Corria o ano de 1578. na época das colheitas. Em Vale Prados, então termo de Bragança, Isabel Cardoso, viúva de João Gonçalves, acompanhada pelo filho Diogo Gonçalves e pelo sobrinho Gonçalo Fernandes procediam à cobrança das rendas devidas à Sé de Miranda do Douro, que traziam arrematadas. E estando os três na mesma casa, como judeus que eram na intimidade, fizeram as suas orações e cerimónias judaicas.
Passados quase 12 anos, em Novembro de 1589, quando a cidade de Bragança era tomada por uma vaga de prisões, Gonçalo Fernandes, receoso que o prendessem também, apresentou-se perante o vigário geral a confessar seus pecados. E um dos “pecados” que confessou foi exatamente o que ficou descrito.(1)
A essa altura a tia Isabel era já falecida e o primo Diogo, então com 28 anos, “estava recebido” para casar com Catarina da Paz, vivendo com ela em casa de seus cunhados, na rua Direita, de Bragança.
E bastou esta simples e única denúncia para os inquisidores de Coimbra decretarem a prisão de Diogo Gonçalves, o belfo, de alcunha, que ali foi entregue pelo solicitador Onofre Figueiredo, em 19 de fevereiro de 1591.
No decurso do processo, enquanto esteve preso, choveram denúncias contra ele. Tal como ele denunciou quantidade de correligionários. Era esse o ambiente criado: todos “davam em todos”. A tal ponto que os “marranos” brigantinos conseguiram entupir e paralisar o tribunal da inquisição de Coimbra e fazer com que nas suas cadeias metessem alguns dos cristãos-velhos que na cidade mais festejavam e folgavam com as prisões dos “judeus”. O assunto foi estudado pela Dr.ª Elvira Mea e ficou conhecido como o caso dos falsários de Bragança.(2)
Acompanhemos agora a prisão de Diogo que foi metido na cadeia da cidade, enquanto se procedia ao sequestro dos seus bens e organizava a “leva” para Coimbra. No mesmo espaço, com ele, foram metidos outros 9 companheiros, um dos quais se chamava Luís de Carrião que acrescentou mais uma denúncia contando aos inquisidores:
— Estando todos juntos na cadeia, apartados da outra gente e vendo-se em tão grande aperto como o em que estavam, todos e cada uma das ditas pessoas juntamente com ele chamavam pelo Deus dos Céus que lhes valesse e os tirasse de tamanho aperto, assim como tirara os filhos de Israel da fúria e aperto do Faraó.(3)
Manuel Rodrigues “caminheiro” foi ali falar com um dos prisioneiros (Jerónimo Mendes) e combinaram que ele “caminheiro” fosse na frente, a Coimbra e falasse com os penitenciados no último auto da fé(4) que andavam na cidade cumprindo suas penitências, para saber quem haviam denunciado e viesse depois ter com eles ao caminho para lhe dar a resposta a fim de prepararem defesa. Pagou-lhe e… a verdade é que não mais viu a resposta nem o dinheiro nem o “caminheiro”.
Outro dos prisioneiros era Rodrigo Lopes, porventura o homem mais endinheirado de Bragança,(5) sogro do fidalgo Pedro de Figueiredo, que em sua casa morava. E constituindo um escândalo a sua prisão, muita gente se movimentou para o ajudar e livrar. E um deles foi Miguel de Sousa, um homem da nobreza de Bragança, cavaleiro da ordem de Santiago que foi entregar-lhe um papel às escondidas, quando a comitiva se encontrava no lugar de Santo Amaro, termo de Foz Côa. Este e outros episódios levariam à prisão e morte de Miguel de Sousa.
Obviamente que tudo isto eram culpas que implicavam o nosso biografado, mesmo não sendo o autor, na medida em que tinha obrigação de as denunciar e colaborar com o santo ofício. No entanto havia outros factos bem mais comprometedores.
Voltemos a Bragança, à rua Direita, a casa de Estêvão Cardoso e Justa Fernandes, avós maternos de Diogo Gonçalves. Esta era a casa em que muitos dos marranos de Bragança costumavam reunir-se em sinagoga “por ela, Justa Fernandes, ser entendida nas coisas da lei de Moisés e a ensinava a todos”.
E quem chamava os outros para as “sinagogas” naquela casa era precisamente Diogo Gonçalves. E esta, de ser o “chamador” era uma acusação extremamente grave. Mas vejamos o testemunho de António Rodrigues, o bonilha, explicando como celebravam então o dia sagrado do Kipur:
— Disse que em casa de Justa Fernandes se declarou também com Estêvão Cardoso, seu marido, e com Isabel Cardosa e João Gonçalves, seus filhos, e com Diogo Gonçalves, filho de Isabel Cardosa, e com Pero Fernandes, o papudo, e com Mécia Fernandes sua mulher, e com Gaspar de Burgos e sua mãe Filipa Fernandes, e com Isabel de Burgos mulher de Francisco de Castro o machim, filha da dita Filipa Fernandes, e com Ana Fernandes, irmã de Isabel de Burgos, mulher de João Afonso, e com Gabriel de Burgos, cristão-novo, sapateiro, irmão dos sobreditos e com Francisca de Leão, cristã-nova viúva, sobrinha de Estêvão Cardoso, mulher que foi de Pero Lopes, sapateiro, e com Filipa Fernandes, filha de Pero Fernandes, papudo e mulher de Manuel Fernandes, cristão-novo, sapateiro; e todos juntos ora uns ora outros, em casa de Justa Fernandes, em setembro; e o dito Diogo Gonçalves era o que chamava cada uma das ditas pessoas, por mandado de Isabel Cardosa sua mãe; e ali estavam 3 dias contínuos pelo mês de setembro, não comendo em um deles senão à noite que cada um ia cear a sua casa, declarando-se todos por judeus. E António Cardoso, cristão-novo, curtidor, filho da dita Justa Fernandes e Luís Cardoso, filho de António Cardoso, que foram presos; e Diogo Gonçalves não foi sempre o chamador, só de 10 anos a esta parte, por ser moço…
Descrições semelhantes foram feitas por outros participantes das “sinagogas” em casa de Justa Fernandes, mesmo depois da morte do marido e da filha Isabel, mãe do nosso biografado, que então assumiria as funções de “chefe da família”. Em uma dessas descrições, feita por Álvaro Vaz, padrasto de Diogo, se diz que a casa estava separada da de António Rodrigues, seu parente e vizinho, “somente por um tabuado pelo meio do aposento” e aquele era o anfitrião dos “ajuntamentos” depois que faleceu Justa Fernandes, por 1589.
Particular amigo, companheiro e cúmplice de Diogo Gonçalves era um Dinis Fragoso, rendeiro, nascido em Lisboa, criado em Torre de Moncorvo e casado em Bragança onde era morador. E em certa altura, os dois decidiram ir à feira de Santiago de Compostela, em companhia de 4 outros mercadores de suas relações. E foi decidido que eles dois seguissem na frente, encarregados de preparar o jantar, o que fizeram na aldeia de Vilarandelo onde compraram um pão e um quarto de “crestão”. E antes de assarem o cabrito tiraram-lhe a “lândoa”,(6) cumprindo a lei judaica. E quando os outros chegaram e se sentaram a comer, todos reconheceram e concordaram, que o mesmo é dizer que todos mostraram que conheciam a lei judaica e a seguiam, na medida do possível. Continuaram a viagem e, no regresso, todos combinaram reunir-se, como ele explicou Diogo aos inquisidores:
— (…) Tornaram a caminhar e se descobriram por judeus e se concertaram todos que, tanto que chegassem a Bragança logo na sexta-feira seguinte jejuassem um jejum judaico por guarda da dita lei e fosse que era em casa do dito Dinis Fragoso que tinha um forno e com efeito chegaram à quinta-feira à noite a Bragança e logo naquela sexta-feira à boca da noite foi a casa de Dinis Fragoso que tinha feito uma ceia de garbanços, peixe e outras coisas que não eram de carne e todos cearam.
Muitas notas de interesse para o estudo da vida quotidiana da comunidade hebreia de Bragança nos fornece o processo de Diogo Gonçalves cuja profissão era a de sapateiro mas também saía a comprar sumagre para a preparação das solas, atividade certamente aprendida com o pai que era curtidor.
Resta dizer que a estadia de Diogo Gonçalves nas masmorras de Coimbra se prolongou por mais de 2 anos, saindo condenado no auto da fé de 26.6.1593 onde foram relaxados 9 correligionários seus de Bragança: Diogo Fernandes; João Vilhalpando; João de Carrião; Manuel Rodrigues; Ana Pereira; Francisca de Leão; Isabel Rodrigues; Isabel da Mesquita e Henrique Afonso que se matou no cárcere.
NOTAS E BIBLIOGRAFIA:
1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 9697, de Gonçalo Fernandes.
2 - MEA, Elvira Cunha de Azevedo – A Inquisição de Coimbra no Século XVI, a Instituição, os Homens e a Sociedade, Fundação Engº António de Almeida, Porto, 1997, pp. 474-480.
3 - ANTT, inq. Coimbra, pº 475, de Diogo Gonçalves.
4 - O citado auto de fé realizou-se em 26 de Novembro de 1589 e nele foram relaxados 5 cristãos-novos de Bragança: Pedro Cardoso; Filipa Rodrigues; António Cardoso; Luís Cardoso e Afonso Rodrigues.
5 - Para avaliar da importância deste homem bastará dizer que a Rua Direita de Bragança era também chamada de Rua Larga e de Rua de Rodrigo Lopes.
6 - Os judeus não comem o nervo ciático que está na articulação da coxa, em memória da luta de Jacob durante a noite na qual foi ferido na coxa – Genesis, 32:33.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães