Seria o último “judeu” brigantino a ser queimado nas fogueiras da inquisição de Lisboa, no auto da fé de 19 de Maio de 1754 em que foram sentenciados 43 réus, 20 dos quais ligados a Bragança e quase todos aparentados com o nosso biografado, nomeadamente o médico José Álvares da Silva, seu irmão. (1)
Jerónimo José Ramos nasceu em Bragança em 22 de Fevereiro de 1726, sendo filho de Pascoal Ramos Álvares e Isabel Maria da Silva, (2) esta natural de Mirandela e aquele de Vinhais, um e outro também com largo historial nas cadeias da inquisição, como também vários de seus ancestrais.
Cedo começou com o pai a vida de mercador. Estava solteiro e tinha 23 anos quando o levaram preso para a inquisição de Coimbra, em “manada” conduzida pelo padre Manuel Caetano da Rocha Pimentel, familiar do santo ofício, da cidade de Bragança.
O rol das denúncias contra ele apresentadas por duas dezenas de conterrâneos que então foram presos ou se apresentaram voluntariamente, é bem significativo das vivências e manifestações culturais da comunidade hebreia dois séculos e meio depois que a religião mosaica foi proibida.
Jerónimo negou todas as acusações e afirmou que sempre cumprira os deveres de cristão. E não faltaram testemunhas de crédito a defendê-lo, nos inquéritos que os inquisidores mandaram fazer em Bragança, Lebução e Vinhais, as terras por onde ele ordinariamente andava mercadejando. Para a história da inquisição em Trás-os-Montes, podemos dizer que o comissário de Bragança era então o Dr. José de Morais Antas, na área de Vinhais era comissário o reitor de S. Julião de Paçô e as testemunhas de Lebução costumavam ser inquiridas pelo comissário Manuel de Sousa Botto, reitor da igreja de S. Martinho de Bornes. Acrescente-se que uma das testemunhas abonatórias do cristianismo do réu foi o familiar do santo ofício Caetano José Pereira, natural de Argoselo e morador em Vinhais.
Obviamente que dizendo-se cristão, Jerónimo explicava as culpas que lhe atribuíam com ódios e invejas de seus inimigos que davam testemunhos “menos verdadeiros por serem falsos e subornados, a fim de se vingarem e destruírem ao pobre e inocente réu”. E apontava situações concretas, ocorrências as mais diversas e que serão de muito interesse para o estudo da vida quotidiana da comunidade local e da sociedade trasmontana daquela época. Apenas um exemplo:
- Disse que sendo devedor o dito Gabriel Mendes Borges ao irmão do réu Francisco Ramos da Silva de certa quantia de dinheiro e obrigando-o judicialmente à satisfação do mesmo, se alcançou a sentença contra o dito Gabriel, com a declaração que seria obrigado o dito irmão do réu a aceitar a satisfação e pagamento da dívida em mantos de que se usa naquela cidade.
Uso interessante: não tendo dinheiro, pagava a dívida com mantos de seda que fabricava! Mas veja-se o seguimento do caso:
- Acomodando-se o irmão do réu com aquela sentença (…) lhe dava o dito Gabriel para pagamento uns mantos de qualidade tal que, por incapazes, se não deviam aceitar. Pelo que os repugnou aceitar o feitor do irmão, do que, travando-se de razões e descomposturas, lançando os ditos mantos no chão, os pisaram e enxovalharam…
Entretanto, o conselho geral da inquisição mandou transferir o processo para Lisboa, sendo ali entregue o réu em 20 de Janeiro de 1750. Continuaram os interrogatórios e ele a manter-se negativo, afirmando-se cristão e apresentando contraditas.
Tempos dramáticos e dias de medo tê-los-á vivido em Abril de 1752, receando que pudesse acontecer-lhe como aos seus conterrâneos Inácio Borges e António Gabriel Ledesma que no auto de fé celebrado no dia 20 daquele mês foram queimados na fogueira. O processo dele aguardava então o cumprimento de mais uma diligência em Bragança e só ficaria concluso meses mais tarde. E enquanto ele se dizia cristão, a prova de seu judaísmo era atestada por duas dezenas de testemunhas. Decidiram os inquisidores condená-lo à morte e, nos termos do regimento, terá sido notificado da decisão 15 dias antes da realização do auto.
Nem assim se resolveu a confessar as suas culpas. Apenas na véspera do auto de fé e vendo-se já de mãos atadas, no dia 23 de Setembro de 1752, decidiu confessar que andava apartado da religião cristã e fazia cerimónias judaicas e que fora catequizado 14 anos atrás pelo advogado Bernardo Lopes Pereira. Entrou depois a vomitar denúncias sobre todos os que sabia terem estado presos ou fugidos e poderiam tê-lo incriminado.
Deram-lhe pouco crédito os inquisidores, “pelo modo e tempo em que fora feita a confissão” mantendo-se a ordem para ser relaxado. E estando-se na “festa”, com o réu sentado no cadafalso, pela uma hora da tarde, pediu audiência para confessar mais pecados e deles pedir perdão.
Pela 4ª vez se analisou o seu caso e mais uma vez se considerou que ele não estava verdadeiramente arrependido, antes confessava para se livrar da morte. Por isso mantiveram o despacho.
Jerónimo não desistia e, pelas 6 horas da tarde, voltou a pedir audiência e nela acrescentou muitas denúncias. E se, no final alguns dos inquisidores continuaram convictos de que as suas confissões eram fingidas, outros resolveram dar-lhe o benefício da dúvida e propor que ele ficasse “reservado” para o próximo auto. Foi esta a decisão seguida pelo conselho geral.
Imagine-se o turbilhão de ideias fervendo na cabeça deste homem de 25 anos quando voltou para a cela e ali o deixaram a apodrecer. Os dias passavam lentos e dolorosos naquele húmido e bafiento corredor da morte. E o pior é que, por largos meses, pareceu que ninguém queria saber dele, sentia-se abandonado ao seu destino. Abandonado por Deus e abandonado pelos homens, mesmo sendo os seus carrascos!
Ao cabo de um ano e 3 meses, no dia 5 de janeiro de 1754, certamente roído pelo desespero e feito um farrapo humano, Jerónimo José Ramos apresentou-se perante o inquisidor Manuel Varejão de Távora e prestou o depoimento seguinte:
- Disse que pedira audiência para se revogar de todas as confissões que havia feito nesta Mesa, de culpas de judaísmo, porque na verdade nunca se apartara da lei de nosso senhor Jesus Cristo nem teve crença da lei de Moisés e muito menos a comunicou com pessoa alguma da sua nação, pois sempre foi e é verdadeiro católico e o dizer falsamente de si e de outras muitas pessoas foi por se livrar da morte a que estava condenado…
A partir de então o seu destino estava traçado. Revogar-se era condenar-se. Procuraram apenas os inquisidores saber se a revogação resultava de um ato consciente ou se o réu ficara louco. Não: ele encontrava-se absolutamente lúcido. Sabia que estava preso há 57 meses. Disse que perdoava ao familiar do santo ofício que o prendeu e ao que o trouxe de Coimbra para Lisboa e que não tem queixas contra o alcaide e os guardas da cadeia… Mas reafirmava a revogação das suas confissões.
Como se disse, o destino estava traçado. Agora por unanimidade de votos, os senhores inquisidores ordenaram que fosse relaxado.
Dois dias antes do auto, depois que lhe ataram as mãos parecia encarar o facto com espantosa determinação e fez a seguinte declaração:
- Que não sabia a causa por que o mandavam relaxar (…) que os cristãos novos tanto que se viam presos costumavam dar uns nos outros e serem causa por este modo de queimarem a uns e a outros. E mais não disse e logo tornou a dizer que lhe angelicassem a sua vida porque ele teve sempre crença em Deus nosso senhor e nas 3 pessoas da santíssima trindade: pai, filho e espírito santo. E que se acharem o contrário, o podem mandar queimar.
Fantástico: ser queimado na fogueira era ser angelicado. Significava que faziam dele um santo! Não era assim que os mártires cristãos encaravam a morte?
Porém, dois dias depois, em 19 de Maio, pelas 3 e meia da tarde, estando no cadafalso à espera de ser lida a sua sentença e ser lançado na fogueira, avistou entre os condenados a cárcere e hábito, o seu irmão Luís Álvares da Silva. E então um sentimento de apego à vida o terá assaltado. Ter-se-á arrependido da revogação que fizera e causara a sua condenação à morte. Quis confessar de novo e pedir perdão, dizendo “ter feito a dita revogação por ter falta de juízo e por ter ouvido umas vozes que a isso o persuadiram”. Vã tentativa.
NOTAS E BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 2447, de Jerónimo José Ramos; pº 2636, José Álvares da Silva.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 8624, de Pascoal Ramos Álvares; pº 4160, de Isabel Maria da Silva.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães