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Horário de ponta

Está na hora. Diz-se frequentemente esta frase seja a que propósito for, mas sempre com a ideia de que o tempo marca o momento para se decidir alguma coisa. Pois é tempo de muitas decisões. Há muito que eu disse que seríamos atingidos por uma vaga ainda maior deste exército invisível que nos vai matando aos poucos sem pedir qualquer permissão. A cobardia que serve de manto a este soldado da desgraça, não tem servido de alerta aos que o esperam atentamente na esperança de o apanharem desprevenido. Não. Esqueçam, que ele não se mostra. Os resultados que nos últimos dias têm vindo a lume, são assustadores, mas nem por isso fazem travar a sua investida e o seu avanço. Há uma desorganização tremenda neste exército de combate onde não parece haver nem chefe nem comando. A hora atual é aflitiva. O momento é difícil e aterrador. Mas como bons portugueses, sempre pensamos que tudo vai passar desde que não nos atinja a nós. Só nos preocupamos quando nos batem à porta. E se ao abrir a porta, entra um vendaval, qual tsunami, então ficamos verdadeiramente assustados e rezamos a todos os santos para que tudo acabe em bem. Mas não. Já morreram mais de cinquenta pessoas só num dia e nada nos diz que vai diminuir. Na Europa o caso não é melhor, antes pelo contrário. Vemos uma França de joelhos e sem rumo certo, vemos uma Espanha sem tino e a querer ser mais irresponsável que o próprio vírus e um Reino Unido completamente à deriva, sem saber se há de confinar ou não ou, ainda pior se vai mandar toda a gente para casa durante umas largas semanas. Está na hora de tomar decisões. Até aqui criticávamos Bolsonaro e Trump pelo irrisório das afirmações produzidas a respeito do vírus e da leviandade com que encaravam a situação. Hoje, apesar de continuarmos a criticá-los, também nós somos criticados, não pela leviandade, mas pela falta de rumo, de assertividade no combate sério a este assassino. A culpa é da economia! Claro. Depois do que se passou aquando da primeira vaga, ninguém quer perder mais dinheiro, nem aumentar o desemprego e estagnar a economia. Seria péssimo. Muito mau. Mas há que fazer alguma coisa. Não fazer nada ou muito pouco é ainda pior. A verdade é que estamos na hora de ponta. Estamos no equador desta bola de neve e temos que a derreter o mais depressa possível, doa a quem doer. Não é suficiente lamentar-nos. Temos de agir. O governo, em Portugal, parece querer levar as coisas com paninhos quentes e ver se passa a doença. É certo que não fácil tomar decisões que impliquem grandes prejuízos para a economia nacional e para os portugueses em geral. Mas alguma coisa terá de ser feita. As escolas vivem momentos críticos. Algumas turmas já estão confinadas. Há alunos em casa em isolamento profilático. Perdem as suas aulas e os seus colegas têm medo do seu regresso. Os professores, apanhados neste vendaval, acabam por ser contagiados e vão para casa em confinamento forçado, isolando-se o mais possível, da família e dos amigos. Aos poucos, todos se vão confinando. Todos se vão isolando. Todos têm receio. Ninguém anda na rua desarmado. Todos trazem a sua arma, mas nem ela é suficiente para se defenderem dos ataques alheios. O inimigo é invisível. É desesperante lutar contra o que se não vê. Por tudo isto e muito mais, é tempo de todos assumirmos a responsabilidade neste combate, de todos fazermos parte deste exército que se quer mais organizado e combativo. O pedido do governo e do Presidente da República é só e apenas mais do muito que já sabemos. Aceitar as exigências que nos são impostas, é o mínimo que podemos fazer para ajudar neste combate severo, cujo objectivo é libertar-nos desta prisão terrível que nos mantém aprisionados e longe de quem amamos. Não há visitas. Não há abraços. Não há beijos. Há somente desejos contidos. É hora de ponta. Há demasiado tráfico, mas temos de respeitar os sinais de trânsito. É hora de baixar os números do desespero.

Dá que pensar…

Ao ver através da janela televisiva as longas e demoradas filas de mulheres e homens do credo benfiquista (também sou crente) a esperarem durante horas a sua vez de votarem em tempos de pandemia, de distanciamento, de máscara sobre a boca e o nariz, recordei-me do Tratado de Paixões da Alma do filósofo mais conhecido por Penso, logo existo, ou seja René Descartes. O fenómeno da atracção humana pelo jogo tem motivado a atenção de eminentes figuras das áreas da cultura, da filosofia, da antropologia, da sociologia e disciplinas artísticas. Desde Johan Huizinga a Roger Callois, passando por Georges Simmel, Norbert Elias, Desmond Morris e Lévi- -Strauss, cito os que li atentamente, legaram-nos elementos suficientes para reflectirmos acerca desta paixão não raras vezes a resvalar para o grau zero da irracionalidade, do desprezo por si próprio, da queda na cloaca de todo o género de indignidades. Aquela multidão de votantes receberam incómodos que se lhe fossem impostos soltariam gritos, imprecações e queixas ululantes, a receberem a frialdade da noite, expostos ao contágio de um vírus virulento evidenciando enorme apetite por humanos de grossa e perigosa idade é vibrante exemplo de que as paixões tal como os gostos segundo os Romanos não se discutem. Um apressado regresso a Bragança dos anos sessenta do século passado faz emergir um nutrido conjunto de apaixonados pelos seus clubes, os ora chamados tifosi de gritos, insultos e algumas cenas de pugilato, porém longe do hooliganismo que personifico em A Laranja Mecânica. O benfiquista Sr. Alberto Rodrigues da Sapataria da Moda ostentava na lapela do casaco o emblema ornado de pedras preciosas e o cartão de sócio, não mostrava exuberâncias durante ou após os jogos, ao invés os também sócios. O Sr. Álvaro do Flórida e irmão Manuel inflamavam-se logo que o árbitro silvava a descontento, enquanto o Sr. Augusto Poças (Pincelas) ficava furibundo, o benquisto Augusto deslocou-se a Berna, aparecendo triunfante ao lado do goleador Águas provocando emoções gozosas e invejas na cidade. Sim, noutro patamar, o dos apaixonados sem a insígnia de sócio, caso do Fígaro Carlos Gardel ou o Sr. Cândido Parente o extravasar de paixão pelo clube que, durante muitos anos prescindiu de jogadores estrangeiros pois abastecia-se nas colónias, era total e, todos sofriam quais mártires modernos na altura das derrotas. Então e os «doentes» de outros clubes? Existiam em bom números – calmos, acelerados, furiosos e fanáticos –, recordo a bonomia do portista Sr. Queirós, as birras do também portista Sr. Roque da Silva Moura, os dois faziam reluzir os custosos emblemas, as imprecações do cauteleiro Sr. Guedes, também dos andrades, no entanto, a perder rotundamente no confronto com o sportinguista Toilas que merece a Senhoria mas deu-me vontade de o apelidar sem ela porque assim lhe chamávamos. O pasteleiro Sr. Ribeiro respingava em língua de fogo, de dragão, a torto e a direito ao receber um dichote, mesmo que enrolado num bolo de arroz. Outros nomes ficam no tinteiro da memória porque o espaço não estica, dos mais novos trago à colação o meu estimado amigo Adalberto Castro, adepto do mítico animal dragão, o qual sempre aceitou as minhas ironias, ironias de um benfiquista fiel leitor do trissemanário A Bola, filho de um incandescente que ia rezar nas igrejas pedindo benesses ao Altíssimo destinadas a concederem vitória ao Glorioso. Se as preces não surtiam efeito, salpicava-o, humuradamente, de pouco valerem as orações interesseiras. Não apreciava o comentário. Por influência do Ivo Pinho (águia d’ouro e outros águias douradas e prateados) durante algum tempo frequentei o Estádio da Luz, os dogmáticos eram muitos e vesgos, idêntica visão distorcida pulula no reino dos lagartos e parque dos animais criados pelo medo dos homens o breu do desconhecido. Agora, há indícios de regressarmos à época dos alumbrados, os misticismos derivados da pandemia, a sulcarem as redes sociais e as televisões procuram iluminarmos no emaranhado das trevas pandémicas, por isso o jogo rei, o futebol, que os ortodoxos marxistas e maoístas diziam ser uma das expressões da alienação do povo, sustenta o revigoramento da paixão pelo viver no coração de muitos milhões de pessoas confinadas a pensamentos turvos, tristes e trágicos. Daí a prova de vitalidade no dia e noite de 28 de Outubro. Nos últimos anos vou a Bragança em voo de pássaro, numa dessas viagens fui a uma casa de comeres chamada Copinhos. Trata-se de uma eclatante capela benfiquista à qual espero voltar quando a peste sucumbir. Não se esqueçam: usem máscara!

As dívidas de uma Herança

Quando alguém morre, o seu património é transmitido aos seus herdeiros. A lei estabelece as regras de sucessão dos bens e direitos, mas também das dívidas. Ora, de acordo com a lei, ninguém é obrigado a aceitar a herança, mas se a aceitar, tem que recebê-la por inteiro, incluindo eventuais dívidas. Por este motivo, salientamos a importância de verificar muito bem aquilo que se herda, uma vez que em termos económicos, a herança pode ou não ser uma benesse. Antes de mais, importa explicar como é que uma pessoa se torna herdeira. Sempre que alguém morre, e havendo herdeiros, deve iniciar-se um procedimento de Habilitação de Herdeiros que consiste no estabelecimento jurídico da qualidade de herdeiro, permitindo identificar os beneficiários de uma herança. Por via da regra, este procedimento é feito pelo cabeça de casal, a quem cabe administrar a herança até ao momento da partilha. Estes herdeiros deverão, então, tomar uma decisão importante: aceitar ou repudiar a herança, sabendo que esta decisão é tomada sobre a totalidade do valor herdado, ou seja, património e dívidas (se as houver). Importa saber que as dívidas do falecido só têm que ser pagas até se esgotar o valor correspondente ao valor da herança. Se a dívida for inferior ao património herdado, pagam-se as dívidas e os herdeiros recebem o valor remanescente. Por outro lado, se o valor da dívida for superior à herança, a parte da dívida que não puder ser paga ficará (em princípio) a fundo perdido. Quando o herdeiro aceita pura e simplesmente a herança, a responsabilidade das dívidas não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe ao herdeiro provar a inexistência de bens suficientes para cumprimento dessa dívida. Se não o fizer, poderá chegar a responder ilimitadamente (com os seus bens pessoais). Assim, para evitar fazer essa prova (inexistência de bens suficientes para pagamento das dívidas), o herdeiro deve aceitar a herança em benefício do inventário, o que implica a preposição de um processo de natureza judicial, nos termos do qual será apurado qual o ativo e passivo da herança, limitando a sua responsabilidade às forças do próprio acervo inventariado. Outra possibilidade passa pelo repúdio da herança. O herdeiro (por escritura pública, caso existam bens móveis) declara que não aceita a herança, rejeitando-a. Deixa então de ter a qualidade de herdeiro, perdendo todos os direitos, mas também os deveres. Recusada a herança, o quinhão vago será disputado pelos restantes herdeiros, privilegiando-se o “direito de representação”. Nesta e noutras situações relacionadas com direito das sucessões, não facilite: faça valer os seus direitos, sendo o solicitador um profissional habilitado para o auxiliar.

Cristela Freixo

Pós e contas

Boas tardes, forte gente. Espero que a castanha esteja a pingar do jeito que esperavam e que o esforço para a apanhar seja bem recompensado. A economia trasmontana agradece. Como é natural as pessoas têm-me perguntado como está a situação do vírus aqui pela China. Como sabem deixei de falar sobre este tema por não haver nada que um leigo possa acrescentar. Já toda a gente está farta de saber o que isto é e o que há a fazer, de maneira que não vale a pena ser mais uma voz a insistir nas mesmas pesarosas e batidas teclas. Enquanto foi uma realidade que apareceu primeiro por estas bandas podia valer a pena tentar alertar as pessoas, mas a partir do momento em que se tornou uma questão global e quotidiana dei por findado o meu contributo para esse cansativo chover no molhado. É dar tempo à ciência para percorrer o seu caminho e irmos todos cumprindo o nosso papel para lidar com esta realidade. Mas hoje abro uma excepção após todos estes largos meses porque tenho recebido muitas mensagens a perguntar sobre a situação por estas bandas. Ora bem, aqui na China não tem havido Covid. A vida decorre normalmente como antes. Tirando as máscaras obrigatórias nos transportes públicos, umas medições de temperatura aqui e ali... Honestamente, quase só me lembro da existência do Covid quando leio as notícias de Portugal e vejo que o país e a Europa estão novamente mergulhados num epidémico caos. Não é que aqui se viva exactamente um pós-Covid porque ninguém está em condições de decretar “pós” coisa nenhuma, mas é uma vida normal quase como sempre foi. A sombra paira, continua a haver muita gente a usar máscara, houve uns casos no mês passado (cento e tal) em Qingdao, mas a coisa ficou por ali, até porque os nove milhões de habitantes da cidade foram todos chamados a fazer testes. Mas então o que é que a China tem ou faz para que não haja Covid e se possa sentir mais segurança ou viver mais próximo da tão almejada normalidade? Simples, a China continua com as fronteiras (praticamente) fechadas. Desde Março até hoje pouquíssima coisa mudou em termos de circulação de pessoas nas fronteiras. Os cidadãos nacionais podem regressar e têm regressado muitos, principalmente vindos dos EUA. Tenho conhecido bastantes chineses a viver lá há muitos anos que me dizem que o país está um caos - violência, insegurança, hostilidade - neste momento é uma sombra de si próprio e muitos chineses estão a voltar à procura de refúgio, na esperança de que a trumpestade passe e a coisa volte a assentar. Para os estrangeiros, o regresso à China é bem mais difícil, muito burocrático, só para quem tem visto de trabalho ou de negócios e mesmo nesses casos as instituições têm de superar montanhas de burocracia para conseguir trazer trabalhadores estrangeiros de volta. Os estudantes internacionais, por exemplo, ainda estão impedidos de regressar à China sem data anunciada. Há pouquíssimos voos e poucas companhias autorizadas a fazer voos internacionais, os aeroportos estão às moscas e os poucos voos que há estão a preços proibitivos. Ao chegar, uns e outros, estrangeiros e nacionais, têm de fazer duas semanas de quarentena em hotéis designados para o efeito, normalmente próximos do aeroporto. Em alguns casos as pessoas depois desses quinze dias ainda têm de ficar mais uma semana em casa, se posteriormente tiverem de se deslocar para outra província (praticamente só os aeroportos de Pequim e Xangai estão com voos intercontinentais). Mais, agora antes do embarque são exigidos dois testes feitos até 48 horas: o teste do Covid e também o teste serológico. Caso algum deles dê positivo, a pessoa não pode embarcar para cá. De maneira que a moral da história é muito simples: aqui não há Covid porque as portas estão (continuam) fechadas a sete chaves. Não as confinadas portas de casa, mas as portas do país. E, segundo parece, pelos menos é essa a percepção das pessoas, não vão abrir tão cedo. Não enquanto não se controlar a pandemia pelo mundo fora ou enquanto não houver uma vacina para proteger, segundo estimam, cerca de 20 a 25% da população. Diria que a normalidade, ao que à circulação de pessoas diz respeito, não vai chegar antes de 2022. E pronto, no caso do Covid não há mesmo milagres. Há apenas medidas que se podem ou não tomar. Antes que alguns comecem desde já a dar azo ou a corroborar certas teorias, é preciso dizer que não só o país está vedado como o Covid trouxe um rombo gigantesco. Aqui tudo é maior em escala. A economia começa a recuperar, mas largos milhares (milhões?) de pessoas ficaram sem trabalho, imensos negócios foram ao ar, muita gente por conta própria foi trabalhar para outrem, outros mudaram de ramo profissional, as famílias perderam poder de compra, alunos ficaram sem poder continuar a estudar. E aqui as pessoas não tiveram direito a lay-off, foi mesmo chapa zero durante meses a fio... Eu próprio, passe o pleonasmo, conheço gente que se enquadra em todas essas situações e tenho ouvido outras tantas histórias desta natureza, por isso embora desconheça números oficiais, não tenho dúvidas da abismal dimensão destes problemas. Por tudo isso, esta é uma normalidade ainda com um pós muito desconfiado e com imensas contas à vida para fazer. Um abraço e bons magustos a todos, na medida do que o bom senso dos novos tempos possibilitar.

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Prender judeus parece caça de coelhos

Ser Tabelião do público, judicial e notas, era, em tempos de outrora, emprego de muita importância e responsabilidade, concedido por mercê d´el-Rei. Ainda de maior responsabilidade, importância e proveito era o cargo de Correio. Pois, na cidade de Bragança, pelos anos de 1700, Francisco Correia acumulava estes dois empregos. E ainda um terceiro, menos remunerado e de menor visibilidade, mas para o qual se exigia muita confiança e seriedade – o de escrivão do Fisco. Competia-lhe fazer o registo de todos os bens, móveis e imóveis sequestrados às pessoas, nos respetivos termos, que eram mandadas prender pela inquisição. Para além desses empregos, Francisco Correia tinha uma fazenda avaliada em 4 mil cruzados. Homem de elevado estatuto social, por todos considerado cristão-velho, quis ascender ao reduzido círculo dos Familiares da inquisição que, na área do concelho de Bragança, o decreto regimental publicado em 1693,  limitava a 8 titulares. Não o atingiu, porque não conseguiu provar que Maria da Rocha, sua avó materna, era cristã-velha. Sabia-se apenas que era filha de uma mulher que tinha vindo da Galiza para Soeira, Bragança, dizendo alguns que esta viera como criada de servir e o patrão, Francisco da Rocha, lhe arranjara a tal filha, que casou com Francisco Vilela, do Porto, fixando o casal a morada em Soeira.  A acrescentar suspeitas, apareceram testemunhas a dizer que ele era parente de Maria Teixeira,  que morava na Rua Direita de Bragança e foi presa pela inquisição, bem como o seu filho, José Correia. Vejamos agora como devia proceder-se ao sequestro dos bens, socorrendo-nos do Professor António Borges Coelho que escreve: - Ao recado por escrito dos inquisidores, anunciando que se vai proceder à prisão de fulano com sequestro de bens, o juiz e escrivão do Fisco comparecerão “com muita diligência” chamando à sua mão “todas as chaves das tais casas, e das arcas e escritórios” para que se não possa sonegar nem esconder cousa alguma. Estará presente, além do escrivão e do juiz do Fisco, um outro escrivão ou tabelião, para dar fé do inventário.  Resulta, assim, que a presença de Francisco Correia era indispensável quando em Bragança se prendiam os “hereges” com sequestro de bens, para fazer o registo de tudo, incluindo os que o juiz do Fisco mandava vender em “pública almoeda”. A propósito destes leilões de bens sequestrados (nomeadamente os bens perecíveis, como o pão, o vinho e outros géneros alimentícios), deve dizer-se que, em 5.2.1622, o inquisidor-geral Fernão Martins Mascarenhas concedeu autorização aos próprios funcionários e agentes da inquisição para neles licitar. Está-se mesmo a ver… como os homens do santo ofício e os seus amigos devoravam os bens dos presos. Por outro lado, os que eram presos, ou desconfiavam que o poderiam ser, procuravam maneira de os esconder, ou, em conluio com parentes e amigos, dizer que determinados bens eram destes e não deles e combinar dívidas e créditos, que lhe devolveriam mais tarde, ou entregariam a seus familiares. Todos os meios que a imaginação permite utilizariam para salvar o máximo de seus bens. Por seu turno, as prisões eram efetuadas com todo o segredo, muitas vezes ao domingo, à saída da missa, de modo a evitar que os réus fugissem ou oferecessem resistência. Sim, que às vezes resistiam, como aconteceu com João Oliveira, de Carção, que lutou e esfaqueou com uma navalha o padre que o ia prender, armado com uma catana, quando aquele vinha por um caminho com uma carga de folha de amoreira.  Ainda sobre prisões e sequestro de bens, será oportuno transcrever das “Notícias Recônditas” o seguinte excerto: - Na mesma hora que o prendem, lhe poem na rua sua mulher e filhos. Atravessam-lhe as portas. Fazem inventário de todos os bens. E como se a mulher não tivera parte neles, fica despojada de tudo, sem nenhum remédio. E quando são marido e mulher ambos presos, ficam os filhos em tal desamparo que, em muitas ocasiões, meninos e meninas de 3 e 4 anos se escondem nos alpendres das igrejas e nos fornos (…) pedindo pelas portas. Situemo-nos agora em Bragança, no ano de 1713, ano que começou com mais uma vaga de prisões, logo no mês de Janeiro. Com efeito, foram então presas umas duas dezenas de pessoas, acusadas de judaísmo, entre elas, Miguel da Silva, um homem “riquíssimo de mais de 15 mil cruzados”. Não sabemos quanto rendeu a “caça” (o termo é de Francisco Correia) para o Fisco e que bens terão sido leiloados em “pública almoeda”. Muito poucos e bem pouco renderiam, a crer nas queixas daquele escrivão do Fisco. A razão é que, em Bragança, naquela época, porque não havia segredo, antes se anunciava as prisões, com “4 badaladas”. Depois, as prisões eram feitas pelo comandante militar, que era de fora e não conhecia as pessoas e ia com os soldados pelas ruas, perguntando por fulano e sicrano. Efetuadas as prisões, cada soldado procurava abotoar-se ao que podia, se bem que, entretanto, na generalidade dos casos, as casas fossem “limpas” de bens móveis pelo próprio e seus familiares e amigos, como já se disse. De tudo isto, melhor que nós, deu conta aos inquisidores de Coimbra o escrivão Francisco Correia, em carta de 3.7.1713. É um documento interessantíssimo, revelador do ambiente que rodeava as prisões, em nome da inquisição. Vejam: - Muitas vezes tenho dobrado papel para fazer a V. Senhorias esta queixa e nunca me resolvi a fazê-la, com os receios de que fosse menos aceite. A causa é que, como sou escrivão das execuções do fisco e juntamente pretender, há muitos anos, para ser familiar, entendi sempre ser menos querido de V. Senhorias. Mas como vejo as prisões serem feitas cada vez pior, com tão má forma e disposição que os bens dos presos os furtam ou lhe ficam outra vez em casa, por isso me decidi fazer este aviso, levado do zelo do santo ofício e dos bens do fisco. (…) E peço a V. Senhorias segredo, que isto bate com um pároco e com um general de armas, que me podem deter desgraças no sertão da terra; porém pode haver outros meios e caminhos para tudo se segurar. Este comissário, assim que vem ordens desse santo tribunal para prender, as entrega ao general das armas para que as dê execução, e é certo que cada um deles quer acertar, porém como este fidalgo não conhece a gente da terra, se fia em cabos, maiores e menores, de maneira que para prenderem Fulano, vão 3 ou 4 e vão a diversas ruas, perguntando por Fulano. E para este efeito, para avisar-se para as prisões, dão 4 badaladas em um sino, aviso total para o judaísmo se levantar da cama e se pôr em fugida. Este é o desacerto para as prisões e outros muitos que, por não ser molesto, não relato. Só digo que, no dia de qualquer prisão, parece caça de coelhos. E por esta causa, os soldados furtam os bens, e outras muitas pessoas e talvez os mesmos de casa, como foi a prisão feita a António Mendes, sapateiro, que foi preso em 6 de Junho passado, e 4 horas depois de preso, se deu parte á justiça, tempo que, quando eu entrei em casa, não havia outra coisa nela senão 1370 (réis) de inventário, tendo ele feito 100 000 3 dias antes, em coiros bezerros e sapataria. Um homem com tanto trato e cabedal, se não lhe achou mais, e desta sorte se têm sumido os bens dos outros presos, (…) e a que teve maior descaminho foi o de Miguel da Silva, que sendo riquíssimo, de mais de 15 mil cruzados, se lhe não sequestraram 100 mil réis. E a causa foi que lhe deram assalto em casa para o prender, e como não o achassem, o foram prender 5 léguas desta cidade, e entretanto os de casa a limparam. E ultimamente nem um preso tem ido sem haver roubo na casa em seus bens, ou seja feito pelos da casa ou pelos guardas militares que se lhe põem, de que se tem tirado devassas, mas com isso o fisco perde o seu e as prisões vão como vão. Esta mesma presa que leva o portador desta, romperam a parede da casa para lhe furtar vinte e tantas formas de fazer sapatos que se acharam em outra casa, já vendidas. O mesmo que foi nesta e em todas as mais. E por isso, seus sequestros não chegam para os alimentos e fica o santo ofício leso e o fisco grandemente prejudicado. V. Senhoria porá remédio nisto como melhor lhe parecer que, se não fora em mim os muitos anos que tenho de idade, havia de ser eu o portador deste aviso e não havia de ser por papel, a respeito do segredo…