Cartas do meu moinho - O Moinho e a alcateia

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Chamavam-lhe Moinho do Vesgo e logo me encantou no seu arruinado e no saber que ele, o anterior possidente, tinha dois viveres femininos: um, na ruína e outro, no povoado. De ambos houve posteridade, julgo que farta, e quase toda se foi em busca de melhores pátrias. Ele, pelo que dizem, manteve-se na indústria enquanto as pernas lho permitiram, satisfazendo o harém em todas as necessidades básicas, dividindo, muitas vezes, o indivisível. E manteve aquele olhar encruzado toda a vida, assustando a rapaziada imberbe com o olho fora-de-jogo, off side, enquanto o outro permanecia no óbvio.
A arquitetura residimo-la diferentemente: a pousada das bestas mantém-se, mas sem manjedouras agora; a zona onde então ele confecionava a prole é agora comedouro mais saciável, e na antiga zona da panificação, no período estival refastelo-me eu ou, então, na invernia, esquento as partes nas ardências do lar enquanto fantasio sílfides e ninfas pálidas na levada da presa… ou da pressa?
Da veterinária renasceu somente o canil, em alcateia irmã muito estimada, e que muito nos reclama de outras lides. Apreciem-na:
Os manos perros não se sabem estrangeiros, mas eu adivinho-os belgas de Malines, por causa da pronúncia e do sentido «ne me quittes pas»... É mais este temorzinho que se manifesta na ocupação da bagageira da viatura quando a encontram aberta e a adivinham de partida... E, também, a vontade de liderança do James, que não da mana Joana, me diz ser de homem nórdico, mesmo quando lhe assevero a inutilidade do esforço, a infantilidade da vontade, o custo da liderança... Mas esta vontade de domínio é quase doentia, até se sobrepõe à ditadura biológica do tudo cheirar, que atrás do nariz é que está o cão, como se sabe... Mas no James o olfato é um prolongamento da vontade de poder. Ainda bem que o não pus a estudar retórica...
O Farrusco é produto nacional: é o maior e mais forte, serrano pela paleta, mas que a Troica controla pois não é sensível à subtileza do seu pensamento, ao maneirismo da delicadeza do olhar e do debicar no pernil, ao sentir poético da natureza e ao gosto pela abstração no congeminar telúrico. É um poeta. Inicialmente, julguei-o até de comportamentos trocados... Mas não. Mostrou até certa lubricidade no esgar quando lhe falei da hipótese, muito vaga, de ida a brasileiras... Também o prova, de quando em vez, a paciência perdida com a marcação do malinense; e, então, as casacas ficam tricotadas por diálogos incongruentes urdidos entre caninos obstinados...
A Joana nunca a percebi. É mulher de vontades próprias e insondáveis que gere as situações como se estivesse de fora. É o sexo forte da manada, obviamente, que se manifesta em quereres pouco evidentes e vontade volúvel, sem cristalização na ideia e no comportamento. Por isso, deve ser por isso, que tem uma membrana do olho transparente quando devia ser negra, e assim parece ter ganho um ar de Sibila descrente no vaticínio, descrente em tudo que seja linear. Mas, mesmo assim, mantemos conversações prolongadas em palração articulada fora da linguística oficial. A palração é sempre da sua iniciativa, em canto mais noturno que diurno, muitas vezes depois da sinfonia uivada a que nos dedicamos em luares luminosos e convidativos. Nessas alturas alcança o estrelato e ri, ri, ri pra mim e pró mundo!
Que saudades eu tenho do teu choro e do teu rir, alma grande. Mas quiseste partir sem palavra deixar, e agora o canto do trio é mais chorado do que rido, e até a hora mudou. É, hoje, ao fim da noite e ainda na cama que nos descobrimos em tristeza e a carpir por ti. E tu nunca nos chegas…

 

Por João Manuel Neto Jacob