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Cinto de segurança

A
rtefacto de utilização obrigatória tem por fim evitar a projecção dos passageiros em caso de imobilização súbita do veículo ou em caso de capotamento. Tem os seus méritos firmados em choques frontais segurando o passageiro, não deixando que o mesmo seja projectado contra o “tablier” ou contra o vidro para-brisas. Já noutras situações a excelência do dispositivo é mais que controversa. A saber: quando um veículo choca com a parte lateral doutro, apanha este numa zona de fragilidade não oferecendo grande resistência à penetração do primeiro no habitáculo do segundo. Claro que um passageiro aí sentado com o cinto colocado não tem por onde fugir. É ali esmagado.(E este é o acidente com maior ocorrência nos perímetros urbanos); nos acidentes em que o veículo se incendeia é frequente os passageiros morrerem queimados por manifesta incapacidade de retirar os cintos. O estado de choque não lhes permite localizar os engates que, e como se isso não chegasse, muitas vezes estão encravados ou encobertos por força do sinistro. Não esquecendo o caso daquele carro que caiu ao lago do Azibo em que morreram quatro pessoas afogadas com o cinto devidamente colocado. São, estes, alguns exemplos de como ter o cinto colocado pode não ser a melhor solução. Não obstante isso, a sua não utilização, que aliás é verificada com algum zelo pelas autoridades policiais, configura uma contra ordenação punível com coima. E repare-se que a sua não colocação não põe em causa a segurança de terceiros, quando muito a própria. Quem comprometo eu pelo facto de não colocar o cinto? Ninguém. Não tem, pois, paralelo com a alcoolemia, a falta de luzes, o excesso de velocidade, falta de travões etc. que, essas sim, põem em causa a segurança de terceiros. Assim, a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança afigura-se-me uma invasão, perfeitamente abusiva, do meu domínio privado e uma limitação, sem justificação, do livre arbítrio que em sociedade me cabe. George Orwel na sua teoria do Big Brother fala disso. (Tem alguma analogia com aquela deriva higiénica, protagonizada pela ASAE quando quis exigir os talheres esterilizados, o azeite em garrafas de rolha invioláveis, a proibição das colheres de pau, etc. e que teria por consequência a morte da restauração em todas as festas campestres, a que Pacheco Pereira apelidou de fascismo higiénico.)
Resumindo, o cinto é bom numas circunstâncias e péssimo noutras. Aliás, se fosse bom em todas as circunstâncias não seriam dispensados, ou não gozariam a dispensa da sua utilização, os taxistas, os condutores de autocarro e os agentes da autoridade. Esses profissionais do volante, os homens que mais tempo passam a conduzir, logo mais expostos aos seus erros e aos dos outros, esses é que estão dispensados!? Sendo assim como perceber a obrigatoriedade, para os demais, da sua utilização? Podia pensar-se ser obra de um legislador, fanático securitário, na senda daqueles outros que tornaram obrigatória a colocação de palas, dos pirilampos nos tratores ou o kit de lâmpadas suplementar, medidas que foram caindo, uma por uma, por ridículas. Mas não. A obrigatoriedade do uso do cinto é universal. Daí a minha perplexidade. Se as justificações securitárias não são, nem de perto nem de longe, suficientes para explicarem a obrigatoriedade então é porque há outras.
À falta de melhores informações e/ou justificações avento esta hipótese. A obrigatoriedade da colocação do cinto de segurança deve ser fruto de um estudo estatístico e probabilístico que concluiu que o sinistrado que mais barato fica às seguradoras é aquele que tinha o cinto colocado na altura do sinistro. Daí a ser obrigatório foi um passo. O poder Financeiro, de que as seguradoras são um braço, sempre dominou, por completo, o poder Político. E o Estado, entre os lucros das seguradoras e os Direitos, Liberdades e Garantias do Cidadão, optou pela primeira.
E eram esses Direitos, Liberdades e Garantias o garante que em minha casa, nunca, ninguém me obrigaria a dormir de pijama. Já não estou, hoje, assim tão certo.

Por Manuel Vaz Pires
 

Cronicando - No olvido

Não raras vezes, quem escreve textos que se pretendem crónicas é apontado como alguém que pretende condicionar o pensamento dos outros, sem, contudo poder ser rotulado de opinion maker, porque hoje em dia tudo o que soe a anglicismo é considerado “chique a valer” e escrever crónicas não é “chique”. Para demonstrar que não alinho nessa tendência de influenciar pensamentos, têm os leitores a prova: o título. Caso opte por lê-lo na língua de Camões (No esquecimento), estamos ambos no mesmo contexto, se, por outro lado, é amante da língua de Cervantes (Não esqueço), não desvirtua de igual forma a intenção e continuaremos a entendermo-nos.
Corria o ano de dois mil e cinco, os destinos da nação eram assegurados pelo Partido Socialista que, em boa hora, entendeu ser necessário diversificar os percursos académicos do ensino secundário, dando resposta à vontade de muitos alunos das escolas públicas que não se reviam no modelo único de ensino. É certo que os ensaios efetuados com os cursos tecnológicos abriram a possibilidade de, num curto espaço de tempo, se adoptar um modelo pedagógico assente nos princípios da valorização do conhecimento do aluno como ponto de partida para outras aprendizagens. A apresentação do figurino beneficiou da dinâmica que a governação conseguiu imprimir com o reforço das equipas adstritas às extintas direções regionais de educação que, calcorreando o país faziam uma verdadeira apologia deste novo sistema, valorizando, sobretudo, o papel do professor e a relação de proximidade com o aluno. Parecia que o céu tinha descido à terra. Ainda hoje ressoam nos ouvidos de alguns aforismas como: “O diretor de curso é o rosto da turma”. O trabalho em rede surtia os seus efeitos, amparado pelos programas de valorização do potencial humano que, com financiamentos razoáveis, modernizaram as escolas e permitiam vivências que até então eram desconhecidas: feiras de emprego e educação, partilha de experiências, enfim… e mais que tudo isso, foi dada a oportunidade de criar projetos de vida válidos para jovens que não viam na escola o meio para alcançar os seus fins. Tal como no ensino regular, uns singraram outros não. Uma grande percentagem escolheu profissões liberais criando o seu próprio negócio ou sendo trabalhador por conta de outrem. Muitos ingressaram no ensino superior, alguns optaram pelas forças de segurança, encontramos outros em hospitais ou em caixas de supermercado, em comum: a dignidade de uma profissão e o profissionalismo que cada um coloca naquilo que faz.
Passaram dez anos e a governação está de novo sob a égide do Partido que escancarou as portas à novidade. Passada uma década, gente há que ganhou cabelos brancos a defender a causa dos Cursos Profissionais na escola pública. Centenas e talvez milhares por esse país sentiram o abandono a que este sistema foi votado sobretudo nos últimos anos; souberam resistir, disseram não à alternativa que eram os Cursos Vocacionais e permaneceram. Apesar dos cortes nos financiamentos mantiveram as equipas a funcionar, reduziram custos e ainda justificaram os gastos perante as auditorias que foram sendo enviadas sem se conhecer muito bem o seu fundamento.
São dez anos. E o que fez o Partido Socialista perante uma das suas bandeiras de… há dez anos? Simplesmente esqueceu… olvidou, não comemora nem permite assinalar. Quando tal acontece há apenas três ilações: ou se esqueceu, ou se envergonha do que criou ou passou a ser um partido de circunstância, do momento, que perdeu a sua memória recente. Poderá, efetivamente colocar no olvido, tudo o que outros agentes e líderes, também socialistas, fizeram há dez anos pela educação, seja considerado bom ou mau, mas nunca retirará aos professores, diretores de escola e alunos que foram pioneiros neste processo, o orgulho e a dignidade de quem desbravou caminhos e que, passado o deserto, esperava o oásis que afinal se vai transformando numa miragem.   
Há falta de melhor, que seja este texto a singela homenagem aos professores que foram capazes de ver mais além da ideologia e da circunstância e nunca se esqueceram de ser professores.

Por Raul Gomes

A REINTRODUÇÃO DO CAMPONÊS

Depois de reintroduzir o urso nos Pirenéus, o lince ibérico na Serra Morena, o pica-ossos nos Picos da Europa, o bufo-real na Orihuela e a lebre do piornal em Sória, e antes que o façam com o peneireiro e o galo-da-floresta, chegou a vez de reintroduzir o camponês, o montanhês, na montanha.
Na sequência de controlo e de manipulação da informação genética que fluía nos genes, destes às espécies e, por último, aos ecossistemas, escapara-se-lhe a presença ativa de um animal racional – o camponês, subespécie montanhês, que durante séculos tinha regulado, estimulado, restringido ou potenciado os fluxos entre animais e plantas, entre o solo e o voo, determinando o que se destinava ao cereal e ao bosque permanente de frutas de outono ou ao carvalhal e não só isso. Com as suas misturas e seleções acabou por criar centenas de novas raças de animais e plantas — desde a vaca ratina à castanha valduna— e com as suas manobras acabou por conseguir um equilíbrio entre as partes. Fez tudo isso sem nunca ter ido à universidade e, o que é pior, a universidade nunca foi ter com ele.
Com precisão de cirurgião, com visão de alquimista, os fluxos de energia do sol, da água que move moinhos, da gravidade, do herbívoro, do predador, do animal de tiro e do porco reciclador, entravam e saíam por ciclos principais e secundários, em cadeias de alimentação e realimentação, de duração anual, compassadas com as estações. O camponês era então o diretor de uma grande orquestra sinfónica que manobrava a batuta com que interpretava a partitura do lugar, no que tinha sido, e para o que tinha sido, instruído, e concertava todos os instrumentos da natureza para sobreviver e para propiciar que nenhum deles, nenhuma das suas notas, nenhum dos músicos que zurravam ou mugiam, deixassem de o fazer no ano seguinte.
Mas o camponês partiu, ou expulsaram-no, do monte. E o desconcerto apropriou-se do lugar. Algumas espécies dispararam os seus contingentes, outras perderam-se até desaparecer. Chegaram com soluções desde fora "plantaremos pinhos nas montanhas" disseram uns - "não, não, não, - disseram outros - reintroduziremos veados e logo lhe chamaremos espaço natural".
Depressa o mosaico de terras, socalcos, prados, costas, mato para estrume, malhadas e estábulos de inverno se foi dissipando. A paisagem tornou-se mais basta, mais monótona e o matagal expandiu-se como o colesterol nos obesos. Nada parecia ser a solução. As terras donde os camponeses tinham feito um traje que recobria a natureza, começaram a despir-se. O traje desfazia-se em pedaços puído pela negligência. Entretanto, os cientistas industriais e analíticos inventariavam e cartografavam uma a uma as plantas e os burocratas tramitavam, perante a UNESCO, um novo reconhecimento honorífico para o monte. Por sua parte, os partidos políticos e os seus aparatos de governo, listavam as espécies em boletins oficiais e editavam luxuosos livros de montanhas com modelos de Photoshop. E proibiu-se o corte de carrascos e o olhar de esguelha ao mergulhão.
E ninguém se lembrou que antes de tudo isso, apenas umas décadas atrás, existia ali uma ordem consensual, comunitária e oral, tão-só escrita em prescrições que, ao jeito de norma local e religião laica de obrigatório cumprimento, regulavam as formas, os procedimentos e os usos. As prescrições dos camponeses eram para os montes o que a constituição é para o Estado democrático.
Ninguém se dava conta de que o mundo existia com independência da nossa capacidade para o investigar. Chegaram os guardas, as mil normas distintas, as fiscalizações do meio ambiente e, agora, chegam os turistas a observar os ursos e os jovens ultra atletas a correr por uma terra abandonada à sua sorte. E chegou também o fogo, um antigo criado do camponês que se reconvertera em chefe rufião de um bando de delinquentes.
Mas um dia alguém perguntou porque é que antes não havia incêndios, porque é que antes as espécies mais oportunistas não se tinham desenvolvido, porque é que as mais invasivas não eram tantas, porque é que as paisagens eram mais variadas, porque é que cada lugar tinha um nome, um uso e uma função. E repararam então no camponês, no pagador que assegurava as remunerações, no que fazia país, nomeava os sítios e fazia trajes como paisagens. Repararam tanto no diretor de orquestra extinto como no ruído insuportável que desde as Administrações fazemos agora no cenário cada um tocando o seu apito.
"Já não há camponeses, mas podemos voltar a fazê-los” disse alguém. "Ser camponês, uma nova profissão", disse outro. A universidade, onde germinava hegemónica a ciência da industrialização, deixou de armazenar mapas, informação e estatísticas e, com muito menos dinheiro, começaram a semear sementes de conhecimento. Saíram para as aldeias e perguntaram aos avós, pastores retirados. Descobriram o pensamento sistémico, os princípios agroecológicos aplicados e o empirismo brilhante dos aldeões. Rebuscando nos patrões das velhas prescrições, encontraram soluções para desenhar os novos trajes da paisagem. Reelegeram Carlos III  e os ilustrados de Pablo de Olavide , os institucionistas de Giner de los Ríos e Sierra Pambley .

Assim, a solução, finalmente, foi deixar de remendar e atreverem-se a reintegrar os camponeses nas montanhas órfãs, sem dúvida os seus melhores sócios. Recolonizaram-na com os montanheses, com as suas comunidades e com as suas culturas locais. Regressaram mais jovens, melhor preparados. Com privilégios como os de Leitariegos . Livres de impostos contanto que o monte ficasse livre de incêndios, produzisse os queijos, as energias e as carnes que lhes são próprias e conservassem as formas paisagísticas ajustadas, em acordo com o Governo. O camponês, uma espécie extinta no século XX que foi necessário reproduzir antes de a reintroduzir no XXI -e já que a reproduzimos, a melhoramos— encarregou-se de devolver a música ao monte e a paisagem recobrou a harmonia perdida.
Não me recordo em que ano recomeçou a recolonização camponesa da montanha. Mas o que de facto me lembro, é que foi no mesmo ano em que o Ministério de Fomento, Meio Ambiente e Conservação da Natureza lhe mudaram o nome para o de Fomento do Sentido Comum com os pés na terra e fecharam as Secretarias Técnicas.

Por Jaime Izquierdo

(Traduzido para o português por Francisco Manuel R. Alves)

 

Notas:
  Publicado em La Nueva Espana, em 5 de março de 2016 (ilustração de Fernando Fueyo)
  O rei Carlos III promoveu a colonização da serra morena, fundando novas povoações. (Nota do Tradutor)
  Pablo de Olavide, ilustrado do séc. XVIII.(N. do T.)
  Os “institucionistas” são os membros da Institución Libre de Enseñanza, o seu fundador foi Giner de los Ríos. E Sierra Pambley um dos seus membros mais destacados que se preocupou com o desenvolvimento das comunidades rurais na povoação de montanha, Villablino (León) onde deram aulas e contribuíram para a formação das populações os irmãos Juan e Ventura Alvarado. (N. do T.)
  Leitariegos é um porto de montanha do Sul ocidente asturiano. Com o fim de manter povoado aquele inóspito lugar e auxiliar as pessoas que circulassem por este porto que unia o ocidente de Astúrias com Castilla, o rei Alfonso XI ortorgou a Leitariegos, em 1326, um privilégio aos seus moradores. Com a condição de ficarem isentos de tributos e de receber uma quantidade anual de farinha, os seus moradores deviam fazer tocar o sino nos dias de nevoeiro e vendaval e procurar dar hospitalidade aos transeuntes e mercadores. Desse modo conseguiu-se que o lugar não se desabitasse. (N. do T.)
 

FALTA O BAR

Da inauguração do maior Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) no Porto são muitas e variadas as referências e os destaques dados pela imprensa visionada, falada e escrita. Desde a forma professoral como o Presidente da República se referiu à nova instituição pronunciando a sua sigla lentamente e espaçando os três caracteres (I...3...S) ou como se referiu ao excessivo otimismo do primeiro Ministro, até ao investimento superior a vinte mihões de euros e aos perto de mil investigadores que ali desenvolverão a sua atividade. Houve quem realçasse a inédita cooperação entre os três grandes laboratórios de investigação da capital nortenha, o IBMC de Alexandre Quintanilha, o IPATIMUP de Manuel Sobrinho Simões e o INEB de Mário Barbosa ou ainda as várias valências e áreas de pesquisa, desde o Cancro à Neurobiologia. Também foi realçado o facto de esta cooperação ter acontecido no Porto e a justa homenagem ao antigo Ministro da Ciência José Mariano Gago que tem um dos auditórios com o seu nome (o outro foi batizado com o nome do médico e investigador Mário Corino de Andrade). Obviamente que todas estas notícias me sensibilizaram e, sobretudo, agradaram. Porque são uma boa notícia para a comunidade científica nacional. Porque representarão um acréscimo competitivo do país e do Norte esperando o benéfico contágio regional. Porque é gratificante constatar a gratidão humana para com os que se dediam à causa pública e ao bem comum nisso empenhando as suas melhores capacidades e competências.

De todas as notícias que me chegaram (das já referidas e algumas outras mais) uma há, contudo que sobressai e que requer o devido realce. No meio da euforia dos participantes sobretudo muitos dos novos ocupantes deste largo espaço de perto de vinte mil metros quadrados de construção, no meio da alegria dos novos laboratórios e das salas de reunião e auditórios para os necessários seminários e conferências que mantêm atualizados os diferentes grupos que ali trabalham, uma investigadora, Ana Tomás ao que julgo, queixou-se da falta de um bar.
Não conheço o novo edifício mas se, segundo relatam, não foi construído nenhum espaço com essa finalidade é indesculpável. É de grande importância a existência de um local para uma bebida, um café um bolo ou outra comida rápida que alivie a tensão do esforço e concentração constantes e muito stressantes.  Mas também, como refere a investigadora citada, “num bar, descontraidamente também se trabalha e podemos saber muita coisa sobre o que se faz aqui” Com toda a razão e disso sou testemunha. Em ciência, nos tempos modernos, já ninguém trabalha sozinho. Independemente da competição, que também existe, a cooperação é fundamental para chegar aos resultados esperados ou mesmo inesperados. Aconteceu há alguns anos no Instituto Gulbenkian de Ciência que Joaquin Leon e José feijó publicaram uma descoberta de relevo. O relevo deste feito vem da circunstância de um ser especialista em desenvolvimento animal (nomeadamente embriões de galinha) e o outro ter créditos reconhecidos em vegetais (em concreto na polinização). Nada os aproximaria... a não ser uma conversa “casual” no bar enquanto bebiam uma cerveja.
A maior estranheza, neste caso, vem do facto de este empreendimento acontecer por causa e para promover a cooperação entre unidades científicas já existentes. 

Por José Mário Leite

Bilhete-Postal

Vindos de Espanha atravessámos Bragança rumo ao Ribatejo. Seria mácula persistente não estacionar na cidade de modo a dois acompanhantes vislumbrarem três ou quatro referências marcantes, dando azo à fixação de imagens na memória e nos instrumentos de fixação tão bem enunciados pela Susan Sontag.
É, que, esses companheiros de viagem possuíam uma vaga ideia de Bragança baseada em lugares-comuns dentro da linha do Anatómico Jocoso, e mais não digo neste bilhete-postal.
Fomos ao Centro de Arte Contemporânea, depois de encaminhar os visitantes fui à cafetaria, a sempre amável Dona Lili recebeu-me afectuosamente, pedi-lhe para não se esquecer dos doces e lambiscos brigantinos no «cardápio», enquanto bebia água engarrafada observei crianças a brincarem no espaço relvado, pais a cuidarem, a lerem. Muito bem.
Não podia esquecer o Museu Abade Baçal. Uma Senhora sorridente recebe-nos simpaticamente. Os apressados viajantes vão observar as colecções, fico no átrio a contemplar fotografias evocativas do Senhor Abade e dilectos Amigos. A Sontag teria escrito palavras prenhas de alacridade ante tais visões.
Lavados os olhos pergunto à Senhora se posso ver e comprar publicações referentes ao Museu, baixa os olhos, quase em murmúrio diz-me não existirem. Folheio uma exposta. Está esgotada. Vejo outras relativas a Museus de terras vizinhas, durienses. Pois, o Douro!
Pergunto à funcionária pelas actas ou relatos impressos dos ditos falados no decorrer das rememorações ocorridas em 2015, salientadoras dos cento e cinquenta anos do nascimento do cidadão Francisco Manuel Alves. Não existiam!
Passei ao jardim contíguo de tão gratas recordações, pisei a relva na intenção de saber a identidade das árvores crescidas e dos arbustos, anonimato total.
Porque reputo de vital conhecermos as raízes da nossa ancestralidade, levei-os ao Castelo, o adiantado da hora não permitiu franquearmos as portas do Museu Militar e do Museu da Máscara, permitiu isso sim contemplarmos o Pelourinho, a Igreja de Santa Maria, a Domus, lavar os olhos a observarmos o refulgente cromatismo de lonjuras e proximidades. Circunscrevendo tudo quanto as muralhas encerram expliquei as razões de Dom Álvaro Cunqueiro ao comparar Bragança a Sedan. O viajado galego, notável gourmet, dono de escrita divertida, orgulhoso do seu galeguismo sempre se distanciou do chauvinismo pateta a impedir o reconhecimento de outras gentes e outras terras. Dadas as explicações zarpei satisfeito, tinha cumprido o meu dever.
No dia 16 deste mês voltei a Bragança, nova passagem meteórica, ainda assim ganhei prazer a saberes trocando opiniões sobre a cidade do nosso enlevo com dois cidadãos atentos conhecedores das realidades locais, atentos aos desafios soprados de outros lados especialistas no ganho em todos os tabuleiros.
À noite, o Alberto (Beto) Fernandes explicou-me a diferença entre trabalhar com um motor e ser seu dono, revelou aguçado entendimento sobre o acessório e o essencial no tocante à afirmação bragançana no confronto ou competição entre as cidades da Região e do Norte. Aprendi, mais sedimentei a convicção de não ser do Norte, sim Transmontano, do Nordeste, da Terra Fria (o que faz toda a diferença).

A minha esplanada lá longe - Ver sempre o mundo de perto e de longe

Esta manhã de domingo, saboreio o meu café e folheio o jornal à disposição. Nas proximidades, outros clientes vagueiam nas suas ocupações, pausas diversas ou ócio. Apesar desta primavera tão inconstante, uma luz suave alegra a esplanada do castelo. Mais longe, atrás das árvores e à direita da torre de menagem, adivinha-se o vale que leva à fronteira de Quintanilha, aos Pirenéus e muito para lá. É assim por todo o mundo, milhões de micro lugares onde a nossa comunidade humana se constrói, se pensa, e se destrói também. Encontro sempre filosoficamente fascinante meditar sobre esta contradição banal da metafísica e da existência: aqui, além, pertinho, muito longe, em culturas e modos de vida aparente ou totalmente estrangeiros, pequenas pessoas, existências, sentem se não for a mesma coisa, pelo menos algo muito semelhante.  
Toda a gente parece estar consciente do que vou dizer; todo o ser humano dá a impressão ao observador exterior de viver unicamente no seu mundo imediato e nas suas preocupações locais. No entanto, este acaba de chegar de Madrid ou de ter feito o caminho de Santiago, aquele talvez acabe de chegar de Roma ou de ter dado a volta ao Vietname ou ao Egito. Vejo à minha volta bastantes pessoas; turistas de diversas proveniências que passam, pessoas diferentes, alguns empresários talvez, operários, intelectuais certamente, desportistas, reformados. Somos um microcosmo em si mesmo. Entre a quinzena de pessoas da esplanada e os transeuntes, quantas conceções do mundo, convicções, pensamentos, esperanças – quantos rancores ou deceções também! 
Vivemos num equilíbrio instável, numa paz relativa, a não ser que de repente surja uma discussão política, futebolística ou ideológica demasiado entusiasmada. O jornal em cima da mesa lembra-nos os tormentos, as turbulências, os horrores do mundo. Trata-se efectivamente do nosso mundo, do mesmo mundo. Esta guerra interminável narrada, lá longe, podia ser a nossa, outra embarcação infeliz no mediterrâneo, um avião que se despenha e onde poderíamos ter viajado também. Apesar de tudo, no fundo de nós mesmos, e é completamente natural, não acreditamos que ISSO nos possa acontecer a nós.   
Não acreditamos nessa possibilidade, não queremos, não desejamos nada disso para nós. Mas em quê que nós somos diferentes daquelas e daqueles que, há algumas horas apenas, acabam de ser tomados pela infelicidade ou por qualquer outra atrocidade ou catástrofe? Todos nós, no nosso cantinho desta região pacífica (ou monótona, dirão muitos), só poderemos ser atingidos por pequenos problemas ; demasiada chuva ou demasiado calor, uma trovoada que destrói a vinha ou a horta, por pequenos dramas privados ou familiares. Ora todos estamos bem conscientes de que, quando um crime horrível ocorre perto de nós, a intensidade desse crime é rigorosamente idêntica à atrocidade das mortes e das violências do mundo lá bem longe, longe de nós, muito longe do mundo. Amanhã, um de nós fará uma viagem, dará uma volta ao mundo lá longe, ou fará alguma viagem menos longa e irá respirar a atmosfera do microcosmo de além, algures. Poderá desta forma medir a distância minúscula que nos separa uns dos outros e sonhará talvez com uma filosofia mais “pronto-a-vestir”, com uma pequenina metafísica da condição humana. É isso que me leva a pensar sempre em termos de direitos do Homem, em vez de direitos humanos, porque a verdade é que os direitos são os concretos, deste homem ou desta mulher, nunca dos direitos humanos abstratos. Reconhecer no rosto de outrem outro si-mesmo, respeitar-se a si-mesmo como ao seu semelhante, aqui na minha esplanada ou nas longínquas varandas ou miradouros deste pequeno mundo que nós temos em comunhão: tal poderia ser a nossa Tarefa.

Por Adriano Valadar
 

Baixa e alta densidade

Ter, 24/05/2016 - 10:09


Está a alastrar, paulatinamente, uma evolução insidiosa da forma como os mais diversos responsáveis políticos e os burocratas, caseiros ou instalados nos centros de decisão europeus, se referem à nossa condição demográfica.

“O território do distrito de Bragança não está a saber valorizar a sua riqueza e está a empobrecer à custa da desertificação”

Qui, 19/05/2016 - 16:39


Paola Afonso tem 45 anos e vive em Belleville, Paris. Os pais, naturais de Agrochão, no concelho de Vinhais, emigraram para França na década de 60. Com dupla nacionalidade, desde criança que vem a Portugal, pelo menos uma vez por ano. É professora de espanhol e autora de várias publicações e trabalhos de recolha de tradições. Destaca-se o trabalho “Tesouros de Memórias”, uma recolha de canções populares de Agrochão, que preparou com a ajuda da sua madrinha, Graça Afonso,  ou a publicação “Azulejos de Lisboa”. Tem ainda trabalhos na área da fotografia, vídeo e gravura.