Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: Manuel Almeida Castro (c. 1572 –?)
Ter, 27/12/2016 - 01:49
Bem pode Francisco apelar às lágrimas por Alepo e pelos milhões de deslocados, por cima de mais um Natal de luzes cintilantes, mesas fartas e planos para festarolas de fim de ano, que o mundo continuará no seu ritmo de desgraças, sem contemplações por piedosos lamentos ou simples alívios de consciência.
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
Nasceu em Bragança por 1686 e foi batizado na igreja de Santa Maria com o nome de António de Morais. Filho de Manuel Lopes Carvalho e de Isabel de Morais, cedo ficou órfão de mãe, casando seu pai segunda vez com Branca Pereira, de Freixo de Espada à Cinta . Tinha um irmão inteiro, que era soldado e se chamava Baltasar de Carvalho e 10 meios-irmãos. Quase todos os membros da sua família, incluindo os tios e os primos, foram hóspedes nas cadeias do santo ofício.(1) A sua profissão era a de torcedor de seda, tal como o seu pai. Casou com Francisca Rodrigues e o casal não teria filhos.
Andava nos 24 anos e, face à prisão de vários familiares e amigos, em mais uma ofensiva da inquisição na cidade de Bragança, António de Morais e Francisca Rodrigues meteram-se a caminho de França e foram ter à cidade de Bayonne, onde chegaram em Maio de 1711. À chegada foram acolhidos em casa de Brites de Sá, a galinha de alcunha, viúva, sua conhecida da cidade de Bragança e que ali morava com seus filhos. Ao outro dia, foram viver para casa de Luís Álvares Rodrigues e Branca Maria, irmã de Francisca, fugidos também de Trás-os-Montes, mais concretamente do lugar de Santavalha, termo de Monforte de Rio Livre. 15 dias depois, o casal arranjou morada própria e António de Morais começou governando a vida a trabalhar na sua profissão de sirgueiro, nomeadamente fazendo botões de seda.
Por 4 anos e alguns meses assistiram em Bayonne, vivendo como públicos judeus. Ao início de 1716 António decidiu regressar a Bragança, deixando a mulher em Bayonne, explicando que “não tinha posses para alugar uma besta para a trazer”. E por falta de dinheiro teve de fazer uma escala em La Bañesa, Espanha, durante mais de 9 meses, ali trabalhando como botoeiro. Estranhamente entrou em Portugal pela raia de Chaves, mais distanciada que Bragança, dali seguindo diretamente para Coimbra para se apresentar no tribunal da inquisição, o que fez, em 26 do mês de Maio do dito ano de 1716. Certamente pensava que, depois de ouvirem sua espontânea confissão, o mandariam regressar a Bragança e ele poderia livremente andar pelo reino. Assim, com esse entendimento, terá mandado vir também a mulher, a qual chegou a Bragança por Maio de 1717.
Acontece que, entretanto, aberta a sua ficha na inquisição, ela se foi enchendo de denúncias feitas por outros prisioneiros. E ele não foi o único a dirigir-se a França (com o objetivo primeiro de se circuncidar?) e regressar a Portugal disposto a confessar suas culpas e ser bom cristão. De modo que, em 30 de dezembro de 1717, Sua Eminência o inquisidor geral ordenou a prisão de António Morais e recomendou algumas cautelas, conforme resulta da seguinte carta do conselho geral para a inquisição de Coimbra:
— No correio passado, depois de ter mandado a bolsa, me ordenou Sua Eminência escrevesse a V. Mercês e o fiz fora da dita bolsa para que mandassem prender os apresentados vindos de Bayonne de França que haviam sido circuncidados, e que o fizesse com grande cautela para que não soubesse um do outro e que cada um viesse separado para que se não pudessem ver nem comunicar pelo caminho, e que estando nesta inquisição, se observasse o mesmo e que avisassem para ordenar o que lhe parecesse.
O prisioneiro foi entregue em Lisboa no dia 14 de Janeiro. Decorreu o seu processo com alguma normalidade, se é que alguma havia nesta instituição. Acabou António por sair no auto de fé de 16 de junho de 1720, sentenciado em penas espirituais e cárcere a arbítrio dos inquisidores. O seu processo é, porém, muito interessante, a vários níveis.(2)
Em primeiro lugar porque nos faz uma descrição do itinerário seguido entre Bragança e Bayonne, com indicação das principais localidades por onde passou (Puebla, Rio Seco, Vitória, Irún, S. Jean de Luz) calculando a distância percorrida em 100 léguas. E esta seria a normal rota das fugas de Bragança e do alto Trás-os-Montes.
Depois apresenta-nos várias pessoas e famílias brigantinas e trasmontanas que ali viviam, com os respetivos nomes cristãos e judaicos e dá-nos informações preciosas sobre a vida da comunidade marrana/judia de Bayonne onde havia “umas 12 ou 13 sinagogas,” todas funcionando em casas particulares mas “públicas quanto a saberem disso todos os moradores”. A generalidade era sustentada pelos proprietários e os que as frequentavam não pagavam nada. Em outras, os donos das casas aceitavam ofertas, lembrando-se ele de, em uma ocasião ter oferecido duas patacas. Como eram essas sinagogas? Nada de especial, conforme seu testemunho:
— A sinagoga é uma casa em que não há mais que um lampadário aceso e um pergaminho metido em um armário em que está escrita em hebreu a Lei de Moisés e quando se juntam os judeus nas sinagogas, o praticante a que chamam Garção, lê por ela e os mais judeus que sabem hebraico respondem na língua e os outros que não sabem, como ele réu não sabia, respondem somente Amén.
Uma das sinagogas referidas funcionava em casa de Isaac Henriques Julião, originário de Torre de Moncorvo ou Vila Flor e nela Jacob de Morais se encontrou com o brigantino Francisco de Sá pilão que ali se chamava Abraham de Sá que era “circuncidado e judeu público”.
Outro de seus conterrâneos de Bragança que com ele judaizou em Bayonne foi Lopo da Mesquita, torcedor de seda, circuncidado com o nome de Abraham da Mesquita. E também o filho deste, Salvador da Mesquita, com o nome judeu de Isaac de Morais.
Porém, os seus companheiros mais assíduos na sinagoga eram os 3 filhos do barbeiro Francisco de Sá Carrança, fugido de Vila Flor, casado com Violante Rodrigues, de Bragança. A propósito, vejamos um pouco do seu testemunho:
— Por ocasião de os acompanhar na sinagoga, todos os dias, no decurso de 4 para 5 anos, indo a ela todos os dias, por 3 vezes, pela manhã às 7 horas e de tarde às 3 e à noite às 5 ou 6 horas, conforme os tempos, e ali ficava uma hora e era o tempo em que lia os Salmos de David em língua hebraica um judeu circuncidado chamado Abraham e ele respondia Amén e os mais lhe respondiam em língua hebraica.
A circuncisão de António Morais teve lugar dois meses depois da chegada a Bayonne e foi feita em sua casa por um “judeu francês por nome Abraham que foi seu padrinho, assistindo ao ato um outro judeu francês chamado Samuel Talavera.
Da leitura do processo de António Morais e outros mais de pessoas que foram e vieram uma questão fica no ar:
— O motivo principal da sua viagem e estadia temporária em França seria a procura da circuncisão?
Cremos que sim. E nesse caso teremos de encarar estes marranos como verdadeiros judeus para quem a circuncisão é o sinal da aliança estabelecida entre Deus e Abraão. E temos de reconhecer que eles não eram os “analfabetos religiosos” que muitas vezes se diz, antes tinham conhecimento bastante profundo da lei e do calendário religioso judaico. António (Jacob) de Morais sabia perfeitamente quando caíam e como deviam ser guardados os dias festivos judaicos como o Kipur, o da Rainha Ester, do Pessah, do Rosh Hashaná (que ele chama das Rosas), o das Cabanas que “tem 8 dias festivos e no primeiro fazem umas cabanas, em qualquer pátio de alguns judeus aonde os mais vão comer e se lê a lei em hebraico”.
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Sex, 23/12/2016 - 11:53
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