José Mário Leite

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COMPETÊNCIA E MEDIOCRIDADE

A António Domingues foi-lhe apontado, não só a sua obstinada teimosia na recusa em apresentar, ao Tribunal Constitucional a sua Declaração de Rendimentos, mas igualmente o salário milionário que lhe foi atribuído. Curiosamente, quando foi anunciada a sucessão do ex-administrador do BPI pelo antigo ministro da saúde o mesmíssimo salário, antes qualificado como anormalmente alto, deixou de ser considerado exagerado. E porquê? Porque Paulo Macedo passou por um processo de intenções idêntico quando a então ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, o convidou para dirigir a máquina fiscal com uma remuneração que, na altura, escandalizou meio-mundo. Não tardou que os seus detratores metessem a viola no saco quando os resultados apareceram e demonstraram que na balança do deve e haver a luxuosa contratação afinal foi um excelente negócio, um investimento excecionalmente rentável para o erário público. Mas se essa evidência anterior não tivesse sido patenteada nada nem ninguém evitaria que os epítetos dirigidos ao ainda presidente da Caixa Geral de Depósitos fossem replicados para o senhor que o vai substituir.
O que arrastou a Caixa para a situação grave que agora enfrenta não foram, seguramente, os salários do seu Conselho de Administração. Bem pelo contrário, foi a atuação inadequada e incompetente dos seus mais altos dirigentes.
Diz a implacável lei do mercado que o é melhor e mais vantajoso tem, naturalmente um valor maior, logo um preço acrescido. Se o que se pretende é contratar uma equipa com competências melhores que as suas antecessoras, é natural que a remuneração seja igualmente e substancialmente superior.
Nesta gama de salários, seja qual for o montante, haverá sempre quem pense, julgue e ajuize que é exagerado. Mas há uma verdade inelutável. Em tudo, mas principalmente em lugares estratégicos e de alto risco, a competência costuma ser cara. Mas é igualmente certo que, nesses locais, a incompetência acaba por ser muitíssimo mais. A melhor forma de economizar e acautelar os recursos comuns passa, seguramente por não poupar na remuneração da gestão de qualidade. De outra forma a delapidação pode atingir proporções épicas.
Quando alguém reclama a demissão de outrém ou tenta justificar o seu afastamento, alegando o “exagero” da sua remuneração, só mostra o caráter redutor da sua forma de pensar e racicionar.  Infelizmente, esta atitude vulgarizou-se sobretudo em gente pequenina, muito miudinha e com reduzida capacidade de reciocínio, que não consegue ver para além dos números de um salário mensal, demonstrando a sua incapacidade de distinguir um custo de um investimento. E isso sim, é sinal de incompetência. Quando a fundamentação se resume ao “exagerado” salário, demonstra bem a ausência total de “qualidade” de quem alardeia falta de qualidade a outrém.
É verdade que poderá haver grandes salários imerecidos. Haverá, seguramente, quem seja remunerado acima das suas reais capacidades e volume de produção. Mas, nesses casos, o mais fácil é, precisamente, apontar as falhas, as deficiências ou a baixa produtividade. Por isso mesmo quando o único argumento carreado é o valor da folha mensal, mais do que ao beneficiário, caracteriza e qualifica quem brande tal alegação.
Este é, sem dúvida, o fundamento dos medíocres, por não serem capazes de articular, com credibilidade, mais nenhum outro.

OH DIABO!

A Pedro Passos Coelho estão, insistente e repetitivamente a atirar-lhe à cara a sua desastrada previsão da vinda do diabo em setembro, sobretudo quando o governo geringonçal pôde apresentar resultados que, provisórios ou não, conjunturais ou definitivos, constituem autêntico hino celestial para os cidadãos em vésperas de se prepararem para a quadra festiva e consumista que se avizinha. Foi um erro grave do ex-primeiro ministro, sem dúvida. A sua incapacidade de antecipar o cenário que se aproximava uma evidência de um handicap sério para quem se prepara para regressar ao ringue da disputa para a liderança governativa. Também o é. Mas não são os mais graves nem os que mais o penalizam. Os seus erros e incapacidades não são de agora antes têm de ser procurados em tempos anteriores a factos que remontam a maio de 2010 quando o líder laranja pedia desculpa ao país pelas medidas do governo que não liderava. Nunca mais o fez apesar da aplicação, já da sua lavra, de muitas outras mais duras e dolorosas que depois veio a protagonizar. Não foi esse ato de humildade que o catapultou para a ribalta política lusitana. O seu primeiro erro foi exatamente esse. Não ter percebido a verdadeira razão pela qual foi o escolhido para liderar os destinos desta nação valente e imortal. E esta foi simples e clara. Em 2011, quando o resgate se tornou inevitável o antigo líder da juventude laranja veio dizer o que, obviamente, era necessário ser dito: que não tinha qualquer objeção em governar durante a intervenção do FMI. Ora se era o FMI que nos vinha evitar cairmos na bancarrota o que era necessário era uma chefia que encarasse essa situação de forma normal e natural. Coisa diferente e bem diversa era a vontade posteriormente revelada de ser mais papista que o papa demosntrando uma vertinginosa determinação de ir muito além da troica. Esse foi o seu segundo erro. Muitos outros se seguiram. A par disto veio o primeiro dos handicaps: a vitória nas legislativas acabou por se revelar mais fácil e concludente que o que era esperado. Isto privou-o da aprendizagem que as dificuldades e, ainda mais, os falhanços necessariamente trazem. É hoje uma verdade totalmente aceitável, nos cursos de empreendedorismo, mesmo na europa, já que nos Estados Unidos há muito que é um axioma: quem erra aprende melhor e de forma mais marcante. São vários os investidores que procuram e valorizam jovens talentosos que já tenham soçobrado numa ou várias iniciativas anteriores. Passos teve poucos revezes e chegou a primeiro-ministro sem, na verdade, ter harduamente trabalhado para isso. Foi fruto das circunstâncias. Aconteceu-lhe.
Tal como lhe “aconteceu” deixar de o ser depois de ter conseguido obter mais votos, para o projeto que liderava, do que o seu opositor. Depois dos vários erros cometidos no quadriénio em S.Bento, veio o erro maior e esse sim é o que nesta altura o atira para a cauda da apreciação dos portugueses. Decidir não apresentar uma única proposta durante a discussão do orçamento para 2016 foi-lhe fatal. Dizer que vem aí o diabo ou que estamos a caminhar para o abismo, passe embora o exagero, faz parte do papel reservado ao chefe da oposição. Qualquer coisa que corra mal poderá sempre dizer vêem como eu tinha razão? O problema é quando a coisa corre bem não ter uma única ação, um único gesto, um único contributo para poder também partilhar parte do sucesso, mesmo que não fosse fácil demonstrá-lo por a mais b. Ninguém o poderia impedir de reclamar que o que há de bom também se deve à atuação e participação do PSD.

O MEL E AS MOSCAS

De novo a minha crónica quinzenal vai beber num editorial do meu amigo Teófilo Vaz. O diretor do Jornal Nordeste, na sua edição de 25 de outubro, queixava-se da falta de eficácia dos políticos nordestinos no que toca às verdadeiras reivindicações que é suposto fazerem e levarem a cabo junto do poder central. Houve quem, com razão, reclamasse que é preciso distinguir o trigo do joio pois políticos há e houve que nada ficaram a dever à consciência nem se sentem em falta com os eleitores que neles confiaram. Ambos têm razão. É verdade que temos que prestar homenagem aos que se bateram e batem pelo desenvolvimento nordestino, não se cansando de reclamar no Terreiro do Paço tudo quanto falta a norte do Douro e a leste do Marão. Mas também é inegável que as carências são muito maiores que as soluções encontradas. Aos poucos que muito fizeram e fazem, juntam-se os muitos a quem o que mais interessa é a sua capela, o seu cantinho, a sua carreira e, muitas vezes, o seu partido. Essa é a principal razão da média baixa que traduz a fraca eficiência no carrear dos meios públicos para resolver os muitos problemas que atormentam o interior nordestino. É fácil concordar e subscrever que “nenhum autarca do distrito pode alhear-se de soluções capazes de dinamizar as atividades produtivas” e igualmente se sentir apreço por todos os “autarcas que procurem, queiram e saibam encontrar formas de cooperação para além do quintalzinho...”.

Contudo o desenvolvimento nordestino não pode fazer-se exclusivamente à custa e com base no investimento público. Há igualmente os empreendedores privados cuja atividade é cada vez mais importante e decisiva para o futuro comum. Alguns dirigentes locais já o assumiram e trataram de cativar e atrair investidores que suportem e dêm massa crítica aos seus projetos. Oferecem-lhe facilidades, ajuda, suporte e apoio.

Outros preferem destratá-los em locais públicos. Há até quem, supondo e invejando-lhes largos lucros, prefira ameaçá-los com taxas e impostos supondo imitar a Câmara Lisboeta que, recentemente, iniciou a conclusão do Palácio da Ajuda com dinheiro arrecadado em impostos turísticos. Esquecem que o nordeste não é a capital e que o que ali teve bons resultados pode ser dramático, se implementado por cá. Qualquer agricultor sabe bem que as árvores se podam quando são adultas e com excesso de ramagem; qualquer amputação, quando são jovens e em fase de desenvolvimento, pode ser-lhes fatal. Em termos de turismo, no nordeste, estamos, infelizmente, muito longe do tempo da poda. É altura de regar, arar, adubar e tratar com cuidado e dedicação.

O empreendimento privado tem livre arbítrio e é, por estas terras, escasso e disputado.

Se nuns locais é acarinhado e valorizado, enquanto noutros, pelo contrário é taxado e ameaçado, adivinhem onde será que qualquer empresário vai, naturalmente, investir os seus recursos?

PEDAÇOS DO NORDESTE NO CÉU DE LISBOA

Em conversa amena com um velho amigo, veio à baila o editorial que o diretor do Jornal Nordeste, onde ambos cronicamos, publicou a 11 de outubro deste ano. Feito a propósito da notícia da festa de inauguração do novo MAAT, na capital, glorificando a rica EDP cuja parte significativa da energia que vende é produzida na bacia do Douro não se vislumbrando por cá grande coisa, como contrapartida. A poderosa Fundação dirigida e financiada pela elétrica nacional construiu um vistoso museu na capital engrandecendo, é certo, todo o país, mas, de maneira especial, a cidade ribeirinha do Tejo.
Teófilo Vaz afirma ainda que também nos cabe a nós exigir que os recursos que nos são sequestrados sejam devidamente valorizados. Sendo verdade que as barragens durienses e dos seus afluentes são fontes de riqueza e desenvolvimento, também é verdade que a maior valia vai para as grandes urbes cujo bem estar se faz à custa de privações nordestinas. Para que haja ar condicionado confortável, iluminação suficiente, força-motriz adequada na indústria e nos transportes públicos, programas lúdicos, telecomunicações e tantas outras regalias providenciadas em abundância e com comodidade aos alfacinhas e a todos os que os visitam, milhares de nordestinos tiveram de abdicar de incontável número de oliveiras, amendoeiras e outras árvores, de muitas praias fluviais e de uma incomensurável grandeza de paisagem perdida para sempre. Em boa verdade muito do encanto lisboeta faz-se com pesadas contribuições do interior. Uma enorme fatia do seu céu, é composto de pedaços arrancados ao firmamento nordestino.
É natural esperar que os sacrifícios sejam devidamente valorizados e recompensados.
Não será, concerteza, para responder ao excelente editorial do Diretor do Jornal Nordeste, nem tão-pouco com a rapidez que se deseja, muito menos no valor merecido, mas houve notícia recente da implementação de alguns projetos marcantes integradas no largo pacote das medidas compensatórias com que a EDP se comprometeu.
Um texto do Jornal Público de 15 de outubro do ano corrente deu conta da concessão da exploração turística da albufeira do Tua e de parte da linha férrea sobrevivente, em exclusivo,  ao empresário duriense, Mário Ferreira. Não terá sido fácil, garante o empreendedor. Tal acordo só foi concretizado depois de a EDP ter sido “obrigada” a fazer vultuosos investimentos para que o empreendimento fosse sustentável. Segundo o dono da Douro Azul a elétrica teve, na prática, de duplicar o seu investimento inicial de dez milhões de euros para tornar o projeto apetecível.
O Presidente da Câmara de Torre de Moncorvo anunciou recentemente um projeto turístico, embora sem se revelar os valores envolvidos, que vai catapultar a região do Baixo Sabor para um patamar cimeiro na oferta turística de qualidade. Trata-se do Sabor Lake Resort um conceito inovador de exploração da albufeira, com base em casas flutuantes que percorrerão os diferentes lagos que a barragem criou em Moncorvo, Mogadouro e Alfândega.

EXOPOTÂMIA (Manifesto por um vale discriminado)

O Sabor não é fronteira
Nem o vale da Vilariça se alcança
Da Senhora da Teixeira.
Para que haja boa lembrança
Apresento-o, na Junqueira!
Nasce em Bornes, alfandeguense
Mas a Moncorvo pertence
Dos Nozelos à Junqueira
Na margem esquerda da ribeira.
Estende-se, airoso, galhardo, singelo
Até ao Monte Meão.
Da Adeganha recebe benção
E, beijando a mão
Da Senhora do Castelo,
Expande-se nos Barrais.
A melhor vista é dos Estevais!
Mira’Douro em S. Gregório
E tudo mais em seu redor
Mas é a Póvoa
Que se espelha no Sabor.
Se a noite bater à porta
Acende luzes na Horta,
E a primavera vai chegar
Quando nas encostas da Vide
A amendoeira desabrochar.
Guarda lendas no Castedo
Da gente da Nação
Do seu duro degredo
E da fuga de Castela, ao rei cristão,
Em demanda do novo Vale do Jordão.
Nasce-lhe o sol na Cardanha
Olhando as  Cabanas de Cima
Com uma beleza tamanha
Que o aquece e ilumina.
Mas quando o dia esmorece
Aquieta-se, repousa,
Descansa e adormece
Aconchegado pela Lousa!

Feito na Junqueira a 21 de agosto em protesto por terem sido excluídas de uma reportagem da revista Passear, promovida pela Câmara de Moncorvo, grande parte do vale da Vilariça e as suas aldeia ribeirinhas, Junqueira, Nozelos, Adeganha, Estevais, Póvoa, Horta, Vide, Castedo, Cardanha, Cabanas de Cima e Lousa.

Rebofa (O Tsunami do Nordeste)

A última grande rebofa aconteceu no final dos anos sessenta. Ainda hoje me lembro dela. Se bem que, tenho de confessar, alguns dos pormenores da mesma provavelmente não serão genuínos e originais dessa longínqua vivência mas uma mistura do que vivi e do que li do belíssimo texto que Campos Monteiro dedica a este tsunami nordestino.
Esta cheia destruidora que, ao contrário das enchurradas normais, cresce da foz para a nascente é característico do Vale da Vilariça e, sendo um drama sempre que acontece, pela destruição com que se faz acompanhar, não deixa de ser uma das causas do excelente solo de aluvião que atapeta o mais fértil vale lusitano.
O Douro, depois de passar o Pocinho, em vez de se encaminhar diretamente para o mar, entre o Porto e Gaia, contorna o Vale Meão, célebre pela excelência dos seus vinhos e vem receber o Sabor na parte final da Vilariça. Este apresenta-se à centenária estrada fluvial do Vinho do Porto, na recente companhia da ribeira que desde a sua génese na Burga, no sopé da Serra de Bornes sublinha e marca o Vale. É, aliás, esta que acaba por acarretar com as consequências da fúria dos elementos quando estes assumem proporções de catástrofe.
Quando o rio Douro enche em demasia, as suas águas caudalosas chegam à aldeia da Foz do Sabor em oposição frontal às do seu afluente e entram por este dentro. Não se compara o caudal de um e outro rio, e, obviamente, é o Sabor que recua cedendo à força duriense. Mas é um recuo contido, não só, porque apesar de diferentes, as torrentes têm forças de ordem de grandeza parecidas como porque o vale onde este corre é apertado  e a subida das águas só se faz desde que outra escapatória não encontrem. Esta “válvula de escape” é, precisamente, a ribeira da Vilariça que, sendo de grandeza incomparavelmente inferior, corre num território plano e que fica completamente inundado pelas águas barrentas e revoltosas que, desde Espanha, se precipitam pelo vale acima destruindo tudo à sua passagem.

A construção de barragens no rio Douro veio “domesticar” esta fúria e as rebofas deixaram de aparecer, pelo menos com a ferocidade e poder destrutivo que tinham antigamente. Era suposto que as duas barragens do Baixo Sabor (uma delas de contra-embalse – portanto com capacidade de bombear água para montante) pusessem os agricultores de região a salvo dos caprichos metereológicos. O que aconteceu este ano e a que a comunicação social deu relevo, veio demonstrar que não.
Não porque não é possível lidar com a “fera” ou porque a EDP não acionou os meios e mecanismo que deveria fazer? É urgente saber-se para que, quem investe a vida e os meios disponíveis, por estas paragens, saiba afinal com o que pode contar, para além das afirmações genéricas de que o aproveitamento hidroelétrico contribuirá para a regulação e controlo dos caudais. Provavelmente a EDP já terá dado as suas justificações nos locais e às entidades onde é obrigada a fazê-lo. Mas era bom que as publicitasse e tornasse acessíveis para a generalidade da população.

A VISÃO (e o resto)

Desde há dez anos que a Fundação Champalimaud atribui o Prémio da Visão no valor de um milhão de euros no que é o maior prémio mundial nesta área. É conhecido nos meios científicos como o Nobel da Cegueira. Inicialmente apresentado nos jardins do mosteiro dos Jerónimos, transferiu-se para o belíssimo anfiteatro que a Champalimaud tem em Algés, com vista para a foz do Tejo proporcionando expetáculos de grande beleza. Este ano cumpriu a tradição com um ecrã gigante em pleno Tejo de onde surgiu, qual tritão, André Gago declamando o Mostrengo de Fernando Pessoa acompanhado à guitarra portuguesa em diálogo com uma pequena orquestra clássica que tocava no topo leste e com um grupo de percussão que marcava o ritmo no cume poente. A cerimónia do décimo aniversário trouxe como novidade ser a primeira patrocinada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e isso não foi de menos, como se verá.
Leonor Beleza abriu, cumprindo a tradição e repetindo uma história encantadora que já tinha contado numa edição anterior com a justificação de estarem na assistência dois dos seus protagonistas e que não resisto a partilhar. Este casal lusitano fez uma longa viagem pela Índia em scooter levando sempre visível a bandeira nacional. Pararam num local remoto, no sul, junto a um restaurante de estrada em cuja esplanada um velho indiano estava sentado. Despertou-lhe a atenção a bandeira verde e vermelha ostentada pelos forasteiros e, apontando para ela, começou a falar algo que estes não entendiam. Um tradutor ocasional, permitiu-lhes um breve diálogo. O que o velho dizia era muito simples: sabia bem de que país era aquele símbolo pois fora devido ao financiamento vindo de lá que ele podia agora ver. O primeiro beneficiário do Prémio Visão foi o Instituto Indiano Atavind Eye Care System que tem como maior finalidade erradicar a cegueira evitável. Tem a sua ação nas zonas rurais junto de pessoas sem recursos, tendo sempre o cuidado de explicar aos seus utentes a fonte dos financiamentos que proporcionam os tratamentos, gratuitos para quem não os pode pagar.
A curiosidade sobre a forma como Marcelo iria marcar a diferença, não saiu defraudada. Começou por garantir que o seu nome não era precedido por qualquer título universitário o que tem especial significado naquele lugar povoado, é certo pela nata da sociedade lisboeta mas, igualmente, pela elite dos cientistas que exercem em terras lusas. O anterior foi sempre anunciado como Professor Aníbal Cavaco Silva. Estando presente seria óbvio que Marcelo não o iria ignorar. Como iria tratá-lo? Com a argúcia que lhe é reconhecida dirigiu-se ao seu antecessor e a Ramalho Eanes, também presente,  tratando-os por “Presidente”. Não deixou, contudo de deixar uma subtil alfinetada quando, perante a emocionada Maria Luisa Champalimaud, anunciou a condecorção a título póstumo de António Champalimaud, lamentando que a “República” não tivesse já reconhecido o gesto generoso do filantropo. Independentemente dos juízos sobre a carreira profissional do empresário assumindo claramente que ele próprio no passado o elogiara algumas vezes e criticara algumas outras.

Ciência cidadã (e a participação cívica)

Desde o final do século XIX que milhares de cidadãos, de forma consciente e voluntária, analisam grandes quantidades de dados, partilham e discutem o seu conhecimento apresentando publicamente os resultados. Esta participação cívica começou nos Estados Unidos com a contagem coletiva de pássaros, atividade que ainda se mantém sob a coordenação da Audubon Naturalist Society. O avanço das tecnologias de informação permitiram que a Ciência Cidadã se ampliasse e alargasse a outros domínios.

Foi com base neste conceito que um grupo de portugueses lançou uma iniciativa de monitorização dos níveis de radioatividade na zona de Castelo Branco, preocupados com os efeitos nesse território da atividade da Central Nuclear de Almaraz. Esta central de produção de energia elétrica é a mais antiga de Espanha e já deveria ter sido encerrada em 2010, tendo sido prolongada a sua licença de funcionamento até 2020. Os seus acionistas pretendem a extensão adicional deste período para lá daquela data. Nas margens do rio Tejo dista menos de 200km da cidade de Castelo Branco sendo óbvias e evidentes as consequências para Portugal e para os portugueses de qualquer acidente grave que ali possa, eventualmente, ocorrer. A perceção de qualquer desvio aos padrões normais assume uma importância vital.

Sayago onde há perto de 35 anos se pretendia instalar uma central nuclear fica a menos de 30km de Miranda do Douro. Aldeia d’Ávila fica ainda mais perto da fronteira e esteve quase a receber um cemitério nuclear que a oposição popular ibérica conjunta acabou por suspender. Não se suspenderam as castelhanas intenções radioativas e recentemente nuestros hermanos anunciaram a intenção de iniciar em Retortillo/Villavieja, mesmo nas nossas barbas, uma exploração de urânio. Toda a bacia do rio Douro volta, de novo, a ficar ameaçada.

É necessário ficar alerta perante tantas e tão ameaçadoras investidas do lado de lá da fronteira. A democratização da ciência cidadã, com o uso adequado da internet e demais ferramentas de comunicação e partilha de dados, associado ao crescente baixo custo dos instrumentos de medição e monitorização escancara as portas ao controle público de dados e indicadores que até há bem pouco tempo estavam restringidos aos departamentos governamentais.

A monitorização da radiação na zona raiana de Castelo Branco irá ter um custo da ordem dos 2.500 euros. Nada que não possa ser dispendido pelos municípios nordestinos que em conjunto pretendam permitir a participação cívica que, nestes casos e com estas ferramentas acaba por ser mais eficaz, mais célere e mais confiável que os processos diplomáticos intergovernamentais.

OS AMIGOS

A amizade é um sentimento nobre que deve ser cultivada com empenho, desprendimento e lealdade. Cultiva-se, alimentando-a ao logo da vida e estacando-a, quando velha, como recomenda Miguel Torga. Os gestos de solidariedade e lealdade para com os amigos são sempre apreciados. É igualmente reconfortante estar rodeado de verdadeiros amigos sobretudo quando nos são exigidos esforços e trabalhos acrescidos em tarefas coletivas como acontece com os vários protagonistas políticos que ascendem ao poder.

Conforto que, contudo, não devia ser suficiente, quando outros requisitos são exigidos e, por isso mesmo, acaba por acarretar, por vezes, um preço elevado. Foi assim com Pedro Passos Coelho quando se sentiu obrigado a prestar o devido tributo à amizade que de há muito o ligava a Miguel Relvas. Igualmente António Costa, de forma mais célere e mais intensa (em menos de um ano são já dois os casos de amargos de boca) se viu envolvido em polémica para justificar o preito que a amizade de dois colaboradores lhe colocou a “pagamento”. No início de Abril viu-se forçado a celebrar contrato de prestação de serviços com Diogo Lacerda Machado para que este continuasse a poder, legal e formalmente, representá-lo em várias reuniões onde já ia a mando e por conta do Primeiro-Ministro. Estava a iniciar as férias e teve de se fazer valer do lugar que ocupa para segurar outro dos amigos chegados, Fernando Rocha Andrade, depois da forma descuidada e aligeirada como aceitou ser patrocinado pela Galp para ir ver jogar a seleção portuguesa de futebol. Amizade que será, seguramente, apreciada não só pelo próprio mas igualmente pelos seus colegas Jão Vasconcelos e Jorge Oliveira a quem idêntica e imprudente conduta poderia tê-los excluído da equipa governamental, a avaliar pelo ocorrido com João Soares.

Deve alguém ser beneficiado, num lugar de serviço público, só por ser amigo de quem detem a liderança do poder? Não. Mas também não deve ser prejudicado. Desde que seja igualmente competente, parece-me óbvia a opção por um amigo de confiança. Até porque a responsabiidade final, sobretudo política, nestes casos, passa quase integralmente para o chefe do Governo já que uma eventual queda arrastará consigo todo o elenco governativo. Os amigos caem na altura em que quem os promoveu abandone as funções que exerce.

Caso diferente seria se a única “qualidade” do escolhido fosse exatamente a amizade que o liga ao chefe. Se isso ocorrer numa autarquia então a questão é séria porque uma eventual renúncia ou impedimento do cabeça de lista não só não arrasta igual sorte para quem lhe segue mas, pelo contrário, coloca no topo da hierarquia quem estiver em segundo lugar na lista ganhadora.

O RAPAZ QUE APANHAVA ENGUIAS COM A MÃO

Esverdeadas, colubriformes, masjestosas, nadavam, normalmente em águas pouco agitadas. Tempos houve em que as enguias apareciam entre as demais espécies piscícolas que habitavam os cursos de água nordestinos. Com a construção das barragens no Douro Nacional acabaram-se. Já não há enguias. Da sua pesca resta a lembrança.
Havia várias formas de as pescar.
Na mais frequente usava-se um garfo comprido, com dentes finos, redondos e espessos. Nem sempre resultava pois como era normal andarem em zonas com muito lodo, faltava terreno firme por baixo e com alguma frequência se escapavam, apenas com pequenos arranhões.
Mas também havia quem as apanhasse com a mão, como o Fernando, que para isso tinha a necessária  mestria e engenho.
Para além das águas serenas correntes, chegavam mesmo a aparecer em poços e noras para onde caíam e onde ficavam aprisionadas. Na minha aldeia diziam à boca cheia e com ar de entendidos que isso acontecia porque as enguias saiam à noite para pastar. Soube mais tarde que como eram muito resistentes e aguentavam muito tempo fora de água a humidade do orvalho era suficiente para lhes permitir viagens noturnas, que às vezes lhes eram fatais, pelo meio da verdura dos campos.
Quando se esvaziavam os poços de rega para limpeza era vulgar no meio do lodo aparecerem o apetecido petisco. Mas era na ribeira da Vilariça que o Fernando as pescava. Revejo-o, de calças arregaçadas até às virilhas, caminhando lentamente como um felino numa poça que a ribeira fizera por baixo de umas raízes de choupo, nas Olgas, a seguir à ponte velha. Era muita a sabedoria e experiência que na sua dúzia de anos de existência já tinha, na arte de bem apanhar os murenídeos que se atreviam a aparecer-lhe pela frente.
Não usava garfo. Uma folha de figueira, dizia, era mais eficaz. Desde que conseguisse apanhá-la a jeito. Para isso não podia ser sobre o lodo onde ela facilmente se enterrava e depois nunca mais lhe punha a vista em cima. Tinha de a empurrar para uma pequena cascalheira onde a água era mais limpa, onde a via melhor e onde, se fosse necessário, a podia apertar contra areia grossa do chão. Esse era o segredo e essa era a fina arte do Fernando. Encaminhá-la para a água corrente sem a espantar. Com paciência. Muita paciência. O olhar fixo nos seus movimentos serpenteantes e a mão pronta a cair-lhe em cima, quando chegasse o momento. A superfície áspera da folha da figueira servia para se agarrar à pele escorregadia do animal. Cravava-lhe todos os pequenos picos vegetais e já não a largava. Para isso tinha de a apanhar no meio do lombo e com um gesto único. Se lhe tocasse antes, em qualquer uma das partes, ela sentia a ameaça, fugia para um dos buracos por baixo das raízes ou enterrava-se no lodo e, pronto, não havia nada a fazer. Cada passo que dava servindo para a encaminhar para o local pretendido tinha de ser suficientemente calmo e suave para a não espantar.
Foram várias as vezes que o vi erguer o braço com o troféu a espernear na mão. Muitas se lhe escaparam, é certo, mas o saldo era-lhe largamente favorável.

Num jantar de velhos amigos e colegas de curso estava um jovem que entrara há pouco para a polícia judiciária. Descrevia, deslumbrado, fruto da novidade e do entusiasmo, sem concretizar, claro, a forma como alguma investigação tinha de ser conduzida, nomeadamente os avanços lentos, os recuos estratégicos e a paciência necessária para obter as provas absolutamente necessárias ao sucesso das operações. Ouvimo-lo interessados.
– Tenho de te apresentar o Fernando – disse-lhe eu. 
– Quem é o Fernando? –  perguntou-me ele.
– Um rapaz que apanhava enguias com a mão –  concluí, em jeito de despedida.