Há tempos, descia uma encosta com estevas, giestas e urzes, carvalhos despontando a esmo, dono a dizer-me “isto noutro tempo deu pão e, até, trigo a partir daquela baixa!”, indicando onde a pendente se suavizava para terminar num pequeno vale, transformado num silvado a afogar meia dúzia de oliveiras enormes e uma nogueira triste de abandono. Perguntava-me ele se a terra daria para um projecto, “que o ponho em nome dum filho meu para o subsídio, umas amendoeiras ou outra coisa que não dê trabalho de cá vir muitas vezes ao ano”. Vive no sul há muito tempo com a família, vindas a Trás-os-Montes só para a festa da aldeia ou para acertos de contas dum apartamento à renda em Mirandela e duma casa que tem na vila. Já era o décimo bocado que eu ia com ele visitar nessa tarde, todos distantes uns dos outros, todos de acesso problemático, a fazer dúzia e meia de hectares, se tanto, a que se juntariam mais umas courelas no “terreno bom” da aldeia, “emprestadas” a um vizinho. “Por que não vende ou arrenda? Não seria melhor do que um projecto do seu filho? Ele nem sequer cá quis vir!”. Olhou-me já a duvidar do conselho que lhe desse: “Isto deixou-me o meu pai e, um dia, eu vou deixar ao meu filho. Ele que faça depois o que entender! Já me dizia o meu avô, quando vim de França e se falou das terras que partimos entre os irmãos: Se não precisas de vender, não vendas! Vem a guerra, vai-se a guerra e fica a terra!”. A agricultura de Trás-os- -Montes teve uma transformação sem precedentes nos últimos trinta e tal anos e ninguém diria, então, que surgiriam entre nós os investidores que hoje plantam olivais, vinha, morangais, castanheiros, pomares, hortas, com a melhor e mais moderna ciência e tecnologia e a gerar riqueza onde os pessimistas só viam terrenos incultos. Há contratos com empresas de transformação e revenda, há negócios a fazer fluir. Alguns ficam pelo caminho? Ficam, tal como ficam os de imobiliário, de comércio, de hotelaria e restauração, de outra coisa qualquer: nem todos os projectos sobrevivem. Mas a capacidade de investimento, inovação e resiliência está a permitir descobrir, aqui e ali, a quem percorra pelas estradas secundárias, as mudanças na paisagem em progresso. Não só na paisagem: nas prateleiras dos supermercados e lojas do litoral há muitas marcas de produtos trasmontanos que não existiam apenas há uma década! Com problemas? Sim. Alguns. A começar com o do acesso à terra. É muito difícil este problema, porque é de mentalidade. Vender o que se herdou, arrendar a longo prazo, deixar que outros pisem e revolvam a terra de antepassados custa a aceitar por muitos dos que são os detentores das propriedades, agarrados a esse sentimento atávico. Tendo a ver com parcelas, muitas vezes, encravadas no meio de outras, compromete-se o sucesso de projectos pensados em visão macro. E essas parcelas, porque inviáveis por si só, vão ficando para trás, enchendo-se de silvas e metendo dó pelo abandono. É minha convicção que os avós de muitos teriam mais satisfação se vissem as terras tratadas e a produzir, ainda que em mãos de outros, do que assim, conservadas incultas e ao abandono. Porque os avós, quando deixaram as suas terras, tinham delas a ideia dum modo de produzir riqueza e subsistência, nunca lhes passando pela cabeça que deixar terras aos herdeiros fosse deixar um património para estar abandonado e a não render. Há uma parte do sucesso da agricultura do interior que depende da decisão dos proprietários em permitir que outros possam arrendar ou adquirir as terras necessárias para o investimento. Parece ser coisa simples. E é. Mas é algo complicado porque tem a ver com a mentalidade. A decisão é livre. Corresponder à vontade de avós e pais em manter as terras que deixaram produtivas e bonitas de se ver pode muito bem corresponder ao passo de as arrendar ou vender. Ao passo no sentido do futuro.