class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-frontpage">

            

O Julgamento de Sócrates sob a luz do Direito

No final de 2013 ou princípio de 2014, não sei precisar bem, João Araújo, depois de almoçarmos em Mogadouro, mostrou-me o livro que andava a ler: “O Julgamento de Sócrates, sob a luz do Direito” de um conhecido autor brasileiro. Tinha-lhe sido oferecido pelo antigo Primeiro-Ministro. Nenhum de nós viu, no título, qualquer premonição. Pouco mais de um ano depois, fizemos viagem, juntos de Lisboa para o Nordeste. O advogado era reconhecido e abordado, com palavras de apoio e incentivo, em todos os lugares onde parámos. Falámos do assunto, de forma ligeira, respeitando o sigilo profissional. Retive uma frase do causídico: “Não há, nem vai haver, na acusação, uma única prova de corrupção!” Na altura “apenas” se falava no grupo Lena e, como mais tarde escrevi, a própria contabilização dos concursos ganhos pela construtora, dificilmente suportavam a teoria da compra dos mesmos, pelos milhões “garantidos” pelo ministério público. Ao ouvir o despacho de pronúncia do juiz Ivo Rosa, lembrei-me do falecido advogado que tive o privilégio de conhecer pessoalmente. Mas também me lembrei do filósofo grego e, igualmente e por arrasto, do juiz espanhol Baltazar Garzón que garantiu que o maior erro da justiça acontece quando, em vez de se focar nos factos, se concentra no homem e faz dele o seu alvo. O filósofo grego foi acusado de corromper a juventude e desrespeitar os deuses. Mas, o seu julgamento demonstrou que o que incomodava a elite ateniense era o próprio Sócrates em si e não os “factos” que lhe eram imputados. A atuação do juiz madeirense foi e continua a causar perplexidade. Mas, analisando- -a cuidadosamente, o maior espanto é o espanto que ela causa. Ivo Rosa diz que não há nenhuma prova de corrupção. Mas isto não é uma convicção. É um facto! Não há, apesar de sete anos de intensa e dedicada investigação. Perante a valorização de alguns testemunhos, o magistrado foi acusado de parcialidade. Teria valorizado algumas declarações, em detrimento de outras. É verdade. Mas, perante afirmações opostas, umas incriminando o acusado (de Hélder Bataglia) e outras ilibando-o, o juiz optou por valorizar estas últimas. Pois bem, não podendo aceitá-las todas, por incompatíveis, seguiu o princípio de “in dúbio pró reo”. Devia fazer de forma diferente? Provas indiretas? “Se a rua está molhada, é porque choveu!”. Ou porque orvalhou? Não me pronuncio sobre a PT, nem o Vale de Lobos, porque não tenho dados fiáveis e contabilizáveis para tal. Mas não é fácil aceitar que os concursos ganhos pelo grupo Lena lhe tenham proporcionado lucros superiores aos aceitáveis (e justos) num montante tal que pudessem justificar o pagamento de dezenas de milhões de euros de luvas! Mas se formos por caminhos de indícios, fica algo que não cola: José Sócrates foi genial a construir um esquema de corrupção que não deixou qualquer rasto, nem a mínima ponta concreta por onde pegar... mas foi totalmente inepto para recolher o produto da sua ação... quando essa seria a parte mais fácil de concretizar recorrendo a offshores, valorizações de participações e outros artifícios legais usados por tantos a quem a justiça, sabendo, não consegue criminalizar. Continuo sem ter a certeza se José Sócrates é ou não corrupto, embora simpatize com a teoria do João Araújo que o apresentava como arrogante megalómano servindo-se da vaidade do seu amigo Carlos Santos Silva, para quem a amizade com um homem que ele idolatrava e a quem reconhecia genialidade e capacidade, cuja inteligência e poder os deslumbravam, justificavam as centenas de milhares que lhe “emprestava”. Não descarto que o Ministério Público esteja convencido das acusações que faz. Mas não concordo que prenda para investigar e não posso aceitar que se possa querer condenar alguém sem exibir provas dos crimes que se lhe imputam.

25 de Abril: A celebração de um fracasso histórico

Ainda que tenha aberto caminho para a democratização e correlativa modernização do país, o golpe militar de 25 de Abril de 1974 redundou num monumental fracasso histórico com três funestas dimensões: a descolonização, dramática, o PREC, antidemocrático e o Regime prevalecente, corrupto. Fracasso frustrante para os jovens militares que, sublimadas as reivindicações profissionais, leit motiv inicial do golpe de estado, assumiram o nobre propósito de bem descolonizar e melhor democratizar, acreditando que Portugal se tornaria num país desenvolvido, justo e democrático. Fracasso que alcança agora o fastígio com o Regime político vigente que favorece a corrupção, avilta a Justiça, malbarata a economia, aprofunda as desigualdades e faz da política social um entretém. Fracasso determinado, desde logo, pelas obscuras personalidades político-militares que emergiram espontaneamente com o golpe, sem outro mérito nem crédito. Começaram por destapar a caixa de pandora dos agentes maléficos que as crises políticas sempre regurgitam para voltar a mastigar: vende-pátrias, assaltantes de Estados, anticristos e miasmas da corrupção. E deixaram que o poder caísse na rua ameaçando, desde logo, a almejada democracia. Contrariaram os propósitos da maioria dos militares revoltosos, franquearam portas à descolonização criminosa, induziram parte das Forças Armadas a embarcar na aventura de sacrificar a secular nação portuguesa, e colónias, ao frustrado império soviético, imolando a liberdade e a democracia ao sinistro deus marxista- -leninista, o que significava implantar em Portugal um regime político totalitário, ainda pior que o anterior. Deram aso a que, na passada, alimárias diversas, aventureiros e oportunistas, tomassem o Estado de assalto para o espoliar e hipotecar aos grandes usurários e agiotas internacionais, num processo libertário que diziam progressista. Muitas destas insanas alimárias acabariam por se diluir em 25 de Novembro. As mais insidiosas, porém, continuam a esbracejar tentando acabar de vez e por todos os meios, com o que resta de Portugal. Agentes ímprobos procuram agora reescrever a História de Portugal a seu jeito, para melhor propagandearem os seus sinistros propósitos. História que não é só profusa no heroísmo, mas também o é na traição, como os historiadores mais probos nunca esconderam, os mais esclarecidos cidadãos nunca ignoraram e o próprio Épico, de resto, cantou. Atacam os monumentos pátrios mais emblemáticos, acusam de racismo e xenofobia o povo que foi campeão da miscigenação e estigmatizam os combatentes que não desertaram, embora o pudessem ter feito, como uns tantos o fizeram por covardia e poucos por ideologia, justiça lhes seja feita. Combatentes que recebiam uma bandeira em mão e embarcavam livremente, sem serem empurrados, para espanto dos diplomatas e correspondentes estrageiros que assistiam à cena. Obedeciam aos desígnios da História, tão-somente. Milhares de soldados negros que acabaram marginalizados e sumariamente fuzilados e soldados brancos que os vende-pátrias no poder continuam a destratar e a olhar com desdém. Cidadãos de todas as raças, credos e tribos, que acreditaram numa nova pátria que não os descriminava e antes os irmanava e projectava no futuro. Projecto que foi a alma mater do Exército mais humano da História que em simultâneo com a missão militar rasgou estradas, ergueu escolas e hospitais, tratou, curou, ensinou a ler e a escrever e matou a fome a milhares de infelizes. Que promoveu a paz e harmonia interétnicas e corrigiu os desmandos prevalecentes do colonialismo ancestral. Exército que durante treze longos anos se bateu vitoriosamente em três distintos teatros de operações, imensos e distantes, num esforço grandioso só possível a uma Nação com História longa e alma grande. Numa guerra que não opôs brancos a negros, asiáticos e africanos a europeus, mas apenas os que acreditavam na ideia de portugalidade e os que ambicionavam tornar-se herdeiros privilegiados do colonialismo, como se veio a verificar. Projecto que, para desgraça de milhares de infelizes, fracassou em 25 de Abril o que, face à miséria generalizada que grassa em África, representou uma enorme perda para a Humanidade. É este fracasso que os seus fautores procuram iludir com festas e celebrações porque de melhor coisa não são capazes. A História se encarregará do que falta: verdade e justiça!

Entre a espada

A sociedade tecnológica/industrial, o capitalismo, o mercado, exploram a tendência que temos para acumular, mesmo quando a acumulação já se desviou muito do desejo legítimo de viver condignamente. Por seu lado, o marxismo cultiva a ideia impraticável de sermos todos iguais, a contrariedade invejosa de haver quem tenha mais do que nós, o direito a ter tudo o que os outros têm. Combinados na mentalidade comum deste tempo, e não opostos como habitualmente se pensa, os ismos dominantes têm sido irmãos siameses a incutir-nos o engano de que o objetivo das nossas vidas reside em obter cada vez mais bens e serviços. Focam- -se no corpo e colocam o bem- -estar em saciá-lo, porfiam em criar-lhe necessidades para que possam, ou não, ser satisfeitas. As duas ideologias equivalem-se no que toca a desprezar a outra vertente que nos pertence e define como seres inteligentes: aquilo que emerge da nossa parte física sem ser físico e necessita de um tipo de alimento que não é comida; os sentimentos nascidos de estarmos vivos e conscientes, sobretudo, e mais ainda até, depois de o corpo se encontrar saciado. Reduzem- -nos a uma espécie de autómatos ávidos de alcançar objetos que logo põem de lado para ir a correr à procura de outros. Tubos cegos que absorvem matéria por uma ponta, tirando disso algum prazer momentâneo, e a expelem em forma de dejeções pela outra antes de repetirem todo o processo. A contrariedade é que duzentos anos deste disparate têm vindo a implicar gastos globais incomportáveis, estragos que estão a amarfanhar a vida, canseiras escusadas, sofrimento a rodos. Não era preciso esperar tanto tempo para o sabermos. Entre outros, já o descortinara no século dezanove o conterrâneo guerra junqueiro ao referir-se à marcha do progresso como um carro sem travões, alertando para o previsível desastre. Uma fraqueza que nos tem acompanhado é deixarmo-nos liderar por gente grosseira. Não elegemos os mais capazes e avisados, preferimos aqueles que vendem o que queremos comprar: a miragem do consumo a aumentar continuamente. Banha de cobra que funcionava bem num mundo que já não existe, antes de começarmos a fazer contas à finitude dos recursos, ao aumento desregrado da população, à degradação do meio. Os raros com a ousadia de nadar contra a corrente têm carreiras curtas, ou nem chegam a tê-las, o que complica a vida de quem geralmente não conhece profissão e precisa de segurar os cargos em que se apanha. Apesar de tudo os políticos são simples peões da lógica económica que nos cerca e estimula a produzir e adquirir coisas. Ela promete jardins de delícias, enche de sonhos irrealistas, seduz como a feiticeira circe seduzia ulisses e os companheiros. Nos omnipresentes media, as mercadorias que supostamente nos irão preencher são postas em cenários que giram invariavelmente à volta de beleza, saúde, riqueza, fama, sucesso, liberdade, perfeição. Se eu comprar um par de óculos a conselho da dona dolores aveiro, ao usá-los convenço-me de que levo comigo um pouco da grandeza e prestígio do filho, mecanismo conhecido como reflexo condicionado que parece infantil, e é, mas funciona às mil maravilhas. Desejando imitar o que vemos no mundo de fantasia dos anúncios caímos numa armadilha que nos incute valores, ideais estéticos, normas de comportamento, objetivos de vida. Faz de nós androides capazes até de comprar e usar vestuário esfarrapado, apenas um entre os efeitos colaterais da nossa exposição à publicidade. Mais nocivo é que através dela somos levados quase desde o berço a pensar que a satisfação é algo existente fora das nossas cabeças, a associar bem e mal-estar àquilo que podemos ou não possuir, a identificar afirmação e realização pessoal com objetos a agarrar a todo o custo, a apostar que o caminho é a luta individualista, que a ganância vale a pena. A panela de pressão em que a humanidade e o planeta visivelmente fervem tem muito a ver com o assédio deste modelo. Dada a convicção insegura de que nunca se tem que chegue, mesmo quem compra mais ou menos à vontade procura preencher o constante vazio interior acumulando sempre, numa demanda sem fim. E aos excluídos do grande consumo, a imensa maioria, resta-lhes um caminho de frustração, autorrejeição, ansiedade, agitação, competição desenfreada, conflito, agressividade, revolta, violência.

Chega de fossa nova

Boas tardes, meus caros. Parece que as notícias têm sido mais animadoras e isso é de saudar. Que a primavera nos traga calor e mudanças para melhor. Vocês sabem que eu sou cada vez mais um estrangeiro na maneira como vejo o país, não é fácil levar uma vida minimamente ocupada em GMT+8 e ir acompanhando todas as vicissitudes do que se vai passando aí dentro. De maneira que aos poucos me vou metaformoseando num desconhecedor do meu país, que vai sabendo dele muito au ralenti. Algumas coisas têm-me chegado através da rádio, agora que se pode ligar o rádio em qualquer lado. Ainda no outro dia ouvia a história de um artista que começou a ouvir música com o rádio do avô, à volta do qual se reunia toda a aldeia, porém, o rádio era ligado unicamente ao domingo à tarde “para não gastar muita pilha”. Outros tempos, outros sofrimentos. Uma coisa que tenho vindo a notar recentemente é que a música que se tem feito em Portugal anda muito diferente, pelo menos a pouca que me vai chegando. Tudo são musiquinhas moles, envergonhadas, tudo muito acústico, mas onde até o eletrónico não quer incomodar os vizinhos, letras curtinhas, cansadas, umas vozes que não queriam ter sido arrancadas da cama, artistas que se expressam pelas vestimentas, mas em que depois as gargantas só conseguem lançar aquela expressão muda, seca, palavras mal saídas a quererem voltar para dentro, botadas em modo meloso, pegajoso como o álcool que escorrega das garrafas vazias espalhadas pelo chão da sala. Tudo soa a uma mesma Adriana Partimpim sem forças, empurrada para a frente de um microfone por recomendação e insistência do médico-psiquiatra, tudo meio imberbe, inacabado. Eu sei que a música é expressão do seu tempo e estes não são tempos nada comuns, também sei que para destilar descrença e abissal tristeza somos os primeiros, mas já é hora de começarmos a mudar um bocado o registo. Agora que vem o sol e a primavera, é uma boa oportunidade para desconfinar a música portuguesa, sair de casa, tirar o pijama borbotado de quinze dias, passar uma água pela cara e ir ver o mundo, apanhar um bocado de vitamina D e saborear uma esplanada. Já cansa esta ladaínha cantada por favor que faz o fado parecer Carnaval e em que tudo parece ser uma bossinha nova portuguesa extraída lá do fundo da fossa, uma autêntica fossa nova. Vamos sair da fossa, variar o registo, voltar a pôr as guitarras a rasgar, umas letraças daquelas, as bandas a justificar o aplauso feroz. É tempo disso, vamos voltar com força e desligar o modo abatido, desgostoso e agridocinho. Pimbalhada, rockalhada, martelada, metalada, popzada, venha tudo o que traga vida, sangue, decibéis. Tragam de lá o façam barulho e enfiem os “violões” e as violazinhas no saco. Por exemplo, as músicas do festival da canção têm sido uma tristeza, na mais literal acepção da palavra, no sentido de serem tão tristes e soturnas que até as pedras da calçada ficam a pensar se de facto não seria melhor cimentarem os passeios todos e irem desta para melhor. A gente às vezes até quer gostar destas músicas, mas nem consegue de tão apagadinhas e insuficientes que são. É imperativo levantar o estado de emergência da música portuguesa porque ela precisa de nos levantar a moral. Já não queremos esta música-ansiolítica, queremos algo com vida, com raiva, queremos os pés de dança, o salto, o golo, o orgasmo, o pontapé na atmosfera. Queremos música! Queremos a música portuguesa a gostar dela própria e não a música portuguesa a matar-se a ela própria, a desistir de si própria. Bora, música portuguesa, acredita em ti, tens tanta gente que te quer bem, salta da cama, anda viver meu amor que o sol está lá fora à espera de te ouvir cantar. E não nos venham com fatiotas nem outfits, tragam-nos música, queremos vibrações e variações, mas dispensamos esses palquistas quarenta-anos-depois que só têm a arte do guarda-roupa e da maquilhagem para mostrar. Queremos o antigo, o moderno, o revisitado e futurista, os agudos e os graves, sintonias de gritarias, sintetizadores e distorcedores, oboés e bués jambés, gaitas e guitarras, a vida nuns sopros, o bate-coração das baterias, cordas bambas e vocais, pandeiretas, palhetas e baquetas a bater nas mesmas teclas, quem canta seus males espanca, xilofones, saxofones, estar nos concertos e vê-los através dos telefones, castanholas portuguesas, carrilhões, apitos e berimbaus, queremos ir para cima das colunas, cabines de som e pregos no prato quando cai a noite na cidade, cornetas de pistões e órgãos de soberania, a cauda dos pianos com a vara dos trompetes, caminhos de ferrinhos e triângulos de bermudas, o atabaque faz bem à saúde e contrabaixos não há argumentos, ponham a boca no trombone nesta noite de açucenas, venham de lá os címbalos a chocalhar e as hormonas da harmónica, é uma guitarra portuguesa concertinas, o estradivários está tantã desde que a rabeca se foi embora, a ver se vejo o realejo e o alaúde em Mafamude, os pandeiros são os primeiros, venham de lá os bombos da festa, queremos o lirismo das liras e o herpes das harpas, as mãos nas flautas e sanfonas, faça chinfrim o bandolim, acordem os acordeões, ponham-se finos os violinos… e todos juntos vamos em fanfarra bater à porta da música portuguesa e arrancá-la de casa, da fossa em que se enfiou. A fossa nova já foi chão que deu uvas. Não queremos essa coisa entorpecida, quebradiça, sem coragem. Queremos as nossas músicas, a nossa música de volta. Precisamos da intervenção da música, da vida que ela tem e da vida que nos dá. Renasce a música e renascemos nós. Precisamos todos de renascer já!

Dar água sem caneco

Quão fácil é falar? Falar é algo natural ao ser humano. Comunicar, de qualquer forma. É inato. Mesmo quem se diz anti- -social e que prefere estar sozinho acaba por ter necessidade de algum contacto humano (até porque, reparem, “quem se diz”. Tiveram em algum momento que verbalizar este sentimento). No meu caso em particular, sempre tive uma propensão enorme para comunicar. Até em demasia. Que o diga a minha mãe, que teve que lidar com uma criança que só queria conversar a toda a hora, criando tópicos de conversação à velocidade da luz e testando palavras que ouvia na televisão e tentava encaixar num discurso que, achava, coerente e fluído. “Filha, vai brincar um bocadinho para outro lado, para a mãe descansar a cabeça”. Uns bons trinta segundos depois, após uma volta completa à mesa da cozinha: “Já descansaste? Já posso falar outra vez?”. De tal forma estamos habituados a interagir, sem, até, darmos muita importância, que frequentemente dizemos mesmo que “falar é fácil”. Porque, de facto, sem embaraço atiramos palavras para expressar verdades, inverdades ou raio de coisa nenhuma. Para “deitar conversa fora”, para “dar dois dedos de conversa”. Ou, em alguns casos, “dar água sem caneco”, chegamos a essa conclusão. Temos a percepção de que falar, ceder parte do nosso tempo ou da nossa atenção pode não ter grande importância. Que não belisca em nada a nossa vida. Que pode ser, até, uma espécie de caridade para com alguém que precisava mesmo daqueles minutos do nosso dia. Minutos esses que a nós nem nos fizeram diferença, nem demos pela falta deles. Conseguimos completar as nossas tarefas sem aquele bocado que atirámos fora. Ainda assim, isto não corresponde à verdade. Dar água sem caneco pode ser perigoso. Não tão perigoso como ser ajudante de um atirador de facas ou beber lixívia - porque são coisas potencialmente mortais. Mas pode deixarmos danos irreparáveis. Porque o tempo tem esta mania estranha de só andar para a frente. E ainda ninguém fez o favor de tornar um vira-tempo real (isto é uma referência à minha saga literária predilecta, mas podem trocar por máquina do tempo, que vai dar ao mesmo). Se somarmos todo o tempo perdido com conversas sobre coisa nenhuma ou que não nos levaram a uma conclusão arrebatadora, vamos chegar à conclusão que com este lero-lero perdemos, pelo menos, tempo que podia ser gasto com uma boa soneca, num passeio, numa mariscada ou, quiçá, numa prosa realmente interessante. E por que é que temos este tipo de conversas? É porque achamos que nos guiam a algum lado ou porque retiramos delas alguma satisfação pessoal momentânea, sob um ponto de vista retorcido? Há estas pessoas que teimam em conversar sobre tudo. Tudo é um possível assunto para uma conversa séria, daquelas que exigem tempo e disposição, para deixar tudo em pratos limpos. A não ser, claro, que seja mesmo necessário conversar. É que, hoje em dia, tudo é muito efémero. E é tão fácil falar, mas só se não tivermos nada de útil para dizer. Dizemos coisas da boca para fora. E, no final do dia, parece que andamos é todos a dar água sem caneco.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 3 Entre Bragança, Múrcia e Lisboa, os filhos de Ana Pimentel

Para além de Manuel Santiago, de cuja descendência já falámos, Jacinto Ferreira teve dois irmãos que foram ourives da prata. Os dois viveram em Miranda do Douro e ambos tiveram contas com o santo ofício, juntamente com as respetivas consortes. Um deles foi António da Costa, casado com Maria dos Santos, sua sobrinha, filha do citado Manuel Santiago. O outro chamou-se Francisco Pimentel e era ourives da prata, casado com Catarina da Costa, filha de Francisco de Albuquerque e Maria Serrão, família de quem falaremos em próximo texto. E teve também uma irmã, batizada em Bragança com o nome de Ana Pimentel, que passou a ser geralmente conhecida por Ana Gomes, por ser casada com Francisco Gomes, escrivão e rendeiro, homem de influência e prestígio na cidade de Bragança. Em Março de 1661, Ana Pimentel (Gomes) era já viúva, conforme testemunhou sua tia Ana Pimentel, perante o inquisidor Manuel Pimentel de Sousa: - Haverá 11 anos, em sua casa, se achou com a dita sua mãe, Francisca Henriques e com Agostinha Pereira, mulher de Francisco da Costa Pimentel, e com Ana Gomes, sobrinha segunda, por ambas as vias, dela confitente e Ana Gomes é viúva de Francisco Gomes, escrevente e rendeiro.  Depois que ficou viúva, Ana Gomes deixou Bragança e foi-se para a cidade de Múrcia, em Castela, onde o seu conterrâneo António de Sória trazia arrendada a cobrança dos “milhones” naquela região.  Aliás, ela própria pertencia à família dos Sória, originária de Bragança. Ana e Francisco tiveram 4 filhos e uma filha. Um dos filhos chamou-se António Gomes e residiu em Bragança onde exercia o ofício de ourives do ouro, alcançando a categoria de “mestre”, o que lhe permitia dar “formação profissional”. A propósito, temos o testemunho de um dos seus formandos, o aprendiz de ourives, Ambrósio Saldanha Sória que, em 23.1.1693, na inquisição de Lerena disse: - Haverá 20 anos, tendo (o seu mestre) de fazer uma jornada da cidade de Bragança para Múrcia para ver sua mãe que lhe parece se chamava Ana Gomes e presume ter sido presa pela inquisição daquela cidade, o dito seu Mestre lhe disse, encomendando este a Álvaro Vaz, prateiro… Será que Ana Pimentel Gomes regressou com o filho a Bragança, terra onde veio a falecer, conforme informação de seu sobrinho Fernando Fonseca Chaves? Deixemos Ana e voltemos ao filho, António Gomes que era casado com Brites da Costa. Francisco Gomes, um dos seus filhos, estudou medicina em Coimbra, ausentando-se para a “Corte de Roma”. Outro, Manuel da Costa, foi ourives da prata e também deixou o reino. De um terceiro, também ourives da prata, temos conhecimento por algumas denúncias feitas contra ele, por parentes seus, como foi o caso de Francisco Pimentel e seu irmão Manuel Santiago que, em 13.5.1716, confessou, perante o inquisidor Francisco Carneiro de Figueiroa: - Haverá 8 anos, em Bragança, em casa de seu tio José Gomes, ourives da prata, solteiro, filho de António Gomes, do mesmo ofício, e Brites da Costa, ausentes, o doutrinou na lei de Moisés. António Gomes e Brites Costa tiveram também uma filha, que batizaram em Bragança com o nome de Leonor da Costa, a qual casou com Salvador Mesquita, torcedor e mercador de seda. O casal vivia no Porto e trabalhava em rede com a família, nomeadamente Lopo de Mesquita, irmão de Salvador, vendendo as peças de seda que lhe remetiam de Bragança onde eram tecidas. Veja-se, a propósito o testemunho do Moncorvense Manuel Lopes na audiência de 12.1.1704: - E também não sabe o apelido de um Salvador que diziam ser irmão de Lopo de Mesquita e que vivia no Porto (…) E o dito Lopo seu irmão lhe remetia as telas que se teciam para que as vendesse e encaminhasse para ele a diferentes partes, e ele confitente viu em Bragança em casa de Lopo de Mesquita algumas vezes que foi por seda e levar-lhe as telas ao dito Salvador Mesquita…  Acerca da família de Lopo (“um homem muito rico”) e Salvador de Mesquita, o já citado António, aliás, Jacob de Morais, fez a seguinte confissão, em 18.1.1718: - Há 2 anos em Bayonne se achou com (…) Lopo de Mesquita, cristão-novo, torcedor de seda, casado e hoje se chama Abraham de Mesquita, tendeiro, natural de Bragança e com Salvador Mesquita, filho deste, tratante de chocolate, casado com uma filha de Mécia de Morais, e hoje em Bayonne se chama Isaac de Morais, e estando os 3 com mais família desta casa, que consta de filhos e filhas e com as mulheres dos mesmos, se declararam e com os mesmos ia à sinagoga. Martinho Gomes, torcedor de seda, era outro filho de Ana Pimentel e Francisco Gomes. Estava casado com Maria de Medina, quando foi preso pela inquisição de Coimbra, ao início de Setembro de 1683, saindo penitenciado em cárcere a arbítrio dos inquisidores em 4.2.1685. Em 1696 a inquisição de Lerena enviou para a de Coimbra um treslado de culpas contra ele, pedindo a sua prisão. Martinho teria já fugido, pois que do processo consta apenas o mandado de prisão e o treslado das culpas. Não sabemos se foi nessa altura que outro seu irmão, Francisco Gomes da Costa, deixou Bragança e se foi para Múrcia onde casou com uma castelhana, chamada Constança Maria. Em Múrcia lhe nasceram dois filhos e duas filhas e, em Múrcia foram ambos pela inquisição ele e a mulher. Recuperada a liberdade, rumaram a Portugal com os filhos, ainda pequenos. Constança Maria faleceu pouco depois, em Bragança e Francisco e os filhos mudaram- -se para Aldeia Galega, hoje Montijo, dali transitando para Lisboa. André Francisco da Costa e Álvaro Francisco da Costa se chamavam os dois filhos de Francisco e Constança, ambos fabricantes de meias. André tinha 29 anos e Álvaro 25, quando foram presos pela inquisição, em 15.4.1713. Saíram penitenciados em cárcere a arbítrio dos inquisidores e penitências espirituais, no auto de 9.7.1713. Os seus processos são simples e normais, se é que alguma normalidade existia nos tribunais do santo ofício. André confessou que fora doutrinado na lei judaica, em Lisboa, pelo seu tio Fernando da Fonseca Chaves e Álvaro responsabilizou a mãe pelo mesmo ensino, em Bragança, para onde viera ainda pequeno. Notas de mais interesse em ambos os processos respeitam aos contactos com outros membros da nação hebreia de Bragança que assistiam na região de Lisboa, terras do Alentejo e Algarve, como era o caso de Rafael de Sá, que tinha loja de mercador em Lisboa ou José Cardoso da Paz, nascido em Ayamonte, Castela, filho de António Cardoso da Paz, que assistia em Faro e Ayamonte, de que falaremos em próximo texto. Por agora voltemos aos filhos de Ana Pimentel e Francisco Gomes para referir a filha Leonor da Costa que casou com António de Albuquerque, ourives da prata, um dos 30 e tantos brigantinos que, nos anos de 1661/1662 se foram apresentar a Coimbra. A esse tempo António era solteiro e morador em Bragança. Depois de casados, António e Leonor viveram algum tempo em Bragança, mudando- -se para a vila de Torrão, no Alentejo. De entre os seus filhos, referência para Filipa da Costa, nascida ainda em Bragança e que foi presa em 1706, quando morava em Lisboa, casada com o seu parente Dionísio Pimentel, rendeiro, filho de Eliseu Pimentel, um dos mais conceituados homens da “nação de Bragança” assistentes em Lisboa, de quem haveremos de falar.