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NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Luísa (Sara) Maria Bernarda – Mme Raba (1712-11-05 – 1784)

Muito se tem escrito sobre a família Raba. Algo esquecida, porém, tem permanecido a matriarca, Luísa Maria Bernarda, acaso a responsável maior pelo sucesso da família. Este artigo pretende fazer um pouco de justiça.
Do lado materno, as raízes mais antigas de Luísa Bernarda encontram-se em Torre de Moncorvo onde, no século XVI, vivia o casal constituído por Gaspar Fernandes e Beatriz Vaz, ambos cristãos-novos e que foram os pais de Catarina Martins, (1) que em 1652, foi prisioneira na inquisição de Coimbra, sendo casada com Luís Lopes Tinoco, curtidor de profissão. Duas das 4 filhas de Catarina e Tinoco foram casar em Chacim: Isabel Rodrigues, com Jorge Lopes, curtidor e Maria Henriques, com André Lopes, que negociava em sedas. (2)
André Lopes e Maria Henriques tiveram 3 filhos e 4 filhas. Uma delas, nascida em Chacim em 22 de Maio de 1698, foi batizada com o nome de Catarina Henriques, a qual casou em 14 de Setembro de 1707 com Bernardo Lopes, (3) este nascido em Benavente, Espanha, já viúvo e com vários filhos de Ana Pereira, sua mulher.
O casal fixou residência em Bragança, e ali lhe nasceu um filho (André Lopes (4) dos Santos) e 3 filhas: Brites Bernarda, Branca Maria Bernarda e Luísa Maria Bernarda, de quem vamos falar. Antes, porém, refira-se que a casa de morada de Catarina e Bernardo era na Rua Direita, onde ele faleceu em 12 de Novembro de 1746, com testamento onde deixou a obrigação de 100 missas, ao preço de 80 réis cada uma.
Nasceu Luísa Maria Bernarda em 5.11.1712, em Bragança. Casou em 9 de Fevereiro de 1728, com Francisco Henriques Nunes, Raba, tendeiro, uns 26 anos mais velho do que ela. 9 meses depois, em 11 de Dezembro,  nasceu o primeiro filho do casal, que foi batizado com o nome de José Henriques Nunes. Outros 7 se seguiram, nascendo o último, Francisco Henriques Nunes em 26.2.1743, ou seja: meio ano depois de falecer o seu progenitor que, entretanto ascendera à prestigiada classe dos assentistas. (5) E isso nos permite pensar que a família viveria em Bragança com bastante desafogo. De modo que dois dos filhos, o André e o Caetano, depois de fazer os estudos preparatórios em Bragança, certamente no colégio dos Jesuítas, rumaram para a universidade de Coimbra.
Andava a Luísa Bernarda nos 37 anos quando o vendaval da inquisição a arrastou para as masmorras do tribunal de Coimbra, em 29 de Julho de 1749. Vendo a mãe presa e levada para Coimbra, o filho mais velho ter-se-á metido também a caminho. E receando ser preso, ele e o irmão André (que era já estudante de latim na universidade) foram também apresentar-se no mesmo tribunal que lhes instaurou os respetivos processos (disso falaremos depois) e os mandou embora. Pior sorte caiu sobre o irmão Bernardo que foi preso em Setembro seguinte. A mãe e os dois filhos mais velhos (o José e o Bernardo) compareceram no auto de fé de 22 de Agosto de 1751. O André, que contava apenas 15 anos quando lhe foi instaurado o processo, haveria de comparecer em auto privado de 10 de Maio de 1755. (6)
Obviamente que a inquisição comeu muitos dos bens da família e arruinou a empresa dos Raba. Para mais era a vergonha de aparecerem vestidos com os sambenitos, expostos a vexações constantes em Bragança. Por tudo isso os Raba decidiram ir para Lisboa e dali espreitar ocasião favorável para abandonar o país e rumar a terras de França onde, aliás, estavam já estabelecidos parentes seus, nomeadamente o seu sobrinho André Lopes Pereira (filho de sua meia irmã Catarina Pereira) e Bernardo Lopes Pereira (filho de seu meio irmão Jerónimo Lopes Pereira e de Branca Maria tia  materna de Luísa Bernarda). Aliás, existe correspondência trocada entre o primeiro e sua mãe, entre Bordéus e Bragança, via Lisboa, muito elucidativa dos medos e angústias provocados pela perseguição inquisitorial e das intenções de fuga daquela gente. (7) E além das cartas, vinham também moedas de ouro, para a família se remediar.
Difícil era encontrar um barco que os levasse a França, pois que a vigilância dos esbirros da inquisição era muito apertada. Menos apertada com os barcos ingleses, dadas as relações privilegiadas e a intensidade do comércio marítimo entre os dois países. Optaram por isso por embarcar num navio inglês para Londres e dali para Bordéus, em França. Com os filhos, Bernarda levou também uma sobrinha, chamada Catarina Ferreira, que estava prometida em casamento com o seu filho mais velho.
A chegada a Bordéus terá acontecido em 24 de Junho de 1763. Luísa Raba viveu ainda por mais de 20 anos, vindo a falecer em 1784, com 72 anos de idade, sendo sepultada no cemitério judaico estabelecido em 1764 na então chamada “cours d´Espagne”, atual “Cours d´Yser”. Assistiu à morte de alguns filhos e ao casamento de outros. Conseguiu manter unidos os filhos e com eles construir uma sociedade comercial intercontinental que amealhou fantástica fortuna. Em 1785 a sociedade formada pelos irmãos Raba e pela mãe e dois negociantes de Port-au-Prince, da Silva e Dulièpre tinha um ativo de 444 197 libras, das quais 272 764 pertenciam aos Raba, que também possuíam 365 895 libras em créditos. (8) A unidade da família e a ligação à terra natal, Bragança, são a marca mais expressiva da educação que a matriarca soube incutir no ânimo dos filhos. Resta dizer que em Bordéus toda a família aderiu ao judaísmo e que, na ocasião, Luísa Bernarda tomou o nome judeu de Sara.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-ANTT, inq. Coimbra, pº3642, de Catarina Martins.
2-IDEM, pº 6195, de Isabel Rodrigues; pº 7325, de Jorge Lopes; pº 5743, de Maria Henriques.
3-IDEM, pº 7214, de Bernardo Lopes.
4-IDEM, pº 11602, de André Lopes dos Santos.
5-IDEM.
6- IDEM, pº 9766, de Bernardo Henriques Nunes; pº 156, de André Lopes Henriques. Os processos de Luísa Maria Bernarda e de José Henriques Nunes não estão localizados nos ficheiros disponibilizados pelo ANTT. Os dados referidos foram tirados do processo de Brites Pereira (nº 2450, da inquisição de Lisboa) sobrinha e prima, respetivamente.
7-ANTT, inq. Lisboa, pº 11602, de André Lopes dos Santos.
8-CAVIGNAC, Jean – Dictionaire du Judaisme Bordelais aux XVIII e XIX siècles.
CRAVO, António – No caminho judaico, passando pelos criptojudeus portugueses, em França, pp. 180-191, edição do autor, Salselas, 2016.

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

UM LUGARZINHO AO SOL

Agora que a época estival desapareceu e meio mundo regressa ao trabalho, seria bom continuar a ter este sol magnífico das praias e o descanso que o mês de agosto propicia. Há quem se contente com guardar recordações, outros realizam-se através das selfies que postam nas redes sociais divulgando aos quatro ventos por onde andaram nem que seja por, apenas, alguns minutos. Também há quem se alegre com o sonho de poder guardar um pouco do calor do verão para os meses de inverno. Se ainda há quem assim pense, não é menos verdade que a estação estival está cada vez mais atípica, e não falamos apenas de clima.
Este verão, para além do que já é habitual, apresentou como novidade uma nova espécie de político que, a propagar-se, irá dar origem a uma classe, pelo menos diferente, e para a qual a palavra rentrée deixará de ter significado. Esta nova espécie é aquela que nem no mês de agosto se cala e continua presente à hora dos telejornais e das antenas abertas como se não houvesse amanhã. Também é verdade que estão aptos a comentar os mais variados assuntos já que o jornalismo também se perpetua com as mesmas perguntas. Recordam-me um amigo, político, que em momentos pós-eleitorais e de indecisão quanto aos lugares a ocupar na máquina do estado, dizia a cada instante que era da sua natureza estar preparado para assumir qualquer cargo, fosse qual fosse o ministério. Pior do que isso, é chegar setembro e apercebermo-nos de que os discursos já não mobilizam, a Atalaia perdeu o fulgor, o Pontal diluiu-se no fumo das matas e  as promessas duram menos que uma lua.
Até agora, os portugueses iam para férias descansados e regressavam sabendo que iam encontrar tudo na mesma. Mas este agosto, como se sabe, abriu com surpresas. Numa dimensão de que poucos se aperceberam, agosto serviu para, no distrito aparecerem mais uma ou duas escolas de formação profissional, privadas, quando em julho os governantes juravam a pés juntos, e em Conselho Municipal de Educação, que nada disto iria acontecer até porque a densidade geográfica não se coaduna com tais necessidades.Com maior impacto foi a notícia de que as casas com maior exposição ao sol e qualidade ambiental assim-assim iriam pagar mais imposto. Temos de concordar que, em termos de timing, não podia a governação escolher melhor mês, já que em agosto o sol entra em todo o canto deste nosso país. Acredito também que tal notícia terá evitado imensos escaldões pois, qualquer cidadão cumpridor, ao sentir o sol a bater-lhe no dorso, enquanto se estirava na praia, não hesitaria em recolher-se debaixo do guarda-sol ao lembrar-se do que o esperará quando receber o IMI com o acréscimo do astro-rei para pagar. 
Em tempos não muito distantes, para tratar da tísica, os médicos aconselhavam os pacientes a terem longos períodos de repouso, de preferência no campo e em zonas ensolaradas evitando os locais mais frios e húmidos. Hoje, parece que já não importa as condições de salubridade e tão habituados estamos ao artificial e aos remédios que consideram desnecessária tanta preocupação com a localização do sítio onde descansamos. Numa era de super-homens quem se importa com o modo como o cidadão comum vive, desde que continue a pagar o que se perdoa às grandes multinacionais? A estas sob a designação de “incentivos fiscais” ou a coberto das interpretações mais enviusadas da lei não só se lhe constroem fortes alicerces, como também se lhes permite ter todos os lugares que queiram e, de preferência, ao sol e acima das nossas cabeças.
Curioso não deixará de ser que a mesma governação que introduz este coeficiente a sancionar os imóveis com maior exposição solar, pertence ao espectro político dos que apresentam incentivos fiscais para quem opte pelo uso de energias renováveis e instale painéis solares. Concordo que é pouco estético ver aqueles retângulos espalhados pelos telhados. Era preferível os gatos ou até as pombas… mas, a menos que se esteja a pensar numa solução semelhante à adotada pela aldeia de Rjukan na Noruega, não prevejo como podem ser conciliadas duas medidas tão díspares na sua essência.  
Para nós, povo, ainda há soluções. Uma será continuar a morar na casa dos pais, a outra pagar o imposto, ou caso nenhuma destas esteja ao alcance teremos de nos contentar com um buraquinho que, quanto mais escuro for, melhor será. Não se admirem depois quando for notícia que famílias inteiras cavaram uma toca no subsolo e, qual cena kafkiana, se transformaram em toupeiras. No entanto, para alegria de todos e uma pontinha de inveja de alguns, há quem procure um lugarzinho ao sol por outras bandas; seja na Goldam-Sachs, na mexicana Pemex ou ainda na Arrow-Global. “-Estes sim, são cá dos meus!” – Diria um professor dos tempos idos e que também já partiu… para eternidade.

Igualdade, Inclusão e Excelência desportiva

Nos jogos paralímpicos do Rio 2016, Portugal está representado por uma delegação de 37 atletas que competem em 7 modalidades: atletismo, boccia, ciclismo, equitação, judo, natação e tiro. O histórico das nossas participações remonta a 1972 com 11 atletas na equipa masculina de Basquetebol em cadeira de rodas. É notável a presença de 264 atletas portugueses em 9 jogos e 11 modalidades. O sucesso é só por si revelador do esforço, vontade e determinação do Comité Paralímpico português, que já arrecadou 88 medalhas, das quais 25 medalhas de ouro.
É admirável a capacidade de resiliência destes jovens atletas que, ultrapassando todas as barreiras físicas, conseguem a motivação para cumprir objetivos, alcançar resultados e celebrar em grupo os sucessos de todos. Vidas difíceis, muitas vezes determinadas por fatores genéticos, que devem servir como referência a todos nós. Um dia a dia que surpreende pela positividade com que se encara a vida. A família, os amigos, o trabalho e toda a comunidade têm a obrigação de incentivar projetos sociais vocacionados para tratar e acompanhar pessoas diferentes. Os responsáveis políticos têm o dever de minorar barreiras físicas, promover a igualdade de oportunidades, acentuar a proteção de crianças, jovens e adultos de forma a proporcionar a todos uma vida confortável e feliz.
Muito se tem feito, neste Governo, em matéria de inclusão social. A criação da Secretaria de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, liderada por Ana Sofia Antunes, a primeira secretária de estado cega, foi uma conquista de relevância política e institucional. Foram definidas “…um conjunto de prioridades ao nível daquelas que serão as revisões de acordos existentes para respostas sociais da reabilitação, do acolhimento e das residências...vão ver-me sempre lutar pelas soluções que são pela inclusão e não pela segregação.”
A nível autárquico, é reconhecida a necessidade de priorizar alguns aspetos arquitetónicos, como a eliminação das barreiras físicas à mobilidade, a promoção e apoio a projetos locais de inclusão social e qualificar as respostas a situações urgentes. A aposta em programas específicos para a inclusão de pessoas com deficiência deve também ser cumprido de forma escrupulosa pelos serviços públicos.
Em Mirandela, a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental APPACDM, realizou – como habitualmente, uma sardinhada solidária. Um momento de festa e celebração que reuniu utentes e familiares, trabalhadores, amigos e dirigentes. Música, dança e animação fizeram parte da festa. Um ambiente fantástico que serviu também para unir laços de uma família motivada em superar os obstáculos da vida. Naquele final de tarde, em conversa com o nosso conterrâneo e amigo Hilário, fiquei a conhecer melhor a dedicação ao trabalho na Escola Superior de Comunicação, Gestão e Turismo em Mirandela e a paixão pelo desporto. Uma vida dedicada aos outros e à amizade retribuída de muitos com os quais partilha momentos felizes.
Como nos jogos paralímpicos, à distância de um oceano, a participação portuguesa sob o lema “Igualdade, Inclusão e Excelência desportiva”, revela a admiração incondicional de vidas de força, coragem e vontade de vencer. Força Portugal!

A VISÃO (e o resto)

Desde há dez anos que a Fundação Champalimaud atribui o Prémio da Visão no valor de um milhão de euros no que é o maior prémio mundial nesta área. É conhecido nos meios científicos como o Nobel da Cegueira. Inicialmente apresentado nos jardins do mosteiro dos Jerónimos, transferiu-se para o belíssimo anfiteatro que a Champalimaud tem em Algés, com vista para a foz do Tejo proporcionando expetáculos de grande beleza. Este ano cumpriu a tradição com um ecrã gigante em pleno Tejo de onde surgiu, qual tritão, André Gago declamando o Mostrengo de Fernando Pessoa acompanhado à guitarra portuguesa em diálogo com uma pequena orquestra clássica que tocava no topo leste e com um grupo de percussão que marcava o ritmo no cume poente. A cerimónia do décimo aniversário trouxe como novidade ser a primeira patrocinada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e isso não foi de menos, como se verá.
Leonor Beleza abriu, cumprindo a tradição e repetindo uma história encantadora que já tinha contado numa edição anterior com a justificação de estarem na assistência dois dos seus protagonistas e que não resisto a partilhar. Este casal lusitano fez uma longa viagem pela Índia em scooter levando sempre visível a bandeira nacional. Pararam num local remoto, no sul, junto a um restaurante de estrada em cuja esplanada um velho indiano estava sentado. Despertou-lhe a atenção a bandeira verde e vermelha ostentada pelos forasteiros e, apontando para ela, começou a falar algo que estes não entendiam. Um tradutor ocasional, permitiu-lhes um breve diálogo. O que o velho dizia era muito simples: sabia bem de que país era aquele símbolo pois fora devido ao financiamento vindo de lá que ele podia agora ver. O primeiro beneficiário do Prémio Visão foi o Instituto Indiano Atavind Eye Care System que tem como maior finalidade erradicar a cegueira evitável. Tem a sua ação nas zonas rurais junto de pessoas sem recursos, tendo sempre o cuidado de explicar aos seus utentes a fonte dos financiamentos que proporcionam os tratamentos, gratuitos para quem não os pode pagar.
A curiosidade sobre a forma como Marcelo iria marcar a diferença, não saiu defraudada. Começou por garantir que o seu nome não era precedido por qualquer título universitário o que tem especial significado naquele lugar povoado, é certo pela nata da sociedade lisboeta mas, igualmente, pela elite dos cientistas que exercem em terras lusas. O anterior foi sempre anunciado como Professor Aníbal Cavaco Silva. Estando presente seria óbvio que Marcelo não o iria ignorar. Como iria tratá-lo? Com a argúcia que lhe é reconhecida dirigiu-se ao seu antecessor e a Ramalho Eanes, também presente,  tratando-os por “Presidente”. Não deixou, contudo de deixar uma subtil alfinetada quando, perante a emocionada Maria Luisa Champalimaud, anunciou a condecorção a título póstumo de António Champalimaud, lamentando que a “República” não tivesse já reconhecido o gesto generoso do filantropo. Independentemente dos juízos sobre a carreira profissional do empresário assumindo claramente que ele próprio no passado o elogiara algumas vezes e criticara algumas outras.

Do calçar

Repetiu-se o desconcerto do ano passado. Honrei um convite de envernizamento social. Há quem fure, penetre, mova mundos e fundos de modo a farandolar uma horas, raramente gasto tempo em tais passadiços de corte e costura linguístico de exibição de roupinhas cintilantes, sapatos tacão de agulha e quejandos. Às vezes tem de ser. Enrolo o corpo em roupa a condizer, calço sapatos confortáveis. Prefiro os resistentes Sebago.
No ano ido arregalei os olhos a fim de melhor apreciar os chinelos nos pés de estimado amigo, o efeito colhido levou-me a soltar chiste sonoro: “esses chinelos lembram os dos carteiristas, silenciosos e aptos a fugas rapidíssimas!”. Dos sorrisos passámos às gargalhadas quando um ministro do governo passista chegou até nós trazendo nos pés chinelos idênticos, só diferiam na cor do pano.
Desta feita dois dos convivas arrastavam chanatos, não eram outra coisa, lembrei-me de imediato dos lastrados nos pés de reformada profissional da mais antiga profissão do Mundo residente na Boavista (Bragança), a qual dava um toque de classe aos seus porque um deles tinha redondo buraco a permitir ao dedão mostrar-se revelando unha de luto pesado.
A diferença centra-se nos materiais empregues, no lustroso feérico pelo efeito do Sol e das luzes, mas não passam de chanatos, de luxo, chanatos apenas. Um dos visados galhofava acusando-me de terrível conservador, só faltou comparar-me ao Botas de Santa Comba, que tinha o pé boto.
O melhor surgiu depois, rapazão do aparato revisteiro cor-de-rosa exibia a torto-e-a-direito sapatos cujas solas eram vermelhas benfiquistas, tanto as mostrou, que só o receio de enfadar o anfitrião impediu-me dizer ao pimpão para dependurar os sapatos nas orelhas, pois não sendo de abano à Rodrigues dos Santos, não eram ratadas.
Fora do quadrado colorido dos comentários misturados em tem-te em pé e bebidas refrescantes, o visto revela quão grande foi a transformação no vestir e calçar dos portugueses nos últimos quarenta anos, longe vão os tempos (ainda bem) das socas abertas e fechadas, dos socos cravejados de brochas e bota de atanado a defenderem os pés da maioria da população que até aos anos sessenta do século passado em grande parte andava descalça.
Agora ninguém se espanta ao ver luzir faiscantes sapatilhas em pessoas de avançada idade, agora ninguém se benze quando partes generosas dos corpos se revelam nas ruas e cafés, pois bem, para a história da estupidez autocrata ficou a ordem de prisão do estudante de Vinhas, a mando da mulher do governador civil de Bragança. Para a história da bacoquice os olhares de inveja e estultícia de gente tida como assisada ao contemplar o casacão/sobretudo de couro verde e gola farfalhuda de pele, bem vestido pelo Fernando Tozé, no seu regresso de Londres, já no dealbar dos anos setenta.
Enquanto permaneci na velha urbe brigantina, já detentor de fundos a possibilitar tal, calçava sapatos segundo as indicações do Sr. Vitorino (o Vitorino) alma-mater da Sapataria da Moda. Além de atilado vendedor, o Vitorino também conseguia meter na ordem um menino gordo, possuído da doença de S. Vito, (traquina), em permanente desassossego, sobrinho neto do Senhor Alberto Rodrigues.
O menino era parente de formosa rapariga, mal ela assomava à janela do segundo andar do prédio da Sapataria, recolhia olhares admirativos e cobiçosos de homens e rapazes de todos os talantes, sem suficiente talento para a conquistar. O menino cresceu, enveredou pela carreira política, tem sabido manter-se na bancada central. Chama-se Pedro Pinto.
Entre sandálias abertas, à romana, os turistas adoram-nas, é vê-los sentados rente ao Tejo a tirá-las e a enfiarem o indicador de uma das mãos nos intervalos dos bípedes no fito de coçarem o sebo, e os usuais sapatos de atacadores, perpassa cromática miríade de artefactos chamados calçado, a jorrar mais-valias tão necessárias ao revigoramento da economia portuguesa.
O primeiro-ministro foi a Milão participar na sofisticada e extravagante Feira Mundial do calçado. Fez bem. Quanto mais exportarmos melhor. A competição é feroz, especialmente vinda do Brasil. O caso das havaianas rasas.
Num espaço do El Corte Inglês vendem-se havaianas ao modo de pãezinhos nas padarias. Não lhe vejo diferenças relativamente aos chanatos, pior, são ruidosas no arrastar, obrigam-nos a fixar calosidades pintalgadas de surro negro.
Os meninos pobres das aldeias escondiam-nas no pó acumulado nos caminhos. Descalços recebiam frescura enterrando os pés nos torrões desfeitos pelo sol abrasador.
Nunca devemos esquecer as agruras suportadas pelos nossos ancestrais, não nos caem os parentes à lama por causa disso.
Bertoldos sem vergonha têm vergonha do mau passadiço dos pais e avós. Desavergonhados!

Raid agrícola por terras da Lombada

Ter, 13/09/2016 - 09:51


A ninguém passa pela ca­beça o fenómeno do amor e amizade da família do tio João. No início deste mês o nosso Chico Cubo, artista do povo no acordeão e órgão, comemorou as suas bodas de ouro de vida: 50 anos. Ofereceu um jantar a cerca de 80 pessoas, no pavilhão multiusos de São Julião de Palácios. Parte desse grupo era da família do tio João, pessoas que andaram muitos quilómetros, desde Murça, Carrazeda de Ansiães e de al­gumas aldeias do concelho de Bragança.

Setembro, sangue e cinzas

Ter, 13/09/2016 - 09:34


No nosso hemisfério o mês de Setembro ainda é tempo de festa, de fartura de frutos que perfumam os ares e nos concedem instantes de eternidade, quando lhes mordemos a polpa e de promessas de vinho novo, esse néctar que as olímpicas criaturas nos revelaram, valorizando a liberdade e autonomia, que