Falando de… A Caça na Literatura Portuguesa, de Júlio Carvalho

PUB.

Somos Bragança. E os bragançanos, ufanos do seu rincão, celebram mais um ano da sua cidade, fazendo vincar que se trata da nona cidade mais antiga do país.
Em tempos não muito recuados, Santa Rita Xisto, estudante talentoso em dias de boémia, denominou-a de Coimbra em miniatura. E a cidade foi crescendo. Ultrapassou as costuras dos seus limites. O Fervença parece pedir meças aos rios de grande caudal. As ruas alargaram-se e alindaram-se. O comboio de grandes recordações, inopinadamente subtraído, foi substituído pelos modernos autocarros que atravessam Portugal do Minho ao Algarve. Gente capaz, briosa e de talento tenta mostrar a cidade ao país, orgulhando-se do trabalho feito.
As Escolas não param. O Instituto Politécnico vai atraindo gentes e faz gala de ter dentro de si uma investigadora de nível mundial. Honra ao mérito. A edilidade não esqueceu e em momento aprazado todos aplaudiram. O trabalho, muito trabalho a merecer honras e a ecoar nos presentes.
A cidade está viva. Desafia o conhecimento. Agentes locais espraiam-se no desenvolvimento. Praticam a memória. Mnemósine não descansa. Festeja-se a palavra e mostram-se as capacidades.
E Bragança acontece. Em Bragança vai acontecendo. A inquietação e a insatisfação são marcas de água das gentes que não se acomodam e tentam perpetuar talento e saber, desafiando outros que virão na sua esteira.
A realidade inspira-nos. O trabalho, o lazer e a diversão cabem em nós, porque não partilhar com os outros, lembrando tempos vividos?
Júlio  Carvalho que se afirma desconhecido caçador, mas que aprecia a arte de caçar, cidadão de um Portugal de algures, que um dia foi de abalada por terras de Vera Cruz, onde se fez homem e estudou, em Bragança criou raízes. Fez amizades, afinou o verbo e ensinou. Escreveu. Escreveu muito e oralizou mais e um dia ambicionou legar o que fez dele gente: um livro.
A Caça na Literatura Portuguesa, na sua dimensão, que saibamos, é um livro inédito nas nossas letras. Pires Cabral já havia escrito Páginas de caça na Literatura de Trás-os-Montes, outros à caça dedicaram o seu saber, lembremo-nos de A caça na sociedade aristocrática dos séculos XII a XV, de Vera Grilo. Júlio de Carvalho foi mais longe, distanciando-se dos seus prógonos. Servindo-se de 188 obras, de 110 autores, em cerca de 350 páginas de texto, sete de bibliografia e 277 notas de rodapé, numa pesquisa condicionada à sua biblioteca, “convida-nos” a entrar por um acervo com limites a quo e ad quem que vão do lirismo trovadoresco aos nossos dias. Oito séculos de literatura escalpelizados com cuidado, tentando mostrar ao público uma riqueza que ficará para a posteridade.
De modo cauteloso, onde não falta o “tolerante leitor”, como se de Garrett se tratasse, num registo parecido, em tom simples, coloquial e acessivo, utilizando o pronome pessoal na primeira pessoa do singular, estabelece com o leitor uma relação de intimidade e de aproximação que nos convida à integração subtil e despreconceituosa. Com uma ligeira incursão na Pesca. No Rio Baceiro e na Castanha, parece que Trás-os-Montes se aproxima de nós, como se tudo nos pertencesse e entrasse pelo nosso olhar, comungando cheiros, sabores e tudo o que os sentidos absorvem.
À maneira dos compêndios que preencheram épocas em que o estudo da Literatura Portuguesa constituía matéria obrigatória nas nossas escolas, hoje arredada dos estudos, numa época em que os complementos oblíquos(?) ocuparam o lugar dos complementos circunstanciais, o autor lembra a divisão cronológica dos vários períodos da Literatura Portuguesa, matéria pouco interessante nos tempos que passam.
Que importa saber se Almeida Garrett é romântico ou medieval? Basta saber que escreveu Frei Luís de Sousa e já chega, isto antes de se processar a redução das aulas da disciplina de Português e fiquemos reduzidos à leitura dos livros que ocupam os pódios das livrarias, com Cristina Ferreira e Fátima Lopes no comando, com Rúben Rua à ilharga.
O livro é escrito por quem sabe da poda e não esqueceu. Começou de forma exemplar a caça no período galaico-português, com uma cantiga de Pero Meogo, escrita por volta do século XIII, citando os Cancioneiros da Biblioteca Nacional, Colocci- Brancuti, da Vaticana e da Ajuda, entra pela Poética Fragmentária distinguindo Cantigas de Escárnio e Maldizer. De um modo geral, os autores são devidamente identificados através de datas. Para o estudioso da Literatura, na nossa presença, um texto didáctico, como se todos os livros não o fossem, peço de empréstimo a afirmação a José Saramago que, também, é citado em Levantado do Chão e Memorial do Convento.
Um trabalho de pesquisa, de não curta duração. Tarefa de investigador que entre o muito que lhe é proporcionado, tem de encontrar o documento exacto, resultado de muita paciência, dedicação e esforço. Para quem conhece Os Lusíadas, não terá descoberto entre 1102 estrofes, i.e., 8816 versos, a existência de marcas de caça? O autor esteve lá e encontrou. No Canto IX, das estâncias LXIII à LXXV.
Da Fénix Renascida, edição de 1746, adquirida num alfarrabista, do Rio de Janeiro, proporciona-nos cópias, transmitindo mais verdade à informação.
Embora confesse que um trabalho desta natureza “ será sempre incompleto”, esforçadamente, vamos ficando com um retrato dos vários autores que à caça dedicaram algo da sua verve. Chegados a Guerra Junqueiro ( pag. 205) é altura para saber que o autor, em cargo de responsabilidade no Governo do Distrito, degustou o vinho do poeta, néctar que o conduziu à valorização da leitura d’Os Simples, Os Contos para a Infância, a Oração do Pão e a Oração da Luz.
Dos Modernistas, de entre eles, descobrimos na sua desmultiplicação, Bernardo Soares, em O Livro do Desassossego, manifestando-se em vestígios de caça, o mesmo acontecendo em Almada Negreiros.
De Fausto José (1903-1975) que na Presença debitou algo do seu talento, foi buscar Júlio  Carvalho, amostras de caça, em obra publicada pela Câmara Municipal de Amares, onde o presencista foi presidente, “cargo que não apreciava” porque “o enredava em pequenas questões de ordem prática”.
     Miguel Torga, António Botto, Alves Redol e Fernando Namora, são alguns dos muitos escritores citados. Manuel Alegre que à caça dedica muito do seu lazer, mostra a sua versatilidade em Cão como Nós, fechando o leque de escritores; mas se aos conhecidos foi dado o espaço devidamente merecido, antes, um menos conhecido, a despontar na odisseia da escrita: Carlos Campaniço, nascido em 1973, director de Programação do Auditório Municipal de Olhão.
   Impossível terminar sem uma palavra de regozijo e um encómio por um trabalho
produzido para a comunidade, por um agente cultural que, no entusiasmo do seu viver, deu um passo em frente na Literatura de Portugal, neste Nordeste Transmontano.
  Um cívico, ao mesmo tempo um estudioso que um dia percorreu os bancos
da Escola ensinando, e que se obstina no conhecimento, continuando a valorizar o que
vale a pena aprender: caça e livros, num binómio conjugável.
  Lembrar hábitos da nossa gente também é Literatura. E foi Literatura que se construiu em Bragança, em dias e noites em que o clima espreita e nos torna mais solidários. Afinal, o frio também é inspirador.
  A caça aguça o engenho e o desconhecido caçador veio a terreiro e disse: leiam, este livro, é vosso, A caça na Literatura Portuguesa, do lirismo trovadoresco aos nossos dias.

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico.

João Cabrita