Raúl Gomes

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Cronicando- Vozes silenciosas

Quando se viveu o primeiro confinamento e se assistia à romantização da pandemia de onde sobressaiu a frase “Andrà tutto bene”, tive a preocupação de não embarcar nessa onda e, já em março, referi que o covid não iria passar tão depressa e que “o maior teste vai ser à capacidade de resiliência de cada um, dado ser garantido que esta crise não vai desaparecer de um momento para o outro.” Não foram dotes divinatórios que estiveram por detrás da afirmação mas o facto de olhar para o que é a história da humanidade e estabelecer linhas de análise verificando que, desta pandemia para as anteriores, a única variável diferente é a confiança que em março se tinha na ciência. Passados nove meses, nem as previsões mais otimistas apontam para uma vacina de imediato. Juntando a isto o facto de um dos investigadores da Pfizer ter vindo a terreiro dizer que a vida poderá regressar ao normal no inverno de 2021, não restam dúvidas de que nem tudo vai ficar bem, nem o que virá depois será como dantes. Sendo este um problema mundial, esperava-se que os organismos internacionais fossem capazes de implementar programas que respondessem aos desafios e criassem almofadas de conforto. Porém, em nenhuma das áreas se constatou que tal acontecesse e, por algum motivo, já não se ouve falar da “bazuca” que chegaria de Bruxelas porque, se chegar, será na próxima primavera e não será entre hinos de alegria. Em concreto, hoje, tem-se apenas a incerteza dos tempos e, de novo, as agências de rating a afirmar que Portugal é um dos países que mais irá sofrer com a destruição económica. A Moody’s aponta como razões principais as reservas das empresas, as alternativas ao financiamento e os horizontes mais curtos em termos de investimento. Estes factores não são novos, como também não é novidade de que persiste na sociedade portuguesa uma incapacidade em reestruturar, flexibilizar e diversificar. Nem sempre os empresários e os sistemas são responsáveis por este quadro, mas quem tem a obrigação de planear, prever e implementar medidas que capacitem as sociedades para fazer frente às crises não está ilibado de culpa. Infelizmente, tal não acontece por falta de massa crítica, mas antes porque as estruturas que nos governam e os decisores (não só os políticos) manifestam uma exacerbada tendência para o estaticismo o que, em tempos de crise, é por demais evidente e nefasto, pois são colocadas a nu fragilidades que passam despercebidas em épocas de crescimento. No último fórum do Banco Central Europeu, o diretor do departamento de assuntos orçamentais do Fundo Monetário Internacional, Vítor Gaspar, fez saber que as projeções apontam para que a maioria dos países veja a sua situação económica e financeira agravar-se, tornando mais evidente as ameaças para as economias e o emprego. Porém, não deixará de ser irónico, que seja um ex-ministro, que aplicou o ajustamento da troika entre 2011 e 2014, a aconselhar os governos a não retirarem os apoios orçamentais antes de tempo. Todos os que não têm voz revêem-se nesta recomendação e, por este país, há muitos que já sentem as consequências desta crise. Com efeito, este é o tempo de unir esforços; mas também será o tempo da responsabilidade social e, nesta linha de pensamento, não bastará reivindicar medidas de apoio para determinados sectores, mas é a hora dos próprios sectores se assumirem como líderes para o bem comum. A unidade nacional deve manifestar-se nestes momentos e, se se quer ter um futuro menos negro, impõe-se que, no presente, todos lucrem um pouco menos para depois se ganhar um pouco mais. Em contexto de emergência pública, não faz sentido que bens essenciais continuem a manter preços que começam a ser insuportáveis e se ofereçam moratórias que, longe de resolver o aperto financeiro das famílias, vai simplesmente agravá-lo. Neste capítulo, e enquanto os grandes grupos económicos continuam a perseguir o lucro, começam a emergir bons exemplos de pequenas e médias empresas que, em contexto local, vão dando resposta a necessidades primárias de cidadãos comuns que engrossam a fila dos carenciados. Espera-se que outras entidades adiram a este movimento e, em vez de criticar o estilo comunicacional do governo, como se isso fosse determinante, que cada indivíduo introduza na sua vida as mudanças necessárias que, embora não tragam a cura, pelo menos não espalhem a doença.

Política com guião

A indiferença com que as sociedades, nomeadamente as ocidentais, têm encarado a política tem sido objeto de debate sem que, contudo, se tenha alterado a forma como esta dimensão é olhada pelas gerações que se sucedem. E se, até agora, o dedo era apontado às gerações mais novas, este sentimento é agora transversal, seja em termos de nível etário ou de grupo social. Ora, se o resultado é este, pode concluir-se que a receita ou não funcionou ou não foi aplicada, ou quem tem o dever de zelar para que todo o cidadão se sinta envolvido na vivência política decidiu não colocar este assunto na ordem do dia. Não admira pois que, sempre que surgem figuras disruptivas consigam tanto sucesso em tão pouco tempo. Ora, quando se assiste à discussão de quem irá aprovar o orçamento de estado e se perfilam os candidatos às eleições presidenciais, mais do que esgrimir argumentos sobre o modo como o dinheiro dos contribuintes vai ser gasto, parece mais relevante a reflexão sobre a forma como os valores democráticos são assumidos. Neste campo, as expectativas não poderão ser outras senão as que se esperam de quarenta e cinco anos que deveriam ter sido de plena democracia. Porém, esta quando nasceu não foi igual para todos e assim continua, desvirtuando-se o seu sentido e os valores e acentuando-se as desigualdades. Ao analisar as grandes opções orçamentais para o próximo ano, parece que, pela primeira vez, se pensou no aumento dos rendimentos das famílias, pela redução de impostos, nomeadamente o IRS, mediante a redução do que é retido na fonte. O problema é que, quando se proceder à liquidação do imposto, o valor a reembolsar será muito menor, podendo o contribuinte, em alguns casos, ser obrigado a devolver dinheiro ao estado; sobretudo e porque não haverá atualização dos escalões – o que, só por si, irá mais uma vez penalizar as famílias de classe média. Outra das medidas que, à partida, pode ser considerada positiva é o aumento do salário mínimo. É claro que, por princípio, este indicador não só é bom para a economia, como também se reveste de particular importância para as famílias. Numa lógica de mercado, esta medida irá, obviamente, aumentar a procura já que, quem mais precisa, é quem mais tem de gastar. E, nesta perspetiva, mais do que criar condições para que as famílias de baixo rendimento possam ter uma folga no seu orçamento familiar, é um estímulo ao consumo que, a não haver o critério de poupança no agregado, pode resultar num maior endividamento e no aumento do crédito malparado a curto prazo. A melhoria das condições dos grupos socialmente desfavorecidos deveria ser um desiderato nacional sobretudo porque só deste modo se poderão criar condições para que haja maior capacidade de resistir às oscilações de mercado, no futuro. Porém, o momento atual já é de crise e, se por um lado, não se pode por em causa esta necessidade, não se compreende como, no meio de uma crise, se quer pedir às empresas para aumentar os seus esforços em termos de índices remuneratórios, quando são sobejamente conhecidas as fragilidades endémicas que as constrangem. Neste campo, não se pode ser adepto das ideias da direita que considera qualquer aumento salarial como um atentado à viabilidade financeira das empresas o que coloca em causa os postos de trabalho de todos, em benefício de poucos; no entanto, qualquer medida por melhor que seja, desenquadrada do seu contexto redundará em fracasso. Fará, por isso, todo o sentido que se reforcem os programas de recuperação e as políticas orçamentais se alinham com as políticas europeias de onde poderão surgir fundos de sustentabilidade que alicercem as empresas, possibilitando assim alguns investimentos e a recuperação da cota de mercada perdida durante estes meses de pandemia. Em tempos de crise, e embora se lhe continue a chamar de pandemia, importa, sobretudo, deixar de fazer política de acordo com o guião e ser capaz de fazer rupturas com o estabelecido de modo a dar resposta a problemas que não se resolverão de outra forma e continuarão a alimentar populismos tão prejudiciais à própria democracia. Num novo guião não poderá ficar de fora a ideia de que política é mais do que partidos, e o modelo não pode continuar a assentar na ideia de um crescimento infinito quando vivemos num mundo finito.

Cidadãos e cidadania

A revista de imprensa continua a fazer jus aos dias que correm centrando-se no mesmo objeto analisado nas mais diversas perspetivas. A pandemia segue enchendo as primeiras páginas e abrindo noticiários; no entanto, a vida e o mundo não se resumem a isso e as tensões continuam a moldar a realidade fazendo avançar a história dos homens. A lei da inércia não governa as sociedades e o caminho vai-se fazendo. Neste cruzar de linhas, a polémica à volta da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento subiu mais uns degraus quando deixou de ser um facto administrativo, um quase - conflito entre uma escola e um encarregado de educação e ganhou relevo após a intervenção do secretário de estado da educação. Em síntese, numa escola de Famalicão, dois alunos do terceiro ciclo não assistiram às aulas desta disciplina porque o encarregado de educação entendeu que não deveriam pois estariam a ser inculcados valores contrários à moral do agregado familiar. Como alunos de mérito, apesar do elevado número de faltas à disciplina, a escola entendeu, melhor, o conselho de turma, que deveriam passar. O quadro aconteceu em dois anos letivos; tendo chegado à secretaria de estado, a ordem foi para que os alunos repetissem os dois anos. O encarregado de educação não concordou, colocou o caso em tribunal e, entretanto, a comunicação social fez eco da situação, dando aso a manifestos e manifestações a favor e contra. O manifesto contra, quanto se sabe, tem a assinatura de um cardeal, de um ex-presidente da República e de um ex-primeiro ministro (ambos do partido social democrata). A receita tem tudo para correr mal, sobretudo para o governo, dependendo, obviamente, como vai ser cozinhada. Antes de mais, quer a Declaração dos Direitos do Homem, no seu artigo 26º, quer a Constituição da República Portuguesa, no 36º, reconhecem o direito dos pais na escolha do tipo de educação que pretendem dar aos filhos. A aplicação destes princípios nos sistemas democráticos teve a sua atualização no entendimento dos legisladores que pressupuseram que nenhum estado se pode substituir aos pais pelo que, quando estes inscrevem as crianças na escola pública apenas delegam a função educativa em terceiros não havendo, assim, uma substituição. Desta feita, o encarregado de educação tem legitimidade para não só questionar o currículo como para o recusar, desde que o mesmo ponha em causa os valores e a moral que o mesmo prefigura na sua vida e pretende veicular aos filhos. A decisão da secretaria de estado, se por um lado, colide com direitos constitucionais, vem, finalmente, demostrar que a ideia da autonomia curricular não é levada a sério nem sequer por aqueles que, em discursos marcadamente ideológicos, a vão defendendo. De acordo com a legislação em vigor, nomeadamente o despacho-normativo17- A/2015, a decisão final sobre a avaliação do aluno é da exclusiva responsabilidade do conselho de turma. Nem sequer o diretor da escola/agrupamento pode pronunciar-se sobre a mesma por isso, caso não concorde, pode, unicamente, mandar reunir o conselho de turma para reapreciar e fundamentar; já o recurso para instâncias superiores é da competência exclusiva do encarregado de educação. Por isso, e estranhamente incompreensível, não se entende como um secretário de estado dita a retenção de dois alunos, com nível máximo a todas as disciplinas, e não interfere, quando, de acordo com o enquadramento legal, os conselhos de turma validam transições com quatro, cinco ou até sete níveis negativos. Que a disciplina de Cidadania é um campo ideológico onde a par de temas universalmente aceites são referenciados outros ideologicamente conotados com a esquerda é claro; por isso não é de estranhar que professores claramente envolvidos neste estilo trauliteiro, perguntem a alunos de seis anos se gostam mais de homens, mulheres ou dos dois géneros. O que se pode questionar é o que propõe o governo na abordagem destes temas fraturantes perante alunos de religiões mais conservadoras que a católica ou de grupos minoritários em que a homossexualidade, lesbianismo ou igualdade de género continuam a ser tabu. O paradoxo deste quadro é que para defender uma disciplina onde se pretende ensinar a tolerância e a liberdade se esteja a restringir uma das liberdades mais básicas impulsionada por uma esquerda nascida depois de 74. Este episódio que por si não passa de um mero folhetim do tempo queirosiano, coloca a nu as debilidades da democracia quando as oposições secundarizam o seu papel e se mantêm em silêncio para além do que é previsível. É bom relembrar que o ensaio para estes conteúdos foi feito em 2011 com a disciplina de Formação Cívica, também num governo PS. Alargando o espectro de análise, não deixa de ser curioso observar que, quando no poder, a direita recupere os clássicos e a literatura antiga, enquanto a esquerda se foca explicitamente nos valores. Depois disto, há apenas uma certeza: não há currículos neutros e desde sempre, quem governa tenta sempre mudar a educação.

Somos assim

É a expressão da inevitabilidade do povo português. Regista-se no léxico da mesma forma que parece estar no ADN; traduz a catástrofe e a incapacidade de fazer melhor; arrasta consigo a autocomiseração diluída no grupo. Deste modo, evita-se o confronto e a reflexão, ao mesmo tempo que se adia a mudança e a capacidade para fazer melhor. O “somos assim”, em tempos, fortalecia os laços e mantinha a coesão do grupo; perpetuava uma forma de estar e a incapacidade de fazer diferente. Quando há décadas ouvia esta expressão associada a uma outra: “pobrezinhos mas honrados”, que no seu todo dava algo como: “somos assim: pobrezinhos mas honrados!” – Cheguei a pensar que a culpa de ser pobre era da honra. Mais tarde dei por mim a culpar a ditadura e até a igreja, sobretudo os pregadores que do alto dos púlpitos vociferavam a defesa da honra e exaltavam as virtudes da pobreza. Depois, aprendi uma oração que vem do princípio dos tempos e que numa determinada parte diz: “Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes / aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias” – confesso que me agradou de sobremaneira, embora ficasse com pena dos ricos. Mas na verdade somos mesmo assim e exemplos não faltam. Uma semana após a comunicação social ter feito eco do trágico incêndio que destruiu dois canis em Santo Tirso, que levou à demissão de um diretor-geral, a inflamados discursos das forças partidárias e ao agendamento de debates de urgência, para não falar nos ânimos exaltados das massas que acorreram a insultar e a denegrir, eu, que até tenho um lema de vida: “cuido da natureza, para que a natureza cuide de nós” fui, como habitualmente, comprar ração para uma meia dúzia de coelhos que, sem estatuto de animais de companhia, têm todos os cuidados que merecem, inclusivamente, vacinas em dia. Quem me atendeu, aproveitou a familiaridade que se estabelece no comércio tradicional para dar o recado: “-Tem de dizer aos seus coelhos para se irem habituando a outra ração…”. Quis saber porquê. Simples: a empresa que a produz foi vendida a uma multinacional e vai deixar de fabricar esta ração no nosso país. Tão simples quanto isto. Somos assim: sublimamos os afectos, multiplicamos carícias, mas ninguém se insurge quando o nosso tecido empresarial vai ter a mãos estrangeiras, mesmo que deixem de produzir rações de qualidade para os animais que dizemos defender. De igual forma, somos capazes de manifestar a nossa indignação quando alguém tomba vítima de crime racista, mas até partilhamos imagens da deputada Katar Moreira durante a campanha e quando, veementemente, fez a sua defesa perante o partido pelo qual foi eleita, simplesmente porque se achou que era cómico. E face às ameaças da intitulada extrema-direita que tem acontecido nos últimos dias, quem demonstrou já a sua indignação afirmando-a na primeira pessoa? Não admira, pois quem tenha estado atento terá notado que nem a primeira figura do estado foi capaz de dizer: “Eu condeno”, por diplomacia ou outras razões, usou a primeira pessoa, a do plural, e apelou à contenção. Somos assim: juntamos a palha, deixamos acender o rastilho, mas enquanto o monte não arder, deixa-se andar. O mesmo se aplica ao que aconteceu no lar de Reguengos. Enquanto não morreram dezoito utentes, não houve a preocupação de averiguar se as regras da DGS estavam a ser cumpridas ou se haveria condições para cumprir. Quando se criaram estas respostas sociais, ninguém podia adivinhar que se iriam viver estes tempos, mas agora que se sabe e se conhecem as consequências, em vez de resolver no terreno, mandam-se preencher checklists, enquanto os utentes estão há meio ano confinados e sem expectativas de que o quadro se reverta. Somos assim: incapazes de ver o todo, focamo-nos na parte menor. E de tal modo somos assim, que o povo soube, na sua sabedoria, condensar esta forma de estar em dois provérbios: “Depois de casa roubada, trancas à porta” e “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.” Folguemos pois neste mês de agosto, porque não sabemos o que setembro nos reserva.

Haja ventura

Escrever para um jornal é ter a dita de partilhar pontos de vista sem outra pretensão que não seja o questionamento da realidade, pese embora se esteja sujeito ao escrutínio público e ao respeito pelos valores da liberdade de expressão por parte de quem nos lê. Por este facto, e tendo já ultrapassado em larga medida a meia centena de textos publicados neste jornal, aproveito este parágrafo para demonstrar o meu reconhecimento, à gerência do NORDESTE, ao seu diretor e aos leitores que me leem, sobretudo, aos que manifestam o seu ponto de vista da forma que mais lhe apraz. Nos dias que correm, que mais poderiam ser chamados dias do avesso, qualquer cidadão se confronta com a necessidade de fazer opções na sua economia diária já que o orçamento familiar tem de ser gerido de acordo com os objetivos e as finalidades que se pretende atingir. No entender de quem não é economista, o mesmo princípio deveria ser aplicado à gestão da coisa pública, sendo que, sistematicamente, se verifica o contrário, dando a impressão de que o Estado passou a ser governado por privados que, em tempo de vacas gordas o hostilizam e em época de vacas magras se agarram obstinadamente às protuberâncias que os alimentam. Está a ser assim com o Novo Banco, já o foi em 2008 com o BPN e já se prepara um novo sorvedouro de fundos públicos com o apoio à TAP. Neste caso, penso que a opinião pública deveria ser esclarecida sobre as razões que levam o executivo a querer manter uma companhia de bandeira que não deu lucros enquanto estatal e continuou a dar prejuízo quando privatizada. Dos especialistas já se ouviram comentários que apontam para a necessidade de haver uma companhia área nacional porque deste modo se podem definir as rotas que estão em linha com os interesses estratégicos do país. Até a necessidade de salvar postos de trabalho diretos já foi referida. Independentemente dos motivos evocados, nas últimas décadas somos confrontados com a necessidade de capitalizar empresas e bancos, colocando sobre o estado uma pressão financeira que não lhe permite continuar a suprimir as necessidades efetivas não de um sector mas de uma nação. Se se considerar que um estado democrático tem o dever de zelar pelo bem-estar de todos em áreas fundamentais como a saúde e a educação não vai ser possível dar resposta aos desafios quando se observam desvios de fundo para áreas que não sendo fundamentais passaram a ser consideradas essenciais, sabe-se lá porquê. Nesta conjuntura onde o cidadão comum está longe de entender os critérios que ditam determinadas opções que de pontuais se tornam sistemáticas, é compreensível que cinco cidadãos, dois deles ex-candidatos à presidência da República e um presidente da Associação Transparência e Integridade, tenham endereçado uma carta ao presidente da Assembleia da República no sentido de se analisarem os conflitos de interesse que subjazem ao exercício do cargo de deputado. De acordo com a missiva, quem consultar o site do parlamento, constata que o conflito de interesses real, potencial ou, pelo menos, aparente é uma realidade tanto nesta como em outras legislaturas. Os subscritores elencam uma série de exemplos, concluindo que na dupla condição de deputados e empresários, os parlamentares não só têm acesso a informação privilegiada, como estão em condições de condicionar a legislação em função de interesses pessoais. Ora, a não satisfação das necessidades básicas da população por falta de liquidez conduz, inevitavelmente, ao aumento de impostos até ao limite das possibilidades. A exploração mediática destas situações pouco claras, por sectores mais radicais, abre caminho ao populismo e à emergência de lideranças que se apresentam acima de qualquer suspeita. Por isso não é de estranhar que o partido liderado por André Ventura tenha atingido os índices de popularidade já que nas suas medidas parece querer combater aqui que para outros são apenas males da democracia. Seria de todo conveniente que este partido com assento parlamentar conseguisse implementar uma das medidas que propõe: “a obrigatoriedade da exclusividade no exercício do mandato de deputado.” Contudo, tal como no PAN que combatia os recibos verdes quando também ele tinha funcionários nessas condições, também o CHEGA tem uma liderança que integra a Comissão de Orçamento e Finanças e, ao mesmo tempo, trabalha para a consultora Finparten, subsidiária de um grupo da área do planeamento fiscal – que, segundo Paulo Batalha, aos microfones da TSF se dedica a ensinar aos seus clientes como fugir do radar das finanças. Face ao exposto, e vendo os caminhos da nossa democracia, resta exclamar: “Haja ventura!”.

E agora, António?

“ O povo português é absolutamente extraordinário nas crises e medíocre no regresso à normalidade.” – A frase não é minha mas sim de Costa Silva, o homem forte do momento, escolhido pelo primeiro-ministro para preparar o plano de recuperação pós-covid, Só a controvérsia gerada pela sua designação dava para escrever várias páginas, não por causa do perfil ou da competência, mas pelo que significa num país habituado a criticar por tudo e por nada. Interessa a frase, que subscrevo, e que se situa na linha de uma outra expressão, essa com mais anos, e da autoria de Jorge Dias: “O povo português passa facilmente da exaltação épica à lamentação ética”, ancorada, por sua vez, nas lamentações do grande poeta, Luís de Camões, que se queixa do desprezo a que foi votado e do estado da nação. No reinício da vida social, para além do que era previsível em termos pandémicos, somos confrontados com um mal maior que tem a ver com a ambiguidade do discurso das autoridades, associado a uma regulamentação que de tão contraditória que é, dá a impressão de se ter perdido por completo a noção da razoabilidade e da coerência na tomada de decisões. Pense-se, por exemplo, na reabertura dos jardins-de-infância e na ausência de regras para o funcionamento dos ATL’s que, por falta de legislação, continuam, até ao momento, encerrados. Mais grave ainda será a situação dos lares e das estruturas residenciais para idosos, com visitas proibidas desde o dia treze de março. Reiniciadas agora sob a batuta de um discurso sanitário preventivo, impõe restrições de tal ordem que se revelam contraproducentes, multiplicando relatos da recusa, por parte dos séniores, de aceitar visitas porque proíbe a socialização, os afetos e a proximidade. Ao esquecer outras dimensões da vida, tão ou mais importantes do que a saúde física, esquecem as autoridades que estão a segregar e a privar de um direito, aqueles que pelo simples facto de estar num espaço comunitário não lhes é permitido o regresso à nova normalidade e às rotinas que ainda lhe conferiam a singularidade de ser pessoa. Há nos lares, quem faça da ida ao café, ao cabeleireiro ou do simples passeio a âncora dos seus dias; no entanto, o estereótipo de que só vai para o lar quem já nada pode toldou a capacidade e o entendimento das autoridades obrigando esta população à continuação de um incompreensível confinamento que põe em causa liberdades e garantias. Sendo as falhas da supervisão sobejamente conhecidas, é legítimo questionar até que ponto pode o estado português garantir aos cidadãos, nomeadamente aos familiares dos utentes, que durante este período continuaram a receber o tratamento adequado, a atenção dos colaboradores e a assistência religiosa, caso a desejem. Há um longo caminho a percorrer na forma como se continua a olhar a geração dos maiores e, sobretudo, quando se conota o “idoso” com a pessoa vulnerável tão próximo do discurso idiota que os rotula de “meus bebés” ou “meus meninos” e no qual se tropeça a cada passo pelos corredores de tantas dessas estruturas. Em vez de achatar a curva da solidão, a pandemia serviu para a reforçar, em vez de se criarem programas de promoção de qualidade de vida, descurou-se o essencial. Algumas das figuras de proa e de decisores que diariamente têm aparecido nos ecrãs, estão a meia dúzia de anos, alguns menos, de entrar no grupo que agora mantêm entre quatro paredes. Passados noventa dias da declaração do estado de emergência e quando os apelos para o regresso à normalidade social se ouvem a cada instante, é lícito perguntar se, quando as autoridades de hoje, cidadãos comuns de amanhã, derem entrada num lar, também quererão estar confinadas? Hoje, tal como ontem, há apenas uma certeza: perante as leis da vida, somos todos iguais. Já não bastam os ensaios académicos, profundamente teóricos, que apontam para a necessidade de mudança no modo como se encara a velhice no século XXI. É que se aos jovens oferecemos uma escola do século dezanove, com professores do século vinte, para uma realidade do século vinte e um, aos maiores faz-se ainda pior, porque se antes eram encarados como fonte de sabedoria, hoje foram reduzidos a nada.

Cronicando - HÁ LÍDERES E ASSIM-ASSIM

Nesta nova normalidade na qual tudo pode acontecer, não havendo lugar para desafios, há ainda a perplexidade face a uma nova ordem que vai fazendo o seu caminho. Sem tempo para refletir sobre o que se está a passar, dou por mim a pensar se tudo isto não será uma experiência pavloviana e as cobaias somos nós. Desejaria, acima de tudo, que isto terminasse e alguém analise os conceitos-chave com que a comunicação social nos bombardeou desde o dia treze de março e observasse a sua evolução nestes dois meses de confinamento, sobretudo, do discurso político do presidente da república e primeiro-ministro e a redundância que os mesmos apresentaram. 
As novas rotinas já se estão a instalar-se e, não fosse a necessidade das dinâmicas económicas seguirem o fluxo, continuaríamos confinados um pouco à semelhança dos habitantes da lendária aldeia retratada no livro das Aventuras de João Sem Medo. Esta situação não será de todo má desde que se continue a confiar nas lideranças e se considere o Estado paternalista e que estará sempre aí para ajudar. O problema é que governar uma nação não é governar uma casa e, qualquer primeiro-ministro necessita de delegar. Para isso é que há a figura dos ministros em função das áreas fundamentais que organizam a sociedade. E também aqui há exemplos de verdadeiras lideranças e depois há os assim-assim. Neste grupo, inserem-se aqueles que não sendo bons comunicadores, carecem de estratégias políticas e de capacidades técnicas que respondam de eficazmente aos desafios, em tempos de pandemia. E deste grupo emerge a educação que tem andado numa constante deriva e, escudando-se atrás da pretensa autonomia das escolas, não soube responder nem dar orientações claras a quem está no terreno.
Hoje, o fascínio das aulas síncronas já passou e o número dos que assistem à telescola decresceu 50%. Não vamos falar dos novos heróis, vilipendiados até há pouco, que num esforço titânico preparam excelentes aulas que maravilharam os pais, nem tão pouco dos encarregados de educação que interrompendo aulas acusam a professora de insensível ou lançam imprecações bem piores. Concentremo-nos na violação de um dos princípios fundamentais do cidadão que é o direito à privacidade, claramente posto em causa quando o professor, a pretexto de melhor comunicação, exige ao aluno que mantenha a webcam ligada e esta atitude vai sendo respaldada por diretores de agrupamento que, lá está, sob a capa da autonomia tomam decisões contrárias aos preceitos democráticos e não se ouviu nem se leu uma única linha em que a tutela clarifique o que é legal ou deixa de o ser.
Se a partir de determinado momento, deixou de fazer sentido aquela ideia da “escola para todos”, em tempos de pandemia é por demais evidente que a escola pública não é mesmo para todos. A desigualdade no acesso aos meios informáticos coloca a nu as dificuldades que há em muitas das casas portuguesas e a resposta foi diversa conforme o aluno esteja no meio urbano ou no rural. Não é o apoio das juntas de freguesia ou a colaboração da GNR que colmata as dificuldades pois há quem considere que um telemóvel basta para aceder às aulas síncronas, quando outros pensam ser obrigatório o uso do computador.  
Com o regresso à escola, no dia dezoito, não só se evidenciou que as comunidades educativas ainda não são máquinas como não se teve em consideração o preço da interioridade. Como quer a tutela que um aluno assista às aulas de manhã numa escola e esteja às catorze no seu domicílio a mais de cem quilómetros a assistir às sessões síncronas? – É que na província há os deslocados e quem tivesse alugado quarto… e também há quem esteja no estrangeiro e não consiga regressar.
Dividir as turmas para manter o distanciamento social poder-se-ia considerar uma boa medida, até porque há muito se reclama pela redução do número de alunos. No entanto, também é verdade que os agrupamentos já preparam o novo ano letivo e, surpreendentemente, nada foi necessário fazer em termos de candidaturas já que, a pretexto da pandemia, por ordem do ministério, as direções gerais tomaram a iniciativa de preencher os formulários com igual número de alunos ao do ano de 2019/2020, pelo que voltaremos a ter turmas de 36 alunos. em alguns casos.
Com efeito, ou a pandemia foi um pré-teste para novos tempos que se avizinham ou o sistema educativo é o parente pobre onde tudo é assim-assim, e publicamente me retrato da reação extemporânea que tive quando um estudioso destas questões afirmou: “A escola de hoje é o mundo do faz de conta onde qualquer um pode reinar”.

 

O bem do mal

“Deus perdoa, a natureza não perdoa!” – Vociferava o presbítero nos já longínquos anos 80 do século passado. Bem podia ser este o mote de uma reflexão sobre os pecados da humanidade ou de um discurso apocalíptico. De pecados, cada um sabe dos seus e quanto a discursos… ninguém me encomendou o sermão nem tão pouco partilho teorias milenaristas. Por isso, quanto ao tema do momento, acredito que também ele há de passar, aos poucos iremos esquecer, mas nem tudo ficará como antes. Decerto que nos motores de busca as pesquisas sobre o Covid-19 se manterão no top por mais algum tempo, restando-nos a esperança de que as perdas não sejam demasiadas e o governo continue a saber coordenar tal como tem feito até agora.

Depois da romantização do vírus e de um mês de estado de emergência, bem para todos, continua a poetizar-se a situação; ainda não sei se este é um mecanismo psicológico de reação a algo que assusta, ou ainda não houve a capacidade coletiva de entender que, depois disto, nada será como dantes. Os sinais, a cada dia que passa vão aparecendo: é a família do lado que tem dinheiro apenas para pagar as despesas deste mês; é a outra onde antes havia dois salários passou a haver um; são os quatro filhos que faziam três refeições na escola (dois suplementos e o almoço) e agora estão sete dias em casa e continuam a comer, numa expressão só: perda de rendimentos. Esta é a realidade próxima que começa a emergir porque não há forma de se esconder. Por isto, não admira que os especialistas tracem cenários onde a pobreza não só vai aumentar como irá atingir índices próximos daquilo que foi há trinta anos. Não partilho, contudo, de um quadro tão negro. Basta pensar que, em termos habitacionais, o índice de construção nos últimos anos atingiu um expoente máximo, pelo que não creio que iremos ver, de novo, a chuva a entrar pelo telhado enquanto as camas se cobrem com plásticos e alguidares. Também não vislumbro que se volte a andar de burro no centro das cidades, mesmo na província. No entanto, muitos terão de aprender a viver com menos e onde agora há piscina e jardim, talvez vejamos hortícolas e leguminosas – o retorno à agricultura familiar há muito defendido por princípios ecológicos. Talvez se tenha de redescobrir a natureza e o equilíbrio dos ecossistemas e que não é necessário ter televisões com cem canais e, sobretudo, entender que se tem de cuidar da natureza para que a natureza cuide de nós.

Como já sou do tempo da ditadura isto não me assusta. Aterroriza-me, isso sim, o preço que iremos pagar para manter a saúde: prescindir da liberdade individual. Neste novo mundo que aos poucos vai surgindo, já não será apenas a internet a vasculhar a nossa história, mas as próprias instituições de um mundo supostamente democrático poderão continuar a monitorizar dados pessoais sob uma pretensa proteção sanitária. Os dados biométricos já não serão exclusivo de seguradoras a quem concedemos autorização, mas não será tão alienado quanto isso pensar-se que órgãos governamentais irão dispor dos mesmos hora a hora – as app’s já estão aí e em novembro passado, participei numa discussão onde se debatia a possibilidade de dados desta natureza virem a ser partilhados entre o ministério da educação, saúde e segurança social. À medida que cada um prescindir dos seus direitos, sacrificará a sua capacidade de ação num mundo que será cada vez menos liberal. Da minha parte, já constatei o que significa a medição da temperatura ao transpor o limiar de uma porta e, cumprindo o regulamento, a obrigatoriedade de desinfectar mãos e calçado, bem como manter o distanciamento social o que implicou não abraçar, não beijar nem saudar a quem, durante anos, o fiz.

Creio que, em breve, compreenderemos que esta pandemia não se resolve com o confinamento – vai ser necessário muito mais e, entre esse mais, estarão os valores universais da humanidade com destaque para o respeito para com o outro, a solidariedade, o altruísmo e, sobretudo, o equilíbrio entre nós e a natureza. Nesta encruzilhada, exigem-se lideranças fortes, capazes de dar estabilidade às nações mas também são necessários visionários que pondo de lado os modelos matemáticos, as projeções e as probabilidades, sejam capazes de apontar novos caminhos. A velha Europa aprenda com os erros do passado e saiba manter-se unidade porque o futuro é incerto. 

O teste

Nunca a palavra fez tão sentido como hoje. Por mais que a internet e os dicionários modernos teimem em reafirmar a origem inglesa do conceito, quem conhece a etimologia das palavras portuguesas, sabe perfeitamente que esta deriva de tripallium – um instrumento de tortura, constituído por três paus, sob o qual os romanos obrigavam os prisioneiros de guerra a passar num ato de humilhação pública. Os dias que correm são, também, um teste à escala global que não deixa de fora qualquer dimensão da vida humana; abarca todos os continentes e ninguém se sente seguro, por mais subterfúgios que a mente consiga gerar para fazer frente a qualquer ameaça. Sendo esta capacidade que permite sobreviver em tempos de guerra, de sorrir no meio do caos e de olhar com esperança para um tempo futuro que se deseja auspicioso, neste momento, assiste-nos apenas a perplexidade e o medo de não saber como vai ser o amanhã.
À medida que o tempo passa, mais a ameaça do agora designado Covid 19 alastra pelo mundo e, no dia de hoje, fonte credível noticiou que já se encontra por terras transmontanas – facto que por si só atesta da sua perigosidade e da capacidade de disseminação que possui. Aqui reside uma primeira questão relacionada com a estratégia que cada país tem em conter a expansão do surto. As críticas às autoridades chinesas vieram de todos os quadrantes porque, face à sua política de controlo de informação, terão impedido que se conhecesse a real dimensão do surto, na fase inicial, o que impediu os profissionais de saúde de atuar de modo esclarecido. Todavia, quando o foco chegou a Itália já se conhecia o potencial mortífero do vírus e nem por isso se atuou a tempo e a horas. Nas cidades turísticas relativizava-se e nos polos industriais não se implementaram medidas que reduzissem a possibilidade de contágio. Também por cá aconteceu o mesmo – as instituições deram os primeiros passos para segurança dos cidadãos, mas estes relativizaram transformando um período de quarentena numa agradável ida à praia ou numas férias antecipadas. Pelo exposto, diremos que o primeiro teste será ao civismo e responsabilidade dos cidadãos em democracia, sob pena de se provar que sem estes dois valores de nada serve a liberdade individual que não passa de um mero adereço transformado em libertinagem.
A robustez da comunidade europeia também está debaixo de um olhar atento e o modo como se irá avaliar a forma como lidou com esta crise, será determinante na forma como se irá estruturar daqui em diante. Na eventualidade de continuar a reagir mal e de forma lenta, não deixará de ter consequências e ninguém pode, neste momento, assegurar que outros países não seguirão o exemplo do Reino Unido. Hoje, pode dizer-se que está aquém das expectativas. Se já foi adiantado um pacote financeiro para minimizar os efeitos, a solidariedade está a falhar no terreno. Quanto se sabe, Itália recebeu apenas ajuda da China em material sanitário e equipas médicas que irão partilhar a sua experiência com os seus congéneres. Aos apelos para limitar o espaço Schengen responderam os governos de que não faria sentido pois as ameaças vinham de todo o lado e há direitos que não podem ser postos em causa de forma intempestiva. No entanto, não consta que tal tenha permitido afetar recursos em áreas mais problemáticas dando a ideia de estarmos efetivamente num espaço comum.
Contudo, o maior teste vai ser à capacidade de resiliência de cada um dado ser garantido que esta crise não vai desaparecer de um momento para o outro. O cancelamento das atividades, bem como a perda de competitividade conduzirão à perda financeira generalizada pelo que quando se houve falar em crise iminente deve levar-se a sério e as famílias que começavam a ver a sua condição melhorar podem vir a ser confrontadas com uma nova recessão que deitará por terra qualquer sensação de reposição do poder de compra e de salários para valores de dois mil e dez.
Também o equilíbrio de cada um está comprometido se, face ao encerramento das instituições, e às notícias que a cada instante vão surgindo. É necessário por isso que se cumpram as regras de convívio social e as normas de sanidade que se conhecem, independentemente das apreciações que se possam fazer à atuação da direção geral de saúde ou ao governo. O número de vítimas é real e a quebra na cadeia de transmissão está na aprendizagem de novos hábitos. Sabe-se que a europa é hoje o epicentro da crise e ninguém sabe quando irá terminar o surto nem qual será o cenário de amanhã.
Como referiu o primeiro-ministro António Costa, esta é uma luta pela nossa própria sobrevivência e, como espécie, convém que se tenha a humildade de aprender com as outras que em tempos de crise se protegem face ao perigo. A ameaça já provou ser real e, se quisermos continuar com o mesmo estilo de vida, este momento é de sacrifício e de reflexão sobre práticas rotineiras que não dão prazer mas podem tirar-nos a vida.

Calcanhar de Aquiles

Fevereiro quente… – em tempos não muito longínquos bastava que alguém pronunciasse estas duas palavras para, de entre o meu povo, alguém responder: — Traz o diabo no ventre! – Era o tempo em que não se estudavam os provérbios na escola e a sabedoria popular condensava em frases curtas um saber de gerações, em que não se estudavam grafos nem inequações mas se sabia como calcular a área de um terreno ou quanto era um quinto de qualquer coisa. Tudo passa, mas este fevereiro é quente e, como se não bastasse, bissexto.

Como tudo muda, o mês continua a trazer boas notícias para o governo: a estimativa do INE aponta para um crescimento de dois por cento da economia portuguesa no ano de 2019, terminando o quarto trimestre com o produto interno bruto a crescer mais três décimas que o período anterior. Como se tal não fosse suficiente, estes resultados devem-se à recuperação das exportações, havendo, por outro lado, a diminuição das importações, o que equilibra a balança comercial e é um excelente sinal para o mundo. Se quisermos continuar a ver o copo meio vazio, basta estar atentos às recomendações das agências de notação e às advertências sobre a dívida pública; já o copo meio cheio diz-nos que, embora a conjuntura e o novo figurino parlamentar sejam diferentes, existe um primeiro-ministro com capacidade de negociação capaz de manter o executivo em funções até ao fim. A aprovação deste orçamento evidenciou as capacidades demonstradas na primeira legislatura, sendo que a percepção foi mais a de que nenhum partido deseja uma crise política nesta altura.

Tudo isto é compreendido pela opinião pública que, habituada a coexistir com estereótipos e paradigmas, se surpreende quando o líder da UGT veio a público desafiar António Costa para lhe dizer “olhos nos olhos” – expressão do próprio – se tem algum problema pessoal com ele. Na cultura ocidental, olhar nos olhos tanto pode ser um ato de amor como de desafio, e nós, povo, alheados dos meandros da política podemos interpretar a bel-prazer as intenções de Carlos Silva que ficam mais evidentes ao sabermos que o chefe de governo nunca recebeu o líder da central sindical afecta ao Partido Socialista, e que este apoiou António José Seguro na liderança partidária contra Costa.

Tendo a obrigação de saber traçar perfis e analisar organizações, mais do que política e economia, tenho a dizer que se está perante um clássico nas relações de poder, nas quais o indivíduo após algum tempo de permanência no cargo se vai esquecendo do seu papel de líder e deixa emergir as caraterísticas pessoais que, a pouco e pouco, o vão transformando em anti-herói; em política é extremamente fácil acontecer. Embora compreensível, o mesmo princípio pode aplicar-se à outra parte. Com efeito, quando uma central sindical tem um líder que durante quatro anos não estabelece contacto direto com outro líder, não só vê a sua posição fragilizada em termos negociais com o patronato e outras organizações, como é questionável a sua capacidade em criar cenários de afirmação da autoridade que necessita de ter. O caso adquire ainda maior relevância quando, na referida, Carlos Silva faz questão de frisar que até Passos Coelho o recebeu várias vezes “demonstrando o respeito institucional e a dignidade da UGT na sociedade.” Conhecendo-se o que o fantasma passista significa para as esquerdas, considero que tal argumento deita por terra qualquer expectativa que houvesse na reversão do quadro, sobretudo, porque o tempo não joga a favor da central sindical e, especialmente do líder, que estará de saída.

Acima de tudo, lamenta-se que, nesta como em outras situações, os líderes coloquem as suas vaidades pessoais acima do bem-comum e de provocação em provocação se vá minando um clima de paz tão necessário à concertação social e imprescindível à mesa das negociações. Pode a central falar com secretários de estado e outros ministros, mas é por demais evidente a deterioração das relações institucionais. Como cidadão lamento, sobretudo, que quando, pela primeira vez há um PS que se afasta do lastro do despesismo que se associava ao seu ADN, apareça agora como uma estrutura a desintegrar-se e em risco de implosão, é que “Todo o reino que luta contra si mesmo, será arruinado.” (Mateus, 12:25).