Nunca se sabe tudo de coisa nenhuma. Falar de Fernando Pessoa é sempre tentar ir mais adiante buscando algo que ainda não foi dito ou escrito e que não chegou ao nosso conhecimento. Se foi ao Brasil e participou na Semana Cultural do Modernismo em São Paulo em 1922, era matéria que não nos tinha interessado, ou porque a limitação do nosso saber não atingisse esses horizontes ou porque nenhuma leitura pessoana o tenha abordado. E ler Pessoa ou sobre Pessoa é entrar num mundo fascinante onde não faltam surpresas, numa transversalidade que alarga os horizontes sobre um escritor que em vida pouco divulgou e nos deixou ignorantes de cerca de vinte e oito mil documentos.
Sabendo que Fernando Pessoa era avesso a viagens, para além das que havia feito para a África do Sul, não era provável a sua ida ao Brasil em 1922 para estar presente na celebração do Modernismo na cidade de São Paulo. A comemoração do centenário da independência do Brasil e a realização da primeira travessia aérea protagonizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral eram factos a ter em conta na vida dos dois países.
Em Portugal vivia-se o apogeu do Modernismo. Em 1915 são publicados os dois primeiros exemplares do Orpheu, revista trimestral de Literatura. São directores, para Portugal, Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho para o Brasil, no primeiro número. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro para o segundo número. Para editor é escolhido António Ferro, que à data tinha dezanove anos e que tinha sido colega de Mário de Sá-Carneiro no Liceu Camões.
De notar que entre os colaboradores estão dois poetas brasileiros: Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães, sendo a revista destinada a Portugal e ao Brasil.
Em artigo publicado na Seara Nova em Novembro de 1959, sem nome do autor, o articulista dá conta que tanto Portugal como o Brasil desconhecem o que se passa nos territórios de um e de outro, no âmbito cultural. Reconhecendo que “Coimbra fora, ao longo do século XIX, a fonte em que culturalmente se dessedentava o Brasil. Ali vinham formar-se as suas elites da cultura e da política, ali emparelhavam os aspirantes a escritores dos dois países em comum seguindo movimentos feitos ou erguendo o pavilhão de revolta dos movimentos novos”.
Incontestável verdade, contudo a partir da segunda década do século passado, dificuldades resultantes da segunda guerra mundial e um melhor apetrechamento e desenvolvimento cultural do Brasil, com o Atlântico de permeio, impuseram uma separação que, malgré tout, não se manifestou em todos os domínios.
Nos meios intelectuais brasileiros, os ecos do Modernismo já se tinham feito sentir.
A Águia saída em 1912, tinha assinantes e leitores no Brasil. Luís de Montalvor que partira para o Brasil nesse ano, é natural que tenha falado sobre o Modernismo e Fernando Pessoa, cabendo, também, a Luís de Montalvor, a introdução do Orpheu. Na biblioteca de Fernando Pessoa consta um livro com data de 1914, oferecido por Ronald deCarvalho que, também, colabora no Orpheu I, com Poemas – A Alma que passa, Lâmpada Nocturna, Terra Ignota, Elogio dos Repuxos e Reflexos.
A Semana da Arte Moderna Paulista não passa ao lado de António Ferro, director da revista semanal de O Século, Ilustração Portuguesa, desde 1 de Outubro de 1921, onde pontificavam nomes como Almada Negreiros, Fernando Pessoa, António Sardinha, João de Barros, Júlio Dantas e Rocha Martins.
A ida ao Brasil de um membro do Modernismo Português não se afigurava fácil, tanto mais que para António Ferro, director da revista há pouco, não estava nos seus horizontes abandonar o cargo.
Segundo Orlando Raimundo, autor de António Ferro, O Inventor do Salazarismo, a Semana Paulista teria lugar no Teatro Municipal, assentando a programação em sessões de poesia, intercaladas por palestras sobre modernidade e arte, sendo promotores os escritores Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Sérgio Costa e Silva e Plínio Salgado; os jornalistas Paulo del Picchia, Tácito de Almeida e Guilherme de Almeida; o escultor Víctor Brecheret; os pintores Di Cavancanti, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral.
António Ferro não podendo estar presente, pede a Ronald de Carvalho que o represente, pedido que foi aceite, lendo o texto Nós, em forma de Manifesto, tão ao gosto dos Modernistas, que virá a ser publicado no n.º 3 da revista Klaxon, de São Paulo, em 15 de Julho de 1922. Nós é um texto constituído por quatro páginas e duas personagens – um Eu esclarecido e a Multidão que se limita a dizer que não ouve nada e a apodar de Doidos varridos e Insolentes os representados pelo Eu que domina todo o discurso e que inicia, afirmando:
Somos os religiosos da Hora. Cada verso – uma cruz, cada palavra – uma gota de sangue. Sud-Express para o futuro – a nossa alma rápida. Um comboio que passa é um século que avança. Os comboios andam mais depressa do que os homens. Sejamos comboios, portanto!
Ser de hoje, Ser de hoje!!!... Não trazer relógio, nem perguntar que horas são. Somos a Hora! Não há que trazer relógios no pulso, nós próprios somos relógios que pulsam…
Um manifesto em forma de futurista, antecedido de uma epígrafe de Jean Cocteau “L’avenir n’appartient à personne. Il n’y a pas de precurseurs, il n’existe que des retardataires”.
A ausência de António Ferro e a leitura de Nós valeu-lhe os maiores encómios. Esquecidos os nomes de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros, António Ferro fora projectado no universo futurista na cidade de São Paulo.
A possibilidade de António Ferro ir ao Brasil continua em aberto. Aproveitando a circunstância da Companhia de Teatro Lucília Simões /Erico Braga ter sido convidada para uma tournée no Brasil no âmbito das comemorações do Centenário da Independência, representar Mar Alto, de António Ferro, é o autor convidado a integrar a Companhia que parte para o Rio de Janeiro em Maio de 1922. Carlos Malheiro Dias, exilado monárquico no Brasil, profere o discurso de recepção a António Ferro, no Teatro Lírico, do Rio de Janeiro em 30 de Julho de 1922, de que retiramos o seguinte extracto “Na vossa fantasia inesgotável, na novidade das vossas imagens, no sorriso das vossas ironias, há o sangue novo, que já foi nosso, circulando em elásticas artérias, e uma alma que tem asas e voa, contemporânea dos aeroplanos”.
Do escritor brasileiro Menotti del Picchia, na recepção a António Ferro, no Teatro Municipal de São Paulo, em 5 de Dezembro de 1922, é possível realçar:
Mas António Ferro é sempre um paradoxo: antes de aqui vir, já aqui estava. Encontrou-se consigo mesmo nos seus versos, que sabíamos de cor, nas suas frases-lápides, que sabíamos de cor.
Desvinculado da revista Ilustração Portuguesa que, entretanto, tinha sido gerida por João Ameal, António Ferro mantém-se no Brasil, onde conferencia e vê o Mar Alto ser estreado em 18 de Novembro em São Paulo, no Teatro Sant’Ana, protagonizando o papel de Henrique.
Com grande sucesso no Brasil, António Ferro com uma “proposta muito vantajosa para série de conferências no Brasil” dirige um telegrama à namorada, Fernanda de Castro, propondo-lhe casamento por procuração.
Com 21 anos, Fernanda de Castro celebrará o casamento, no dia 12 de Agosto de 1922, na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa, com o cunhado Augusto Cunha a fazer o papel de noivo. No Brasil, António Ferro terá como testemunhas Lucília Simões e o Almirante Gago Coutinho, chegado ao Rio de Janeiro em Junho, depois da travessia aérea começada em Lisboa a 30 de Março no hidroavião Lusitânia. Fernanda de Castro partirá para o Brasil no final do mês no navio Arlanza, da Mala Real Inglesa, segundo afirma “comum vago enxoval nas malas e uma grande ansiedade no coração”.
No Brasil, António Ferro proferiu conferências. Salvador, Recife, Belo Horizonte, Santos, Ribeirão Preto e Campinas são algumas das cidades por onde passou. Fernanda de Castro, com grandes cartazes a anunciar recitais de poesia, a princípio temerosa, ela que mal conseguis aprender de cor dois ou três poemas seus, quanto mais os dos outros, conforme confessa. Os tempos passaram. O sucesso acabou por se confirmar, as amizades consolidaram-se e proliferaram. Chegaram a Lisboa por volta de 15 de Maio de 1923, tendo nascido o primeiro filho a 14 de Julho: António Gabriel de Quadros Ferro que virá a ser grande especialista de Pessoa. Gabriel em homenagem ao italiano Gabriele d’Annunzio, precursor do fascismo italiano, que António Ferro tanto admirava.
Com a chegada a Lisboa do casal, tinha terminado o périplo em torno da Semana Cultural Paulista. António Ferro tinha visto o seu prestígio afirmado além-fronteiras; partiria para outros lugares que lhe abririam portas para Ministro na Suíça e depois em Roma, vindo a falecer a 11 de Novembro de 1956, em Lisboa, no Hospital de São José. Tinha 60 anos.
Fernando Pessoa distante do cosmopolitismo brasileiro, escrevia, escrevia e desmultiplicava-se. Não fora a São Paulo, mas mandara um dos seus heterónimos para a emigração. Ricardo Reis, nascido em 1887, educado num colégio de jesuítas, médico, vive no Brasil desde 1919, expatriado espontaneamente por ser monárquico. Apoiando-me em João César das Neves, num texto datado de 23-10-1988, de São Paulo, intitulado Ricardo Reis, o heterónimo imigrado, publicado pela Secretaria do Estado da Cultura em Lisboa, em 1990, no âmbito do Encontro Internacional do Centenário de Fernando Pessoa, realizado em Lisboa, Ricardo Reis terá escrito 35 poemas em Portugal e 89 no Brasil. Para Saramago que o ficcionou terá voltado a Portugal em 1935, para se inumar em 1936 – O Ano da Morte de Ricardo Reis.
São Paulo e os brasileiros não esqueceram Pessoa. Admiraram-no, comemoraram-no e celebraram-no. E a Fundação Engenheiro António de Almeida esteve presente. Afirmativamente colaborou na elevação do busto de Fernando Pessoa na Avenida de Sagres, Jardim Lusitânia na cidade de São Paulo, de autoria de Maria Irene Vilar, de Matosinhos, e que na sua terra contribuiu para a criação de um Museu de Arte.
Fernando Pessoa, de forma icónica, a encerrar o centenário do seu nascimento em São Paulo, Brasil, nas comemorações que aí decorreram de 26 a 30 de Abril de 1988.
Ditosa Pátria que tal filho teve – Os Lusíadas, canto VIII, estrofe 32.
Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico
Por João Cabrita