A revista de imprensa continua a fazer jus aos dias que correm centrando-se no mesmo objeto analisado nas mais diversas perspetivas. A pandemia segue enchendo as primeiras páginas e abrindo noticiários; no entanto, a vida e o mundo não se resumem a isso e as tensões continuam a moldar a realidade fazendo avançar a história dos homens. A lei da inércia não governa as sociedades e o caminho vai-se fazendo. Neste cruzar de linhas, a polémica à volta da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento subiu mais uns degraus quando deixou de ser um facto administrativo, um quase - conflito entre uma escola e um encarregado de educação e ganhou relevo após a intervenção do secretário de estado da educação. Em síntese, numa escola de Famalicão, dois alunos do terceiro ciclo não assistiram às aulas desta disciplina porque o encarregado de educação entendeu que não deveriam pois estariam a ser inculcados valores contrários à moral do agregado familiar. Como alunos de mérito, apesar do elevado número de faltas à disciplina, a escola entendeu, melhor, o conselho de turma, que deveriam passar. O quadro aconteceu em dois anos letivos; tendo chegado à secretaria de estado, a ordem foi para que os alunos repetissem os dois anos. O encarregado de educação não concordou, colocou o caso em tribunal e, entretanto, a comunicação social fez eco da situação, dando aso a manifestos e manifestações a favor e contra. O manifesto contra, quanto se sabe, tem a assinatura de um cardeal, de um ex-presidente da República e de um ex-primeiro ministro (ambos do partido social democrata). A receita tem tudo para correr mal, sobretudo para o governo, dependendo, obviamente, como vai ser cozinhada. Antes de mais, quer a Declaração dos Direitos do Homem, no seu artigo 26º, quer a Constituição da República Portuguesa, no 36º, reconhecem o direito dos pais na escolha do tipo de educação que pretendem dar aos filhos. A aplicação destes princípios nos sistemas democráticos teve a sua atualização no entendimento dos legisladores que pressupuseram que nenhum estado se pode substituir aos pais pelo que, quando estes inscrevem as crianças na escola pública apenas delegam a função educativa em terceiros não havendo, assim, uma substituição. Desta feita, o encarregado de educação tem legitimidade para não só questionar o currículo como para o recusar, desde que o mesmo ponha em causa os valores e a moral que o mesmo prefigura na sua vida e pretende veicular aos filhos. A decisão da secretaria de estado, se por um lado, colide com direitos constitucionais, vem, finalmente, demostrar que a ideia da autonomia curricular não é levada a sério nem sequer por aqueles que, em discursos marcadamente ideológicos, a vão defendendo. De acordo com a legislação em vigor, nomeadamente o despacho-normativo17- A/2015, a decisão final sobre a avaliação do aluno é da exclusiva responsabilidade do conselho de turma. Nem sequer o diretor da escola/agrupamento pode pronunciar-se sobre a mesma por isso, caso não concorde, pode, unicamente, mandar reunir o conselho de turma para reapreciar e fundamentar; já o recurso para instâncias superiores é da competência exclusiva do encarregado de educação. Por isso, e estranhamente incompreensível, não se entende como um secretário de estado dita a retenção de dois alunos, com nível máximo a todas as disciplinas, e não interfere, quando, de acordo com o enquadramento legal, os conselhos de turma validam transições com quatro, cinco ou até sete níveis negativos. Que a disciplina de Cidadania é um campo ideológico onde a par de temas universalmente aceites são referenciados outros ideologicamente conotados com a esquerda é claro; por isso não é de estranhar que professores claramente envolvidos neste estilo trauliteiro, perguntem a alunos de seis anos se gostam mais de homens, mulheres ou dos dois géneros. O que se pode questionar é o que propõe o governo na abordagem destes temas fraturantes perante alunos de religiões mais conservadoras que a católica ou de grupos minoritários em que a homossexualidade, lesbianismo ou igualdade de género continuam a ser tabu. O paradoxo deste quadro é que para defender uma disciplina onde se pretende ensinar a tolerância e a liberdade se esteja a restringir uma das liberdades mais básicas impulsionada por uma esquerda nascida depois de 74. Este episódio que por si não passa de um mero folhetim do tempo queirosiano, coloca a nu as debilidades da democracia quando as oposições secundarizam o seu papel e se mantêm em silêncio para além do que é previsível. É bom relembrar que o ensaio para estes conteúdos foi feito em 2011 com a disciplina de Formação Cívica, também num governo PS. Alargando o espectro de análise, não deixa de ser curioso observar que, quando no poder, a direita recupere os clássicos e a literatura antiga, enquanto a esquerda se foca explicitamente nos valores. Depois disto, há apenas uma certeza: não há currículos neutros e desde sempre, quem governa tenta sempre mudar a educação.