Travessuras

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No passado dia 1 de Novembro, dia de todos os Santos, logo pela manhã senti agudas saudades das minhas duas terras Natais, da aldeia dos prodígios, Lagarelhos, onde apesar da prematura morte da minha Mãe fui feliz, e de Bragança a cidade do vetusto castelo, do Bairro de Além do rio, os ali nascidos limpavam o cú a um vidro e não se cortavam num tempo escasso em papel higiénico, por isso os possuidores de avultados bens e quase analfabetos descosiam os livros antigos a fim de utilizarem as suas folhas em fedorentas práticas e escorregadelas anais.

Senti pungentes saudades dos ruídos cantantes das castanhas a pingarem em cima das folhas caídas dos ramos daqueles gigantes altaneiros, talvez inspiradores do Gigantes de Dom Quixote, afinal Moinhos de Vento cujas mós podiam prensar as castanhas abreviando tarefas de modo a serem transformadas em farinha, a farinha pão dos pobres, dos famintos a pedirem de porta em porta, remadores das galés e dos presos. O dia principiava ao romper da aurora, se as nuvens deixavam não era pardacento e os braços róseos da cintilante aurora conferiam luminosidade às flores cortadas na véspera, colocadas numa lata com água, antes de irem embelezar as campas dos entes querido cujos covais passavam de pais para filhos.

Os parentes vivos, especialmente as mulheres, tomavam aquela tarefa de devoção como obrigação de combate contra os inimigos da alma pois os corpos estavam reduzidos a fragmentos que mais tarde na altura da mudança do cemitério uns ignaros patetas colocaram (atiraram, arremessaram) para uma montrueira de entulho. Uma vergonha calada de forma a os parentes ausentes não saberem.

Também me levantava cedo, um pedaço de centeio, por cima carne gorda fria, branca, gostosa, autêntica delícia, e ala que se faz tarde, ia ver, contemplar, perscrutar o arrojo arquitectónico das travessuras colocadas em postos centrais da aldeia a fim de ninguém ficar arredado ou impedido de olhar as travessuras porque o serem desagradavam e provocavam soezes imprecações dos donos de carros de vacas, alfaias agrícolas e outras empregues montagem das ditas travessuras. Agora, com a falta de gente, com os residentes envelhecidos, a mobilidade motorizada e os telemóveis, as travessuras devem ter passado a espúrias reminiscências do passado. Sou saudosista na esteira de Teixeira de Pascoaes, no entanto, as materialidades também contam e contam muito.

Neste dia assavam-se as castanhas, os homens bebiam vinho tinto vindo das fragas, algumas mulheres bebiam jeropiga, o dia esgotava-se rapidamente, o baile transferia-se para uma palheira, caso sobrassem cacharros o rapazio espigadote partia-os ao estilo da cabra-cega. Uma concertina bastava, o acréscimo de uma rabeca ajudava a compor o ramalhete, as progenitoras recordavam tempos passados, não descurando a tarefa de vigiarem os movimentos de mãos e pernas dos pares dançantes. Um ou outro gebo provocava estardalhaço meneando os braços ao modo dos milhafres a baterem as asas, a rapariga enfastiada largava-o dando azo a risadas cavernosas.

O hoje desconhecido historiador Jaime Cortesão baptizou uma filha chamando-lhe Saudade, ela notabilizou-se como poetisa e tradutora, Saudade partilhou saudades entre Portugal e o Brasil, Saudade foi (é?) nome empregue debaixo de múltiplos matizes, o dia da saudade pelos desaparecidos em Bragança, não diferia das demais cidades portuguesas, magustos avinhados, referia-se porque antiga e franca a feira de Chaves, o espiritual decorria no dia imediato, a confluência social não conhecia diferenças, ainda existiam leitores do Seringador, já se faziam matanças porcinas, os estudantes pensavam no 1º de Dezembro, alguns sinalizavam galinheiros onde valia a pena correr riscos.

Muitas pessoas começavam a usar sobretudo, no seu entender o General Inverno assentava arraiais, a cordilheira da Sanábria o confirmava, não tardariam as frieiras a provocarem mazelas, até finais de Março o tapa misérias prevalecia. Os Santos não calhando aos domingos alegravam a semana, os pícaros (existiam) sopravam jocosidades atribuídas a espanhóis e portugueses envolvendo os venerandos e veneráveis Santos dos nossos conhecimentos e os não conhecidos englobavam-se nos Todos.

O cantor lírico e apaixonado benfiquista cantava – eu não sei que tenho em Évora –, eu também não sei que tenho em Lagarelhos, não sei que tenho em Bragança, tenho saudades. Avantajadas e profundas saudades!

Armando Fernandes