Nasci e cresci na aldeia à beira do velho tanque. Parece que ainda ouço a mãe, com o seu ar sereno, dizer como quem beija, de mão em riste, numa ameaça que não convencia ninguém: — Se cais ao tanque mato-te!
As juntas de vacas, os rebanhos, os burros, os cães, vinham ao entardecer saciar a sede no tanque amigo. Era verão.
As mulheres enchiam os cântaros na torneira, os homens tiravam o chapéu, vindos da segada e bebiam água tão boa, como se não houvesse amanhã. A criançada da escola regalava-se a aguardar a vez para beber água, ou molhar o amigo descuidado. No Inverno o tanque repousava num longo manto de gelo. E aquele “carambelo” partido aos pedaços sabia que nem trigo com nozes. Tempo de fome e servidão, da meia sardinha para cada membro da família, das jeiras escassas, da casa cheia de gente, da emigração, do medo.
Ainda continuo a viver na aldeia, junto do velho tanque. Nunca fui muito longe para conhecer o mundo. Mas conheço a minha aldeia e quase todas as aldeias do nordeste como se me estivessem coladas à pele, às memórias, ao sentir.
As casas e os casebres continuam a cair, numa derrocada medonha que assusta. Tudo se vai com os donos.
Nalgumas ruas ainda cheira a centeio quente mas o forno já não coze. Fica a nostalgia do pão nosso de cada dia, da segada, da acarreja, das malhas, do medeiro, do moinho, da forja. Tudo está tão presente como o carolo de centeio que sabia a beijos, ao lume aceso, à alheira que amaciava o inverno.
Hoje, em quase todas as aldeias do nordeste transmontano já não há fome. Os poucos habitantes vivem com o mínimo de dignidade nas suas casas. Muitos ainda cultivam a horta, apanham as castanhas, a azeitona e cuidam da capoeira. A magra reforma vai chegando para o essencial. Mas, o que há nas nossas aldeias é uma imensa solidão, idosos que se arrastam ao peso dos anos, doenças, lágrimas, memórias, ausências, silêncios. Todos os dias converso, demoradamente, com estes idosos e sinto o seu sentir. E dói-me esta investigação participada e este abandono.
Há muito que a grande maioria das escolas do primeiro ciclo fecharam pela falta de crianças. Em muitas aldeias já se conta quem será o próximo a morrer e calcula-se com uma previsibilidade assustadora quando a aldeia vai capitular pela partida do último habitante. Raramente nasce uma criança e os sinos poucas vezes tocam festivamente para os batizados, mas tocam com excessiva frequência a finados.
Contudo, abundam as magníficas teses sobre o desenvolvimento e sustentabilidade do nordeste. Com frequência vou a seminários e congressos onde se afirma que o nordeste tem futuro. Doutos oradores dissertam sobre medidas inovadoras para combater a desertificação e promover o povoamento. Às vezes quase acredito que eu vivo na caverna da alegoria de Platão e só vejo as sombras do mundo exterior, enquanto iluminadas personalidades vivem realmente no exterior desenvolvendo magníficas teorias, garantindo os apoios necessários para salvar uma região do interior que morre paulatinamente.
É difícil acreditar no futuro da nossa terra, mas temos que agarrar a esperança, muito mais agora que a investigadora Isabel Ferreira, com centenas de artigos científicos publicados, “que exerceu funções de vice-presidente do Instituto Politécnico de Bragança, foi diretora do Centro de Investigação de Montanha, doutorada na área da Química e licenciada em Bioquímica” é a atual Secretária de Estado da Valorização do Interior. Talvez ela seja capaz de ajudar a enxugar as lágrimas de tantos idosos, a semear sorrisos de esperança, a criar investimento, a transformar a teoria numa prática criadora de riqueza que todos desejamos para que as nossas aldeias, vilas e cidades se povoem de casais, de crianças e jovens com futuro.
Entretanto acendemos o lume, afagamos a esperança nos homens e nas instituições e esperamos que nenhum vizinho morra esta noite de tristeza, velhice e abandono.