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Qem só sabe de futebol Nem de futebol sabe

A frase aparece com várias formulações mas a ideia é de Manuel Sérgio, conhecido como o filósofo do futebol. O Professor e antigo Deputado na Assembleia da República tem chamado à atenção do erro que é tentar resolver questões complexas com olhares unidirecionais, por mais complexos e “competentes” que estes possam ser, na sua especialidade. É assim não só no futebol como, praticamente, em todas as áreas da vida contemporânea.

A sociedade moderna impõe a existência de especialistas nas mais variadas áreas do conhecimento e da gestão societária. É verdade que a complexidade dos temas, a grandiosidade das variáveis e a importância das consequências, para o bem e para o mal, exigem uma especialização crescente. Paradoxalmente, a multidisciplinaridade dos assuntos mais importantes, impõem a partilha e abertura a várias áreas e conhecimentos complementares diversificados. Idealmente, os especialistas deveriam ter um perfil, nascido na renascença, mas há muito extinto por impossibilidade prática: o homem enciclopédico. O volume de conhecimento a multiplicidade de temas e profundidade dos seus requisitos tornou essa quimera impraticável. Essa é a razão pela qual a liderança do conhecimento humana, personalizada nos melhores cientistas, nas mais diversas áreas, deixou de se fazer de forma individual (nem tão pouco em grupo) mas alargadamente, em ampla cooperação. Apesar disso continua a haver áreas em que, pensando com isso aumentar a competitividade e concorrência internacional, algumas pastas são entregues a “especialistas” cuja reputação foi feita com abundantes provas dadas na matéria de que é suposto cuidarem mas, por tão especializados e focados, esquecem totalmente as disciplinas adjacentes, algumas delas bem próximas, influenciadas e influenciadoras daquela a que se dedicam. Conheço exemplos de mulheres e homens geniais, líderes mundiais nos estudos que promovem e incapazes de reconhecerem normas banais e pouco mais do que bom senso em áreas de suporte e de menos complementaridade. Felizmente, nesses casos, a inteligência geral que possuem, leva-os a confiarem em terceiros, permitem que, nesses campos outros, menos geniais mas mais c omp e tente s para o efeito os substituam, com ganho de causa. Não há qualquer drama nem isso representa qualquer menorização dos vários intervenientes. Em ciência é essa a norma e todos a respeitam, honram e aceitam.

Infelizmente não é assim quando passamos para o campo da política. Senhores de verdades absolutas, treinados para liderarem sem “desvios”, acostumados a que todas as críticas são oposicionistas, todos os reparos são penalizantes, quando especializados numa pasta e nela têm sucesso são tentados (muitos persistem) a esquecerem tudo o resto, menorizarem o que não é do seu domínio independentemente das consequências mesmo para este.

É o que se passa com o cargo de Ministro das Finanças na Holanda. As suas repugnantes declarações não são apenas uma inaceitável demonstração de falta de solidariedade. São igualmente estúpidas e ignorantes. Numa pandemia, no limite, (quase) todos vamos ser infetados. A melhor forma de defender e proteger os cidadãos holandeses passa pela contenção da contaminação galopante em Itália e Espanha.  

É de uma guerra que se trata, senhor primeiro-ministro!

Os portugueses depressa se aperceberam de que sempre que um ministro abria a boca saíam asneiras e entravam vírus em Portugal, tal o chorrilho de disparates com que procuravam desvalorizar a pandemia em desenvolvimento.

Cito apenas alguns exemplos para não dramatizar ainda mais a questão.

Mal a crise rebentou lá na sinistra República Popular da China, a ministra da Agricultura esfregou as mãos de contente porque, no seu douto entendimento, trazia vantagens para as nossas exportações agrícolas.

A ministra da Saúde com a sua proverbial bazófia apressou-se a gritar aos sete ventos que o SNS estava preparado para enfrentar a crise e o inefável ministro do Interior bateu o pé dizendo que não havia razões para fechar as fronteiras.

Entretanto, o primeiro-ministro continua a sorrir seraficamente e a procurar iludir os cidadãos como é seu timbre e talento, como se de uma campanha eleitoral se tratasse. É de uma guerra que se trata, de uma calamidade, senhor primeiro-ministro!

Maior insensatez foi a do presidente da república que fechou a matraca e desertou do campo de batalha, embora tenha tido o engenho e a arte de impor o estado de emergência. Mesmo assim o Governo, confrontado com uma guerra declarada sabe-se lá por quem, com o inimigo a invadir o país por terra, mar e ar, limitou-se a fazer o que lhe deu na democrática gana, aproveitando o cheque em branco, sem cobertura por certo, que a oposição lhe passou, com o senhor Rui Rio à cabeça.

Não se trata de uma guerra convencional, é certo, com bombas a rebentar por todo o lado, mas de uma guerra biológica, igualmente mortífera e devastadora da economia nacional e que rapidamente ganhou cariz subversivo pela mão dos maus jornalistas, dos açambarcadores e dos especuladores.

A verdade é que o Governo não providenciou atempadamente o que deveria ter providenciado, não mobilizou o Estado para a guerra e deixou a Nação, ao deus-dará, indefesa. Melhor teria andado se logo ao primeiro tiro, avisado que estava, tivesse controlado devidamente as fronteiras impedindo o inimigo de entrar, embora deixando passar tudo que viesse por bem.

E se de pronto tivesse armado, equipado e treinado o povo distribuindo as armas mais adequadas para fazer frente à ameaça. Não espingardas ou coisas que tais, mas mascaras, luvas, vestimentas, granadas desinfetantes e instruído devidamente os cidadãos para que pudessem continuar a trabalhar e a economia nacional não fosse gravosamente afectada.

Isso de encerrar indiscriminadamente meio mundo em casa por tempo indeterminado terá que ser oportunamente repensado, sob pena do povo não morrer do mal mas da cura.

Salva-se, justiça lhes seja feita, o esforço abnegado de quantos, nos hospitais mas não só, dão o peito às balas para que a Nação sobreviva.

Tudo leva a crer que novos surtos se seguirão. Esperemos que, se tal acontecer, todos os cidadãos possam dispor de um adequado kit de defesa pessoal.

Entretanto, bruxos e adivinhos auguram já um Governo de Salvação Nacional para fazer face à crise económica, social e política que inevitavelmente advirá. Esperemos que, se tal acontecer, seja um Governo honesto, competente e patriota e livre de vírus partidários.

Que Deus nos livre de maus governantes que de vírus nos livramos nós! Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.

A peste

O vírus veio expor muitas das nossas fragilidades individuais e coletivas. Aquela de adquirir papel higiénico à doida não se percebe bem, parece até piada. Ir gozar a praia, a passeata ou a esplanada em grupo depois de se ter declarado o alerta diz muito da nossa indisciplina. Desobedecer à indicação de permanecer em casa mostra que os media nos informam, sim, embora também nos tirem sensibilidade, como se tudo o que vemos e ouvimos fosse mais ou menos uma fita de que nem sempre queremos ver-nos como atores. Mas nada disto é apenas negativo, o que se está a passar também pode fazer-nos refletir em coisas a que não dávamos importância, começando logo por essa pequena maravilha que é sair à rua em segurança, dar umas voltas, encontrar pessoas, sorrir, tocar, abraçar, rir, tagarelar.

Pode ser que as ideias de pânico e açambarcamento, mostrando uma pontinha de selva e caos, não nos animem por aí além e sintamos de repente que a ordem em que vivemos está minada por desordem, que a desorganização espreita a toda a hora por cima de tudo o que é organizado, que nada em nenhum momento escapa à incerteza que há no mundo. Mas a partir daí temos mais hipóteses de acarinhar a ordem e a organização, por muitos defeitos que no dia a dia encontremos nelas. De olhar com olhos de ver para esta coisa banal, mas preciosa, que diariamente se constrói com o esforço de toda a gente e se chama sociedade. Nesta altura de fechamento tanto podemos fugir a sete pés de quem se chega a nós como a seguir entender que tudo o que fazemos tem impacto nas pessoas e nos liga a elas, que o egoísmo vive da cooperação sem nunca a poder eliminar e os dois estão tão entrelaçados que é impossível determinar onde começa um e acaba o outro.

É bem provável que hoje a palavra solidariedade nos revele o seu significado essencial – compaixão pelos semelhantes por nos sentirmos tão solitários, desprotegidos e abandonados como eles sobre esta minúscula nave que nos serve de casa enquanto vagueia pelo espaço infinito sem que ninguém saiba porquê exatamente. Talvez compreendamos melhor que isto da condição humana se aplica a todos, sem exceção alguma, por muitas diferenças e divisões que nos apartem. Uma condição que nos torna, neste caso sim, verdadeiramente iguais na incerteza, na angústia, no medo de morrer, mas nos pode também levar a valorizar menos o que não temos e mais o que temos, menos o que nos desagrada e mais a beleza das coisas à nossa volta.

Com a normalidade entre parenteses e as interações habituais de pernas para o ar, as relações ressentem-se, e muito. Mas no plano pessoal a perturbação pode não ser menor. Esta epidemia mostrou uma capacidade extraordinária de suspender a lufa-lufa quotidiana, de nos fazer parar. Para lá da utilidade que possam ter, as ocupações mantêm-nos entretidos: trabalhos, canseiras, dificuldades, inquietações, aflições, arrelias, conflitos, lutas, ódios, guerras, distraem-nos das dúvidas que sempre moram por detrás do que aparentemente somos, do que nos esforçamos por ser. A atividade é um escudo que nos protege ao pôr em stand by questões que todos nos colocamos mais ou menos conscientemente, mas tendemos a afastar – quem sou eu, de onde venho, para onde vou, o que ando a fazer aqui, o que é que tudo isto significa, qual é o propósito de viver, etc.

Subitamente, com tempo de sobra para matutar, existe o real perigo de não conseguirmos escapar a essas dúvidas prepotentes a que, no entanto, sabemos ser difícil ou impossível responder. Sem os brinquedos, os jogos, as competições que nos costumam distrair e fazer mexer, pode vir ao de cima apenas a realidade nua das nossas existências, o nosso papel nelas, a sua razão de ser, o sentido de tudo o que somos e fazemos. De um momento para o outro esta espécie de estado de sítio ameaça colocar-nos um espelho à frente, de alto a baixo, onde cada um se veja refletido diante de si próprio, a existir apenas consigo, sem bengalas, e isso incomode mais do que outra coisa qualquer. Subitamente sem rotinas, sem algo a que nos agarrarmos, podemos dar connosco pendurados no vazio sem uma rede que nos apare a queda e sentir-nos ansiosos, desorientados. Mas sendo um grande desafio do momento, não tem que ser necessariamente mau, talvez abra portas para conhecer e acarinhar a nossa parte espiritual, geralmente tão ignorada, tão miserável.