A festa não mata a dor

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Ter, 16/05/2017 - 12:57


Houve festa de três dias por esse país fora. Enquanto muitos terão sentido as almas radiosas, com o “upgrade” no catálogo de santidades, outros terão deixado referver as vísceras numa marinada de cerveja, amendoins e batatas fritas gordurosas,

graças à águia que paira, de olho certeiro, há quatro anos, nos céus ainda azuis; por fim, olhos turvos de lágrimas de ternura sonharam com um novo quinto império, da língua, da poesia e da sensibilidade.

Festa é festa e de nada vale estragá-la com lamentos ou dedos apontados às consciências. Mas não é avisado que nos deixemos inebriar, confundindo a percepção da vida real, que nunca se transformará da noite para o dia, numa alameda triunfante até às portas do paraíso.
Trepidante foi a festa. Mas não permitiu que, pelo nordeste, deixemos de encarar, com legítimas dúvidas, o presente e o futuro.
Sem nos confundirmos com regionalismos passadistas, provincianismos bacôcos nem localismos de esquina, reconheçamos as dores que, apesar da festa, não deixam de nos moer.
Dor primeira: enquanto as orações murmuradas, em Fátima e pelo caminho, se tornaram um rumor que terá chegado aos céus, se tivéssemos subido ao cabeço da Senhora da Assunção, ficaríamos com uma sensação de paraíso descartado, com a serpente mortífera do olvido à espreita. De facto, até os nossos lugares sagrados, onde ainda queremos sentir a vibração dos desígnios divinos, poderão tornar-se pontos de encontro de todos os fantasmas. Estão a desaparecer romarias que, durante séculos, marcaram o ritmo das nossas vidas e, pelo andar da carruagem, doutras se perderá a memória, até que a própria raiz seque para sempre. Claro que Fátima há-de chegar para todos os miserandos.
Moinha irritante: enquanto o Marquês, na capital, sofria tratos de polé, para mal dos seus pecados, lembramos que os dez estádios, construídos e financiados para 2004, ficam, quem diria..., naquela famigerada faixa que há-de afogar o país. Enquanto se vão rebolando campeões em Lisboa ou no Porto, os nossos clubes não resistem e afundam-se no desespero da redução à insignificância. Mesmo assim, também nos sentimos com direito a participar na festa, já que Luís Miguel Fernandes (Pizzi) é um dos heróis do primeiro tetra benfiquista, o menino de Bragança, que por aqui se iniciou nas lides da bola. Mas os nossos futebóis estão em correspondência com o resto das nossas misérias.
Quase tristeza: olhos mareados não faltaram sábado à noite, enquanto um cantor português dignificou a poesia e a música, por entre uma feira de lata ruidosa. Pode ser que, com o exemplo, a Eurovisão mude de rumo. Mas, mais uma vez, temos que lamentar o que se tem perdido de talentos desta terra, nunca reconhecidos. Quando se vivia o empolgamento, ao fim da noite, lembrei-me de um projecto, na Bragança da transição do século, “Odores de Maria”, criadores de músicas originais, que contavam com uma voz, de Maria Zulmira (Mirinha), que o acaso ceifou quando florescia e que Kiev ou qualquer outra capital desta Europa também poderia ter aplaudido para nossa satisfação.
São dores sem remédio, que nenhumas festas aliviam.