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Notícia, Boa ou Má?

Acaba de ser divulgada a notícia da suspensão dos ensaios clínicos de uma das mais promissoras vacinas contra o Coronavírus. Fica assim prejudicada a expectativa de ter no mercado, num espaço de tempo relativamente curto, o fármaco desenvolvido pela farmacêutica AstraZeneca em colaboração com a Universidade de Oxford. Parecendo ser uma má notícia, não o é, na verdade. Esta suspensão deveu-se ao aparecimento de uma séria reação adversa num dos voluntários que participam no teste. Não se sabe ainda se o problema de saúde que afetou o participante se deve ou não a um efeito direto ou secundário da inoculação a que foi sujeito. Pode acontecer que o que lhe aconteceu tenha outras causas e em nada seja devido ao novo medicamento. Nesse caso, logo que tal seja inequivocamente apurado, os testes podem prosseguir. Perde-se com isto algum tempo, precioso, é certo, para os investidores que podem ver outros concorrentes a passarem à frente e, igualmente, para os políticos que veem retardar o tão ansiado momento em que possam anunciar o início de uma nova era, progressivamente mais segura e de maior confiança. Quer uns, quer outros, hão de considerá-la uma má notícia. Mas para os utentes e destinatários esta é, sem qualquer dúvida, uma boa notícia. Qualquer que seja o desfecho deste incidente de percurso. Se o percalço foi estranho ao produto em desenvolvimento, o que se perde em tempo, ganha-se em confiança. Por maior que seja a pressão que quer os dirigentes quer os financiadores coloquem sobre os cientistas e técnicos, o que, em resultado do seu árduo e precioso trabalho, sair para o mercado, cumpre todas as regras e precauções. Se, pelo contrário, a nefasta ocorrência está de alguma forma relacionada com a vacina em desenvolvimento, então é bom parar para saber o quê, em concreto afeta, ou pode afetar, a saúde e a integridade dos que a vierem a tomar. É bom ter em conta que, mesmo que haja uma relação direta entre as duas situações, tal não implica, de imediato, o abandono dos estudos e testes. A grande maioria dos medicamentos têm efeitos secundários indesejáveis como, aliás, vem expresso na bula que, obrigatoriamente os acompanha. Não é dramático desde que se saiba quais são, em que medida e com que percentagem, acontecem. É essa, precisamente, a função dos ensaios clínicos de nível 3, como os que estão a ser levados a cabo, no caso em apreço. É para nossa segurança que as autoridades fiscalizadoras dos medicamentos só autorizam a comercialização, de qualquer um deles, depois de passadas todas as fases de desenvolvimento. Para que um fármaco chegue ao mercado tem de, primeiro, ser devida e exaustivamente testado em animais (fase pré- -clínica) só entrando no desenvolvimento clínico se nada de grave for detetado. Começam então os ensaios clínicos, de fase 1, para perceber a sua interação com o corpo humano. Na fase 2, ao mesmo tempo que se aumenta o conhecimento sobre a segurança, avalia-se a eficácia e determina-se a dose mais adequada. A fase 3, mais extensa e prolongada destina-se a comprovar a eficácia, em comparação com outros produtos do mercado. É também apurada a relação entre o benefício e o risco e só quando esta é claramente positiva é que se pede a autorização para introdução no mercado. A fase 4 é posterior e acontece com o medicamento já em uso embora se debruce também, entre outros, sobre a sua segurança. A suspensão dos ensaios, noticiada, para todos nós só pode ser uma boa notícia. Esperamos que a ela venha uma outra ainda melhor: a reação detetada não foi provocada pela inoculação da vacina ou, sendo-o, não é grave nem pressupõe um risco elevado. Entretanto, por maior que seja a ansiedade com que se espera a tão almejada vacina, devemos estar confiantes: há de vir quando for segura e eficaz, independentemente das eleições americanas, da propaganda russa ou da vontade de António Costa.

Deixem as crianças ser crianças, as mulheres ser mães e os homens ser pais!

Não é produto de fábrica nem vem de Paris no bico de uma cegonha. Muito menos é arranjo aleatório de cromossomas manipulável por passes mágicos, como pretende certa ciência esotérica. Nasce no ventre de uma mulher concreta, a mãe, mesmo quando se trata de barriga de aluguer e de inseminação artificial. A sua sobrevivência e crescimento depende daqueles que dela cuidam com insubstituível amor e carinho, ainda que possam não ser os seus procriadores. Por isso se diz que pertence aos pais, não sendo admissível que o Estado se intrometa na sua sagrada intimidade sem motivos para tanto. Só a partir do momento em que a criança deixa de o ser porque alcança a maioridade, o Estado e a Sociedade devem dar continuidade à sua formação e civilidade. Princípios que o Governo português está ostensivamente a subverter. De entre os factos que mais desacreditam o Regime vigente, que penaliza gravosamente as crianças e as famílias, destacam-se a corrupção, a ineficácia da Justiça e o facciosismo político. A estas gravíssimas deficiências regimentais o actual primeiro- -ministro acrescentou uma nova mais subtil: a prostituição do poder. Não se trata de constituir as maiorias parlamentares necessárias à viabilização de governos, que é uma das maiores virtudes da democracia, mas da traição oportunista do eleitorado e do abandono de princípios éticos e programáticos. O que está bem patente no plano maquiavélico de gravar, à sorrelfa, nas indefesas mentes infantis, embrulhados no enganador pacote da Educação para a Cidadania e Desenvolvimento (ECD), princípios e prácticas da diabólica Ideologia de Género, que não deve ser confundida como muitos maldosamente pretendem, com a Igualdade de Género que trata da dignificação plena da mulher, que já tarda. Há testemunhos documentados nas redes sociais de que a coberto desta disciplina se cometem verdadeiros crimes contra as crianças, que merecem ser investigados por quem de direito. Urge que o povo português tome consciência desta monstruosa conspiração que ofende gravosamente os fundamentos morais da Nação. Entretanto um grupo de afamadas celebridades dirigiu ao Presidente da República um tímido baixo assinado defendendo a objecção de consciência dos pais perante estas sinistras prácticas educativas. Em resposta um grupo de notáveis de outra cor e fama promoveu um mais agressivo manifesto defendendo o contrário, isto é, que a ECD não pode ser objecto de objeção de consciência. Fica-se com a ideia de não haver, nuns e noutros, lucidez suficiente, antes facciosismo a mais e moral a menos porquanto o verdadeiro problema não é a dita disciplina escolar, mesmo se contemplar uma sadia educação sexual, mas o facto de servir de cavalo de Tróia da diabólica Ideologia do Género que, entre outras ideias abjectas, defende a licitude da pedofilia e das relações incestuosas, designadamente entre pais e filhos. Uns e outros deviam, isso sim, pugnar para impedir que tão sinistros educadores possam tratar as crianças como lhes dá na maléfica gana. E porque não ouvir os portugueses em referendo sobre esta matéria, à semelhança da Eutanásia e do Aborto? Deixem as crianças ser crianças, as mulheres ser mães e os homens ser pais! Para que a paz e a tolerância reinem entre todos.

A minha tia Inês e a acção feminista

Bom dia, terra quente, nesta altura não há por aí terras frias, pelo menos antes de o sol se pôr. Como vão esses fins de tarde? Espero que muito bem. Ora, peço desculpa mas hoje dentro deste pequeno rectângulo mando eu e daqui ninguém me tira. Como nos tempos de infância quando nas férias se formavam equipas para passar as tardes em modo “roda, bota, fora” dentro de um ringue de futebol, havia sempre alguém que se negava a aceitar as convenções da derrota e se aproveitava do facto de ser dono do esférico para usar o trunfo do “a bola é minha ninguém joga” e assim não ter de sair do campo. De modo que hoje é à Lobo Antunes, as minhas tias, os meus avós, as criadas e o que tinham para ensinar a cada novos imberbes varões, o empregado corcunda do café com o bigode amarelecido do cigarro, as velhas de Lisboa aperaltadas avenida acima, avenida abaixo e o alferes miliciano que ainda hoje jaz em palhas de capim deitado, velado num presépio de seringas trémulas de morfina, unimogues de patas ao ar, soldados cheios de surro e os sacramentos atropelados do capelão. E com António nos perdemos no emaranhado dos seus dédalos interiores e nos seus mundanos finos reparos de escritor como se os leitores fossemos o álcool desestimadamente tragado ora para esquecer ora para solenizar tudo isto. A minha tia Inês foi a primeira de uma enchente de filhos. Aquilo que agora se diria ser uma família numerosa, mas sem a chiquesa a que hoje soa nem os descontos a que dá direito. Os mais velhos tratavam dos mais novos numa empresa que se organizava a si mesma segundo normas estritas e bem definidas e cujo CEO marcava o compasso da organização e por vezes o passo à entidade familiar sem grande margem para sugestões ou sindicalismos. Lembrei-me da minha tia Inês por um texto que li sobre a temática do feminismo. Hoje faz-se tanto ruído sobre alguns assuntos que quase viram entretenimento e é triste que, apesar de tanto falar e aludir, a sociedade pouco mude e cada vez mais andemos como o gato e o rato. Uns irados contra os outros, a esgrimir palavras nos computadores e nos telemóveis, de tal modo que parece que o que move os ânimos das pessoas para estas batalhas é cada vez mais o jogar este jogo do “tu cá, tu lá”, o aparecer para “mostrar que assim se defende e assim se ataca”, quiçá vincar o ódio por quem está do outro lado da barricada. E todo o discurso é praticamente só teórico de parte a parte, centrado nas ideias, nas concepções, no histórico-social, mas em que o “fazer” quase não ocupa lugar. Não se diz às pessoas, mais que tudo, o que é que cada um de nós deve fazer enquanto cidadão, pai, filho, estudante, trabalhador, aposentado, etc. para efectivamente superar estas lacunas, melhorar a comunidade e a interação social. Pouca ou nenhuma atenção se dedica a cultivar nas pessoas o “fazer” ou o “saber fazer”, o que diz muito da vacuidade não destas batalhas, mas sim da maioria dos seus batalhadores. A acção e sobretudo a interacção, a abertura ao outro são aspectos que urge promover numa sociedade cada vez mais segregada e extremada e que infelizmente parecem não ser sequer tidos nem achados de forma concreta no “diálogo” sobre estes assuntos. As palavras já me trouxeram até aqui mas eu vim para falar da minha tia Inês e sobra-me já menos espaço. Mulher de decisões sólidas e gargalhadas fáceis – e de palavrão fácil também, para o qual as décadas de Porto certamente terão contribuído – que passou por tudo aquilo que de agreste e de genuíno teria por que passar quem no começo dos anos 40 nascesse numa aldeia raiana do nordeste trasmontano, recém-tocada pela guerra civil espanhola. Fez medrar irmãos e filhas, esteve uns anos sem o marido emigrado, mais tarde deu ainda guarida a meus pais na época em que os pés descalços de Gabriela colocavam o país em suspenso e o prendiam ao televisor na hora de jantar. Mas a história que a ouvi contar e que me veio à memória a propósito do feminismo foi a de que na adolescência alguém lhe ofereceu um par de calças, mas o meu avô não lhas deixava vestir. Calculo que terá sido entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60. Nisto chegou o dia do baile da aldeia e também estava proibida de ir talvez porque andasse já a namoriscar. A moral da história é que a tia Inês arranjou forma de se escapulir e não só foi ao baile como fez questão de ir a presumir as calças novas. Ela sabia que o after-party não seria pêra-doce, como de facto não foi, mas ficou a atitude e a personalidade. Não era ser-se feminista, era só ser-se jovem com uma grande dose de coragem e de juventude. A minha tia também era Maria, Maria Inês, eram tempos de velhas cartas, “Três Marias”, quatro, cinco, na verdade eram todas Marias, mas sem hashtags. É verdade que as conquistas hoje não são tão perceptíveis como já foram no nosso país. Actualmente é preciso escavar mais para se encontrar uma causa. Antigamente bastava vestir umas calças ou querer ir ao baile. Por isso mesmo, embora sendo mais seguro, ser feminista em Portugal é hoje uma tarefa mais árdua, combativa. Creio, no entanto, que sem acção as mensagens não passam, as coisas não se alteram substancialmente. Os crimes passionais e a violência doméstica têm aumentado nos últimos anos, mas os direitos sociais não se alcançam só com teoria, conferências ou publicações. Por isso, em vez de se tornar o tema numa troca de inflamadas flechas ou numa medição elitizada de eloquências sem grandes efeitos práticos, viremo-nos para as pessoas comuns, ensinemos a fazer, eduquemos para a acção e para a interação. Não é preciso teorizar muito para se tomarem atitudes. Quanto à minha tia Inês, os seus olhos claros quase transparentes apagaram-se há dois anos, mas as suas vivências contadas entre gargalhadas andarão cá por mais uns tempos. E algumas delas também acabam por fazer parte da nossa história. Obrigado, tia Inês.

Cidadãos e cidadania

A revista de imprensa continua a fazer jus aos dias que correm centrando-se no mesmo objeto analisado nas mais diversas perspetivas. A pandemia segue enchendo as primeiras páginas e abrindo noticiários; no entanto, a vida e o mundo não se resumem a isso e as tensões continuam a moldar a realidade fazendo avançar a história dos homens. A lei da inércia não governa as sociedades e o caminho vai-se fazendo. Neste cruzar de linhas, a polémica à volta da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento subiu mais uns degraus quando deixou de ser um facto administrativo, um quase - conflito entre uma escola e um encarregado de educação e ganhou relevo após a intervenção do secretário de estado da educação. Em síntese, numa escola de Famalicão, dois alunos do terceiro ciclo não assistiram às aulas desta disciplina porque o encarregado de educação entendeu que não deveriam pois estariam a ser inculcados valores contrários à moral do agregado familiar. Como alunos de mérito, apesar do elevado número de faltas à disciplina, a escola entendeu, melhor, o conselho de turma, que deveriam passar. O quadro aconteceu em dois anos letivos; tendo chegado à secretaria de estado, a ordem foi para que os alunos repetissem os dois anos. O encarregado de educação não concordou, colocou o caso em tribunal e, entretanto, a comunicação social fez eco da situação, dando aso a manifestos e manifestações a favor e contra. O manifesto contra, quanto se sabe, tem a assinatura de um cardeal, de um ex-presidente da República e de um ex-primeiro ministro (ambos do partido social democrata). A receita tem tudo para correr mal, sobretudo para o governo, dependendo, obviamente, como vai ser cozinhada. Antes de mais, quer a Declaração dos Direitos do Homem, no seu artigo 26º, quer a Constituição da República Portuguesa, no 36º, reconhecem o direito dos pais na escolha do tipo de educação que pretendem dar aos filhos. A aplicação destes princípios nos sistemas democráticos teve a sua atualização no entendimento dos legisladores que pressupuseram que nenhum estado se pode substituir aos pais pelo que, quando estes inscrevem as crianças na escola pública apenas delegam a função educativa em terceiros não havendo, assim, uma substituição. Desta feita, o encarregado de educação tem legitimidade para não só questionar o currículo como para o recusar, desde que o mesmo ponha em causa os valores e a moral que o mesmo prefigura na sua vida e pretende veicular aos filhos. A decisão da secretaria de estado, se por um lado, colide com direitos constitucionais, vem, finalmente, demostrar que a ideia da autonomia curricular não é levada a sério nem sequer por aqueles que, em discursos marcadamente ideológicos, a vão defendendo. De acordo com a legislação em vigor, nomeadamente o despacho-normativo17- A/2015, a decisão final sobre a avaliação do aluno é da exclusiva responsabilidade do conselho de turma. Nem sequer o diretor da escola/agrupamento pode pronunciar-se sobre a mesma por isso, caso não concorde, pode, unicamente, mandar reunir o conselho de turma para reapreciar e fundamentar; já o recurso para instâncias superiores é da competência exclusiva do encarregado de educação. Por isso, e estranhamente incompreensível, não se entende como um secretário de estado dita a retenção de dois alunos, com nível máximo a todas as disciplinas, e não interfere, quando, de acordo com o enquadramento legal, os conselhos de turma validam transições com quatro, cinco ou até sete níveis negativos. Que a disciplina de Cidadania é um campo ideológico onde a par de temas universalmente aceites são referenciados outros ideologicamente conotados com a esquerda é claro; por isso não é de estranhar que professores claramente envolvidos neste estilo trauliteiro, perguntem a alunos de seis anos se gostam mais de homens, mulheres ou dos dois géneros. O que se pode questionar é o que propõe o governo na abordagem destes temas fraturantes perante alunos de religiões mais conservadoras que a católica ou de grupos minoritários em que a homossexualidade, lesbianismo ou igualdade de género continuam a ser tabu. O paradoxo deste quadro é que para defender uma disciplina onde se pretende ensinar a tolerância e a liberdade se esteja a restringir uma das liberdades mais básicas impulsionada por uma esquerda nascida depois de 74. Este episódio que por si não passa de um mero folhetim do tempo queirosiano, coloca a nu as debilidades da democracia quando as oposições secundarizam o seu papel e se mantêm em silêncio para além do que é previsível. É bom relembrar que o ensaio para estes conteúdos foi feito em 2011 com a disciplina de Formação Cívica, também num governo PS. Alargando o espectro de análise, não deixa de ser curioso observar que, quando no poder, a direita recupere os clássicos e a literatura antiga, enquanto a esquerda se foca explicitamente nos valores. Depois disto, há apenas uma certeza: não há currículos neutros e desde sempre, quem governa tenta sempre mudar a educação.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: o Patriarca António Ledesma

Quando casou com Catarina da Silva, António Ledesma era já viúvo de Antónia Rodrigues, que lhe dera uma filha, chamada Jerónima Ledesma. Esta terá nascido em Bragança por 1572 e, em Setembro de 1600, na sequência de uma enorme vaga de prisões levada a efeito pela inquisição em Bragança, ela apresentou-se voluntariamente em Coimbra a confessar que andara errada na fé e pedir perdão.  Estava ainda solteira, mas não demorou a casar, com Gaspar Rodrigues, o Pardal, de alcunha, sapateiro. O casal viveu em Bragança, onde lhe nasceram e se criaram dois filhos e uma filha. Um dos filhos chamou-se António Ledesma, como o avô. Nascido por 1604, António Ledesma fez-se mercador e casou em Bragança, com Beatriz Nunes, que lhe deu uma filha, chamada Maria Nunes que casou em Bragança, com Manuel Franco, rendeiro do real d´água. Todos foram presos pela inquisição e deles haveremos de falar, em próximo capítulo. Não sabemos se foi antes ou depois da morte de sua mulher, que António Ledesma rumou ao Porto e ali casou segunda vez com Maria Ferreira de Carvalho, natural de Coimbra e da qual voltaremos a falar. O casal estabeleceu morada em “umas casas sobradadas, ao Postigo das Virtudes, da banda de dentro, que partem com as casas de um homem que ficou em Castela no tempo da Aclamação e da banda de baixo com as casas de António Mendes Carvalho, homem de negócios do Porto, as quais casas comprou na praça pública, por 95 mil réis”.  Mercador judeu que se preza não se limita a um ramo de negócio, antes compra e vende o que aparece. António Ledesma não fugia à regra e apresentava-se como uma espécie de “gestor de negócios” a quem muitas pessoas entregavam “dinheiro ao ganho”, que ele investia em negócios tão diversos como na compra de partidas de bacalhau, caixas de açúcar, rolos de tabaco... e também cordões e cadeias de ouro ou saleiros e jarros de prata. No entanto, a sua atividade principal era a de tendeiro, com uma loja de fazendas situada debaixo do hospital de S. Crispim, à Ponte de S. Domingos, que na altura da sua prisão, estava abastecida com uns “180 côvados de baetas, 15 ou 16 peças de bombazina, 16 ou 17 peças de fustão, 10 arráteis de retrós preto, 3 ou 4 de retrós de cores, uma peça de sutache preto, que terá 35 ou 36 côvados e outras miudezas”. Naturalmente que a loja de António Ledesma era local de encontro de mercadores cristãos-novos estabelecidos no Porto. Mais procurada, no entanto, seria a sua casa de morada pois nela tinha instalado uma “casa de jogo”, de acordo com o testemunho de Vasco Fernandes Campos: - Haverá 3 ou 4 anos, pouco mais ou menos, se achou em casa de António Ledesma, cristão-novo, viúvo não sabe de quem, que dava casa de jogo, com o mesmo, ambos sós, e vendo ele confitente na dita casa uma posta de congro, reparou nisso, dizendo ao dito António Ledesma como comia aquele peixe que era de pele? E ele lhe respondeu que o tinha para mandar de presente, e com estas cenas se declararam como criam na lei de Moisés...  Como se vê, não seria apenas para jogar que ali se reuniam, por vezes em grupo. Veja-se, a propósito, a confissão feita por António Ledesma perante os inquisidores de Coimbra, em 29.8.1658: - Disse que haverá 5 anos, em sua casa, na cidade do Porto, com Vasco Fernandes Campos, cristão-novo, mercador (…) casado em Castela, donde trouxe a mulher haverá ano e meio para Sendim e dali haverá um ano para o Porto, onde são moradores, na rua de Belmonte, e com António Lopes Bacelar, cristão-novo, já defunto, mercador, casado com Grácia Lopes, e com António Carvalho, morador na mesma cidade, natural da Guarda, casado com uma filha de Francisco da Paz e, estando todos 4, se declararam e disseram que viviam na lei de Moisés e por sua guarda faziam o jejum do dia grande… Como se vê, António Ledesma era já viúvo, pela segunda vez. O trato da casa estaria então a cargo de sua irmã, Maria de Ledesma, 4 anos mais nova que ele e que nunca casou. Investida no papel de donade casa e educadora dos sobrinhos, Maria de Ledesma seria uma “doutrinadora” da lei de Moisés. A este respeito, Gaspar Pereira de Carvalho, filho de Catarina Ferreira Ledesma, neto de António Ledesma e Maria Ferreira de Carvalho, secretário do visconde de Ponte de Lima, diria o seguinte: - Haverá 13 anos, foi ele confitente a casa de Maria Ledesma (…) da qual tinha algumas razões de parentesco por afinidade com parentes dele confitente, e por esta razão, tinha ele confitente familiaridade com a dita Maria de Ledesma (…) que o persuadiu a que tomasse a crença na lei de Moisés.  De seguida, Gaspar falou das orações e ensinamentos de Maria Ledesma. Uma dessas orações devia ser repetida 70 vezes, passando em simultâneo as contas, tal como os cristãos repetiam a Ave-Maria, rezando o terço, e era a seguinte: Tantas graças e louvores Vos sejam dadas, Senhor, Como estrelas há no céu, areias no mar, Telhas nos telhados, águas que correm, aves que voam, Pedras compostas, pedras por compor, Louvado e engrandecido seja o nome do Senhor.  E depois de terminar as contas, devia esta reza ser oferecida, olhando-se para o nascente e falando para o céu, dizendo a oração seguinte: Divino Adonay! Recebe a minha oração, Minha rogativa, minha petição, recebe Senhor! Pouco por muito, sucio por limpo, torto por direito, Leva-me Senhor à terra onde não tenha de temer meus inimigos!  Gaspar contou que Maria Ledesma lhe fazia escrever as orações num papel para as estudar e aprender. Esse papel deu-o, 4 anos depois, à sua doutrinadora, quando já dele não precisava e deixou o Porto mudando-se para Lisboa. Registemos uma última oração, que, segundo o ensino de Maria Ledesma, devia ser rezada quando se fosse deitar: Bendito Adonay, nuestro Diós, rey del mundo! El hace cahir suhertes de sueños sobre mis ojos y alumbrame de atroceder encuentros malos y no me conturben sueños malos e tentaciones malas! Bendito Adonay, que alumbra al mundo todo con su honor!  Para além da irmã e dos filhos, em casa de António Ledesma vivia e com ele trabalhava Gaspar Rodrigues Nunes, seu primo direito, originário de Bragança e “contratado” para casar com a sua filha Catarina Ferreira Ledesma, atrás citada. Por agora, resta dizer que António Ledesma foi preso ao início de Abril de 1658, quando um verdadeiro furação arrasou a gente da nação Portuense. Na verdade, só no ano de 1658, foram arrastadas para as cadeias da inquisição mais de 70 cristãos-novos, mercadores na quase totalidade, uma boa parte deles originários da terra Trasmontana: Vila Flor, Torre de Moncorvo, Bragança, Mirandela e Vimioso. A título de exemplo das cumplicidades existentes, veja-se a seguinte declaração feita em 29.8.1658, por António Ledesma: – Disse que haverá 14 anos, na cidade do Porto, em casa de André Lopes Isidro, xn, mercador, defunto, natural de TMoncorvo, se achou com ele e com Manuel Rodrigues Isidro, que será de 36 anos e que agora vive em Lisboa e com Jerónimo Rodrigues, xn, solteiro, mercador, natural de Bayonne e com Policarpo de Oliveira, filho de Luís António de Morais, natural de Madrid e morador no Porto e estando os 5, por ocasião da Páscoa do pão ázimo, convidou o dito André Lopes Isidro a ele e aos outros com umas alfaces e bolos de pão ázimo, por guarda da lei de Moisés comeram as ditas alfaces e os bolos de pão ázimo.  No que respeita a António Ledesma, diremos que saiu no auto- -da-fé realizado em Coimbra em 23.5.1660, condenado em confisco de bens e 4 anos a remar nas galés d´el-rei. Esta parte da pena não a pôde cumprir porque saiu das masmorras da inquisição “quebrado de uma virilha e aleijado de uma mão”. Foi-lhe então comutada a pena para 4 anos de degredo em uma das terras de fronteira da província da Beira. Mais drástica foi a pena aplicada a sua irmã Maria Ledesma, cuja sentença foi lida no mesmo auto: relaxada à justiça secular.