucas vezes tocam festivamente para os batizados, mas tocam com excessiva frequência a finados.

Contudo, abundam as magníficas teses sobre o desenvolvimento e sustentabilidade do nordeste. Com frequência vou a seminários e congressos onde se afirma que o nordeste tem futuro. Doutos oradores dissertam sobre medidas inovadoras para combater a desertificação e promover o povoamento. Às vezes quase acredito que eu vivo na caverna da alegoria de Platão e só vejo as sombras do mundo exterior, enquanto iluminadas personalidades vivem realmente no exterior desenvolvendo magníficas teorias, garantindo os apoios necessários para salvar uma região do interior que morre paulatinamente.

É difícil acreditar no futuro da nossa terra, mas temos que agarrar a esperança, muito mais agora que a investigadora Isabel Ferreira, com centenas de artigos científicos publicados, “que exerceu funções de vice-presidente do Instituto Politécnico de Bragança, foi diretora do Centro de Investigação de Montanha, doutorada na área da Química e licenciada em Bioquímica” é a atual Secretária de Estado da Valorização do Interior. Talvez ela seja capaz de ajudar a enxugar as lágrimas de tantos idosos, a semear sorrisos de esperança, a criar investimento, a transformar a teoria numa prática criadora de riqueza que todos desejamos para que as nossas aldeias, vilas e cidades se povoem de casais, de crianças e jovens com futuro.

Entretanto acendemos o lume, afagamos a esperança nos homens e nas instituições e esperamos que nenhum vizinho morra esta noite de tristeza, velhice e abandono.

Travessuras

No passado dia 1 de Novembro, dia de todos os Santos, logo pela manhã senti agudas saudades das minhas duas terras Natais, da aldeia dos prodígios, Lagarelhos, onde apesar da prematura morte da minha Mãe fui feliz, e de Bragança a cidade do vetusto castelo, do Bairro de Além do rio, os ali nascidos limpavam o cú a um vidro e não se cortavam num tempo escasso em papel higiénico, por isso os possuidores de avultados bens e quase analfabetos descosiam os livros antigos a fim de utilizarem as suas folhas em fedorentas práticas e escorregadelas anais.

Senti pungentes saudades dos ruídos cantantes das castanhas a pingarem em cima das folhas caídas dos ramos daqueles gigantes altaneiros, talvez inspiradores do Gigantes de Dom Quixote, afinal Moinhos de Vento cujas mós podiam prensar as castanhas abreviando tarefas de modo a serem transformadas em farinha, a farinha pão dos pobres, dos famintos a pedirem de porta em porta, remadores das galés e dos presos. O dia principiava ao romper da aurora, se as nuvens deixavam não era pardacento e os braços róseos da cintilante aurora conferiam luminosidade às flores cortadas na véspera, colocadas numa lata com água, antes de irem embelezar as campas dos entes querido cujos covais passavam de pais para filhos.

Os parentes vivos, especialmente as mulheres, tomavam aquela tarefa de devoção como obrigação de combate contra os inimigos da alma pois os corpos estavam reduzidos a fragmentos que mais tarde na altura da mudança do cemitério uns ignaros patetas colocaram (atiraram, arremessaram) para uma montrueira de entulho. Uma vergonha calada de forma a os parentes ausentes não saberem.

Também me levantava cedo, um pedaço de centeio, por cima carne gorda fria, branca, gostosa, autêntica delícia, e ala que se faz tarde, ia ver, contemplar, perscrutar o arrojo arquitectónico das travessuras colocadas em postos centrais da aldeia a fim de ninguém ficar arredado ou impedido de olhar as travessuras porque o serem desagradavam e provocavam soezes imprecações dos donos de carros de vacas, alfaias agrícolas e outras empregues montagem das ditas travessuras. Agora, com a falta de gente, com os residentes envelhecidos, a mobilidade motorizada e os telemóveis, as travessuras devem ter passado a espúrias reminiscências do passado. Sou saudosista na esteira de Teixeira de Pascoaes, no entanto, as materialidades também contam e contam muito.

Neste dia assavam-se as castanhas, os homens bebiam vinho tinto vindo das fragas, algumas mulheres bebiam jeropiga, o dia esgotava-se rapidamente, o baile transferia-se para uma palheira, caso sobrassem cacharros o rapazio espigadote partia-os ao estilo da cabra-cega. Uma concertina bastava, o acréscimo de uma rabeca ajudava a compor o ramalhete, as progenitoras recordavam tempos passados, não descurando a tarefa de vigiarem os movimentos de mãos e pernas dos pares dançantes. Um ou outro gebo provocava estardalhaço meneando os braços ao modo dos milhafres a baterem as asas, a rapariga enfastiada largava-o dando azo a risadas cavernosas.

O hoje desconhecido historiador Jaime Cortesão baptizou uma filha chamando-lhe Saudade, ela notabilizou-se como poetisa e tradutora, Saudade partilhou saudades entre Portugal e o Brasil, Saudade foi (é?) nome empregue debaixo de múltiplos matizes, o dia da saudade pelos desaparecidos em Bragança, não diferia das demais cidades portuguesas, magustos avinhados, referia-se porque antiga e franca a feira de Chaves, o espiritual decorria no dia imediato, a confluência social não conhecia diferenças, ainda existiam leitores do Seringador, já se faziam matanças porcinas, os estudantes pensavam no 1º de Dezembro, alguns sinalizavam galinheiros onde valia a pena correr riscos.

Muitas pessoas começavam a usar sobretudo, no seu entender o General Inverno assentava arraiais, a cordilheira da Sanábria o confirmava, não tardariam as frieiras a provocarem mazelas, até finais de Março o tapa misérias prevalecia. Os Santos não calhando aos domingos alegravam a semana, os pícaros (existiam) sopravam jocosidades atribuídas a espanhóis e portugueses envolvendo os venerandos e veneráveis Santos dos nossos conhecimentos e os não conhecidos englobavam-se nos Todos.

O cantor lírico e apaixonado benfiquista cantava – eu não sei que tenho em Évora –, eu também não sei que tenho em Lagarelhos, não sei que tenho em Bragança, tenho saudades. Avantajadas e profundas saudades!

A caminho do Inverno perpétuo

Ter, 05/11/2019 - 02:40


Os dias vão de chuva, bem precisa era, que a água estará a tornar-se preciosidade capaz de fazer correr sangue nesta Europa do sul, adoradora do sol que a há-de secar, dizem alguns visionários sobre próximos futuros. Mas também há quem diga que um dia destes haverá gente a rezar para que não chova, que a invernia mexe-nos com os ossos velhos e acinzenta-nos a alma.