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ARREBITA, Arrebita…

O lapuz latagão enfiava as botas ensebadas no pó levantando-o na direcção dos pares dançantes idos da cidade à festa na aldeia (sem terem visto o filme do Sr. Hulot) porque as raparigas dançavam a precei- to ao som do conjunto António Mafra e não descriminavam os citadinos. Não havia bandas que na altura se chamavam conjuntos. A canção do momento aludia à cachopa se queres ser bonita, arrebita, arrebita, daí o estardalhaço poeirento que ofendia os sapatos a que nem o Sr. Gonçalves (sempre impecável de casaco e gravata, jovial e bem-disposto) escapava. A música desprendia-se de dois altifalantes pendurados num castanheiro centenário, certamente, testemunha de outras sonoridades derivadas de sopros, metais, madeiras e vozes.

O mês de Agosto é o mês festeiro, o Senhor Gonçalves seria um irmão mais velho no que concerne ao circuito das festas, fugia das encrencas e zaragatas como o Diabo foge (fugia das aglomerações de garotos segundo afirmava o Sr. Padre Aurélio pároco da freguesia de Vilar de Ossos) da Cruz, porque além da sua índole ser pacífica sabia quais eram os efeitos etílicos das bebidas fortes reduzidas ao vinho e à cerveja (esta muito menos), as restantes cingiam-se a pirolitos com berlinde e laranjadas.

A canção de António Mafra gozava de grande sucesso. Estávamos no dealbar da década de sessenta do século passado.

Sem saudosismo espúrio peço aos leitores (envolvendo os da minha idade) para ajuizarem sobre a transformação das festanças nos dias de hoje. Agora predominam as tais bandas a empregarem o inglês como língua primacial, os músicos e acompanhantes em palco em vez de roupa exibem tatuagens, correntes e botifarras. Desapareceram os vocalistas, as melodias (?) são gritadas, abundam os estilos copiados do universo anglo-saxão, proliferam os charros, os tiros (shots), os braços ao alto, o abanar das cabeças até à exaustão, os avultados capitais nesta influente indústria do entretinimento que a par do futebol considero enquadrar-se no conceito marxista de ópio do povo.

A brejeirice de Mafra (atente-se no carrapito da Dona Aurora de outra canção e as letras dos Mata-Ratos) não passa de eufemismo na comparação das (in)delicadezas do presente, obviamente, a soturnidade fossilizada do regime ditatorial manietava jovens e a generalidade dos lusitanos, a violência latente e quantas vezes expressa em mortes e feridos graves assusta-me.

O contraste faço-o de maneira simplista: o chapéu de feltro do Sr. Gonçalves e os bonés de pala comprida usados a esmo nas aldeias e nas cidades e, para não ser acusado pelas zelotas da igualdade de género, entre as socas abertas da Aninhas de Castrelos e as sapatilhas pisca-pisca da Joana de Porto Côvo.

A Sociedade do Espectáculo (Debord) ainda não atingiu o ponto focal na nossa sociedade mimética, Pacheco Pereira tem recebido incessantes ataques por ousar colocar o dedo na buba do sectarismo das identidades, ao que parece, nas convivialidades festivas as particularidades não têm dado azo a conflitos notórios. Ainda bem!

Aí estão as férias, não me esqueço de nada?

Cadeiras de praia e biquínis nas montras, publicidades sobre mares e praias mais do que azuis e longínquos, embarcações para Cítara, librarias ornadas para as leituras de verão. As férias estão aí novamente. Cuidado com a partida, com o voo! Há já umas semanas que o comércio organiza, com o seu habitual e incurável cinismo, a nossa amnésia sazonal, fazendo da areia das praias o assunto da atualidade. Ocultando a guerra, esquecidos do estado da crise iminente, das derivas políticas, das vociferações da ágora, dos desastres ecológicos. Por alguns instantes pelo menos. Concordamos evidentemente. Ignorantes para a ciência, seduzidos pelo conforto. Acontece comigo e com os outros. Desejamos todos esta subscrição periódica à leveza, esta atração por uma pausa tranquila e lúdica. Como é possível resistir às delícias da ilusão oferecidas por este ciclo de juventude – as férias grandes, essa viagem sazonal que traz sempre recordações, ao entusiasmo picado pela nostalgia? Não aparece sempre, no momento da partida, alguém que embarca connosco, a criança que fomos e as suas palpitações? E depois, será possível agir doutra forma? Podemos imaginar mergulhar nas ondas e sonhar que outros se encontram mergulhados sob as bombas e permanecer inocentes?

Para acalmar os remorsos que sentimos, sem nos privarmos dos nossos passatempos claro, é-nos oferecida a possibilidade de aprender a ser resilientes como o metal que dobra com a força dos golpes, mas que não parte, até se apruma. É para ver a ausência de lucidez da natureza humana e a pouca consideração pela sua casualidade angustiante e necessária desenvoltura, o que Kundera chamava a insustentável leveza do ser, a que, no fundo, nos couraça e nos permite sobreviver a tudo. Alguns recusam-no, e vão salvando a nossa honra. Os santos, os heróis. Seríamos iguais se decidíssemos fazer greve às férias? Despirmo-nos desse peso, entrar em ascese, cobrirmo-nos das cinzas? Porque não há um meio-termo, o pior de tudo é a lição de moral dada aos outros para nos libertarmos do peso da consciência, a um preço mais baixo.

Não farei isso tampouco. Não entrarei em ascese. Não rasgarei o peito para oferecer o meu coração sangrento e sinto-me impotente e infeliz por essa razão.Vou, portanto, abster-me de me dar lições de moral a mim mesmo partindo do princípio, é claro, que me encontro do lado da virtude. Vou de férias eu também, à sombra, ao calor do meu casulo familiar, atento a que seja preservado o sorriso dos meus filhos e netos, e tentando afastar para longe deles e de mim, os horrores da atualidade. Alguém dizia: “o santo intercede com a sua oração, o pecador com o seu pecado”.

E eu que tinha vontade de vos contar quais as leituras que mais me embalaram, que espetáculo me havia entusiasmado, tomado pela euforia da partida, lembrar aos apaixonados pela música alguns espetáculos ou exposições a não peder, e dizer-vos que os passeios a pé ou bicicleta são uma forma interessante de melhor usufruir dos espaços e lugares a visitar. Que as costas marítimas oferecem a embriaguez do abandono à pulsação do cosmos. Apetecia-me contar algumas anedotas das minhas transumâncias passadas, de carro e autocarro, o prazer dos encontros com os amigos e com a família, porque também são iguais às vossas e que há qualquer coisa da ordem da comunhão quando, juntos, desfolhamos as recordações à maneira dos malmequeres. Perguntei-me a mim mesmo se tinha esse direito, tendo em conta tantos acontecimentos e dramas.

Seguidamente dei-me conta que era preferível falar do mar, do verão, das colheitas, dos prados e das horas de serenidade. Que lembrasse tudo isso com este espírito de criança, a fim de o alimentar, e lembrar o porquê de nos levantarmos cada manhã - tentar destilar um pedacinho de felicidade e imaginar poder transformar o mundo num lindo jardim. Que tenha entusiasmo e razões para falar desse assunto. Para que essas horas de deliciosa despreocupação que esperamos exatamente das férias, iluminem as encostas do nosso vale de lágrimas. Mas necessitava de algum tempo de recolhimento.

Fica para o regresso.

O cansaço que nos abala

Dizia-me um amigo há dias que estava cansado de ouvir sempre as mesmas notícias e tem razão. Quase todos os dias deixamos escapar um estou cansado num momento qualquer em que de facto somos invadidos por um cansaço que advém do que fizemos até aquele momento. Não é preciso termos feito um esforço terrível para sentirmos essa sensação de fadiga. Basta mesmo a repetição de situações que nos cansam. A própria repetição cansa. Pois é normal que todos nos possamos sentir cansados com a guerra que vem assolando a Europa e de que não se vê solução à vista. Estamos cansados de ouvir as mesmas coisas, de ouvir as mesmas mentiras, de ouvir explicações abusivas e mentirosas, enfim estamos cansados de tanta repetição desastrosa e sem sentido. Mas se é facto que estamos fartos de tanta notícia também é verdade que estamos fartos desta guerra absurda e sem sentido onde só uma parte quer a guerra como se nada mais tivesse para fazer em prol do seu povo. Isto sim é cansativo e desanimador. No entanto parece que pouco mais há a noticiar. Todos os dias somos bombardeados com as mesmas notícias de destruição, de mortes, de mísseis e bombas a cair em toda a parte até mesmo na Central nuclear de Zaporizhia. Aqui já somos invadidos por outro sentimento e não é cansaço. Quando falamos da maior Central Nuclear da Europa e das consequências que podem advir de uma qualquer rutura, resultado dos bombardeamentos indiscriminados, já sentimos medo. No meio de toda esta confusão em que vivemos absurdamente à margem das decisões que se vão tomando, felizmente ocorrem notícias que quebram a monotonia cansativa da beligerância e nos fazem descansar um pouco. A saída de cereais do porto de Odessa, a reunião de Guterres com Ordogan e com Zelensky são alguns dos factos que nos trazem alguma esperança no bom senso dos que estão envolvidos na contenda. Não acredito que se vá muito mais além disso, já que falar de cessar fogo ou de final da guerra será mesmo irreal neste momento. Mas quem ganha ou perde est guerra? Fazemos esta pergunta há muito tempo. Mas a resposta não é a mesma que se deu há cinco meses atrás. Nessa altura a Rússia levava muita vantagem sobre a Ucrânia, mas hoje a Rússia está a perder posições e a viver sérias dificuldades em termos de recrutamento de militares. Até ao momento a Rússia terá perdido já cerca de quatrocentos mil militares segundo algumas informações, muitos aviões e alguns navios. Na Crimeia estão a acontecer explosões em plenos campos militares com destruições de material bélico e não só, mas em que ninguém parece ter culpa, embora Zelensky diga que a guerra começou com a invasão da Crimeia e vai acabar na Crimeia. Uma coisa é certa: Putin está diferente, age de modo diferente, está cansado desta situação e desta guerra que ele provocou e que está a perder aos poucos. Pode ser uma ajuda ao final da guerra o cansaço que Putin sente, mas não tem moedas de troca para falar de paz. Ainda não ganhou nada. O que é uma realidade diferente é o cansaço que nos tem provocado todas as notícias sobre os vários vírus que nos têm visitado e que continuam a causar morte em todo o lado. Se bem nos lembrarmos, quase todas as semanas ouvimos notícias de vírus diferentes que se espalham por todos os países. É o Corona vírus e suas variantes, é a varíola dos macacos, é o vírus das aves que regressa, é o vírus de mais qualquer coisa que nos vão distraindo e causando algum receio que nos aligeira o cansaço da guerra. Mas os vírus também nos cansam e muito. O que também é um facto é que estes vírus não atingem a Rússia nem a Ucrânia. Porque será? Mas a China foi notícia a este respeito. Parece que os vírus são selectivos! É verdade que andamos todos cansados com estas notícias e temos razão para estar. Se um qualquer alienígena nos visitasse e ouvisse estas notícias ficaria arrepiado com tantas coisas más. Nada de bom acontece nesta Terra, diria certamente e antes que ficasse cansado, fugiria novamente para o espaço. Mas nós não podemos fugir. Cansados e abalados por tanta irresponsabilidade, por tanta destruição, por tanta morte, por tanta irreverência, mentira e teimosia, continuamos a aguentar estoicamente todas as barbaridades que os senhores da guerra continuam a fazer. É demais! Seis meses de guerra, seis meses de destruição e morte, seria impensável em Janeiro passado. A realidade é crua e dura. Tudo isto nos abala e cansa, mas ninguém encontrou ainda a solução, o antídoto, para este cansaço. Não há comprimidos capazes, somente a atuação humana consciente, mas é difícil de encontrar.