class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-frontpage">

            

A arte e o artista

Já vai para alguns anos, veio parar-me às mãos um livro que comparava os comportamentos humanos com os dos animais da selva.

Quando se refere ao modo como o homem atual aborda a aquisição dos bens de consumo, o autor estabelece uma analogia entre o homem e o felino: ambos selecionam a presa, focam-se nela e esquecem as restantes. Será pois este mecanismo que impulsiona o homem a comprar, por exemplo, a primeira peça de roupa enquanto que a mulher é mais seletiva. Não partilhando das aptidões necessárias ao exercício venatório, vejo-me, neste momento, num impasse quanto à atualidade a abordar, dado o início do ano estar a ser tão pródigo em factos na área por aqui refletida mês após mês.

Poder-se-ia abordar a questiúncula do poema de Álvaro de Campos. No entanto, e porque, ultimamente, ando farto de falsos moralistas, opto por um outro tópico relativizado face às ondas de choque dos confrontos políticos. Naquelas análises de final/ início de ano, num determinado programa de uma determinada rádio da qual não recordo o nome, um comentador, na tentativa, de demonstrar que António Costa não tem perfil de liderança nem tão pouco tem sido tão bom primeiro-ministro, referiu que a base deste governo é o ministro das finanças e o presidente da república.

Não poderei pôr em causa as qualidades do comentador enquanto politólogo, pois, como já referi, nem sequer me recordo do nome da estação, nem do programa, quanto mais do interveniente. Contudo, alguém que pronuncia tal afirmação não conhecerá muito de liderança nem tão pouco de criação de equipas.

Hoje, o líder de excelência não é nem o omnisciente, nem o que centraliza em si toda a linha de comando. Em alguns casos, também não é o que se encontra formalmente investido dessa função que, na prática, exerce a liderança. No caso do primeiro-ministro, se há qualidade que se lhe reconhece é precisamente a de liderança que passa, sem dúvida alguma, por criar uma boa equipa e reconhecer o potencial dos seus membros, antes de eles serem efetivos. O trazer para a primeira linha uma figura desconhecida do grande público, que, nem um discurso politicamente bem enquadrado sabia fazer e criar condições para em pouco tempo seja considerado o melhor ministro das finanças europeu é, de facto, um feito exclusivo de boas lideranças.

A relação que mantem com a presidência da república, longe de relativizar a função do primeiro-ministro, revela essencialmente, as capacidades políticas que o detentor do cargo tem e, sobretudo, a capacidade em ler os sinais e interpretar a conjuntura social e política que se vive, mantendo uma estabilidade institucional tão contrastante com as convulsões internas de alguns partidos e de muitos grupos profissionais. Ora, se quer a presidência da república, quer o governo entenderam a seu tempo que cada um pode desempenhar as funções para que foram investidos num clima de apaziguamento tão necessário ao desenvolvimento de um país, de forma alguma se poderá considerar Marcelo como a “muleta” do governo, mas alguém que sabe colocar os interesses do país acima das querelas ou agendas partidárias. Pessoalmente, não aprecio a tendência populista como exerce o cargo, reconheço, no entanto, que tem sido equilibrado na promulgação e no veto dos diplomas, com uma fundamentação coesa e, sobretudo, coerente, contribuindo para o desempenho da governação.

Dale Carnigie, num dos seus livros, apresenta o caso de Charles Schwab, escolhido para ser o primeiro presidente da United States Steel Company, em 1921. Aos 38 anos, pagavam a este homem mais de três mil dólares por dia, para dirigir uma fábrica de aço onde, segundo o próprio, havia muitos trabalhadores que sabiam mais de aço do que ele. Assim sendo, qual era a mais-valia que apresentava? – Nas palavras de Schwab o salário tão elevado correspondia à sua habilidade em falar com as pessoas. Segundo consta, era hábil a encorajar os homens com quem trabalhava, elogiava sinceramente mas também mostrava o seu desagrado quando via os erros.

Ora, se liderar é uma arte, e a arte da palavra é apanágio dos bons líderes, António Costa é efetivamente líder num tempo muito concreto pese, embora não se descortine para onde irá conduzir os destinos do país a médio e longo prazo…

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Francisco Marcos Ferro (n. Torre de Moncorvo, c.1655)

Em meados do século XVII, uma das famílias hebreias mais consideradas em Moncorvo era a de Pedro Marcos Ferro, casado com Branca Gomes.(1) A maioria dos parentes de Pedro viviam em Chaves e Lebução,(2) enquanto a parentela de Branca se foi de Vila Flor para Viseu.

Pedro fora casado em primeiras núpcias com uma mulher que não identificamos, que lhe deu um filho chamado Lopo que foi casar e morar em Faro, dedicando-se ao comércio.

Branca Gomes, foi a segunda mulher de Pedro Ferro. Em determinada altura, o casal deixou Moncorvo e foi para Salamanca. E na universidade local se formariam dois de seus filhos: um em medicina e outro em leis. Regressados a Portugal, foram assentar morada em Pinhel, enquanto os filhos casavam e se dispersavam. Vejamos:

Lopo Marcos Ferro, médico, casou com Leonor Pereira e foi estabelecer-se na cidade algarvia de Tavira.

O filho Diogo Vaz Faro, foi grande mercador na cidade do Porto, essencialmente dedicado ao negócio do tabaco. Era casado com Isabel Henriques, de Vila Flor, filha de Vasco e Mécia Fernandes.(3)

Francisco Marcos Ferro, advogado, nasceu por 1655, em Moncorvo. Estudou na universidade de Salamanca e casou com Maria Henriques, irmã da citada Isabel Henriques. O casal cedo se mudou para Viseu e, por 1694, foram para o Porto.

Entre a elite da burguesia Portuense, Francisco Ferro ocupava um lugar cimeiro e tudo parecia correr de feição quando, em 22.10.1698, a inquisição de Coimbra decretou a sua prisão.(4) E enquanto ele recolhia à cadeia, a mulher e os filhos e muita parentela sua, de Chaves, Lebução, e outras terras, procurou os caminhos da fuga, embarcando no navio Nª Sª la Coronada, com destino a Livorno, em Itália. Porém, escalando o porto de Cádis, foram presos pela inquisição de Espanha.(5)

Quando o prenderam tinham acabado de chegar ao Porto os barcos da frota da carreira do Brasil. E neles vinham mercadorias para o Dr. Ferro. Vejam:

— 211 arrobas de açúcar (mais de 3 toneladas!) que valiam uns 330 mil réis; 39 arrobas de carvão, no valor de 140 ou 150 mil réis; 10 arrobas de pau cravo avaliadas em 30 mil réis; 24 moios de solas, que valiam 30 mil réis.

Refira-se que estas mercadorias vinham em diversos navios e à responsabilidade de várias pessoas que, naturalmente, ganhavam a sua comissão e para o Brasil tinham levado mercadorias do mesmo Ferro para vender. Vejam que tipo de mercadorias:

— Espingardas, mosquetes de pederneira e morrão, espadas, adagas, chapéus, facas marinheiras, meias de lã, mantos de seda, panos de peneiras, cachimbos…

Muitos destes produtos eram importados, nomeadamente de Holanda e para as bandas do Norte o Ferro exportava principalmente azeites, em ligação com seu cunhado Manuel Henriques Lopes.(6)

Advogado… mercador… Francisco Marcos era também rendeiro e trazia arrematadas as rendas do morgadio de Moçâmedes, da abadia de Queirã e da Misericórdia de Viseu…

Do inventário de bens, destaque para o preço de um “vestido de primavera” que comprou para uma filha por 50 mil réis e para a sua livraria avaliada em 70 mil réis, constituída por livros de “direito e ordenação” e os 5 livros do Pentateuco.

Foi denunciado por seu primo Francisco Rodrigues Brandão e pelos amigos António e Alexandre Mesquita, todos naturais de Vila Flor e moradores em Viseu.

Outras denúncias chegaram do Porto, em sumário feito pelo deputado da inquisição D. Tomás de Almeida, em 1692. Uma das testemunhas ouvidas neste sumário declarou o seguinte:

— Disse que sabe que Francisco Marcos Ferro, Diogo Vaz Faro e Manuel Henriques Lopes, que são cristãos-novos, e eles o não negam, e Diogo Vaz Faro disse que eles eram mais honrados e que todos os mais eram uns manganos mestiços.

Ter-se-iam estes 2 irmãos e seu cunhado por “mais honrados” que os outros cristãos-novos? A verdade é que, em 12.5.1701, Pedro Furtado, seu companheiro de cela na cadeia de Coimbra, se apresentou perante o inquisidor Mascarenhas de Brito contando que ouvira Marcos Ferro falar de si mesmo nos seguintes termos:

— Disse que ele, Francisco Marcos Ferro, era descendente da Real Casa de David e estimava muito ser cristão-novo inteiro e os que não eram cristãos-novos inteiros eram mestiços, vis e baixos, e que lhe fazia grande injúria quem com eles o comparava.

Esta declaração foi confirmada por outro companheiro de cela, chamado António da Fonseca dizendo que “ele se prezava muito de ser judeu, descendente da tribo de David”. Mais tarde, houve desentendimentos graves entre o Ferro e o Furtado, sendo este mudado de cela. Para o seu lugar foi Domingos Pires. E estas foram 3 testemunhas que contra Francisco Marcos acrescentaram um rol de denúncias.

Desde logo foi acusado de dizer que Cristo não era o Messias prometido, antes era o Anticristo que, em vez de “congregar o povo santo”, viera separá-lo; que nele se não cumpriram as profecias e por isso os teólogos e doutores da Lei o não reconheceram e nele só acreditou “a gente popular ignorante e gentia”.

Com muitas citações da Bíblia, disse que se a tribo de Judá se dispersara pela Sefarad, e que 9 tribos e meia foram para a terra de Assaret, que fica para além dos desertos e está defendida por um rio de pedras que estão sempre a bater umas contra as outras. E com argumentos tirados dos livros dos Profetas, afirmava que o Messias viria no ano de 1708, em que as 12 tribos se juntariam e reconstruiriam o templo de Jerusalém. E, citando o Bandarra, dizia que “nos três que vêm o reo haverá açoites e castigo”, referindo-se aos 3 inquisidores, que ele classificava como “os ministros da crueldade”, que prendiam para roubar os bens dos prisioneiros. E agora veja-se uma esta denúncia do mesmo Pedro Furtado:

— Disse que o santo ofício não prendia ninguém senão por herege, e que a ele réu faziam grande injúria os que o tinham por herege, dando a entender que não fora batizado (…) mas que era circuncidado.

Obviamente que logo os inquisidores mandaram os médicos examinar, concluindo estes que não havia qualquer sinal de circuncisão.

Aquelas foram apenas algumas das heresias apontadas pelos três companheiros de cárcere, das quais Francisco Marcos Ferro (através do seu procurador) soube defender-se muito bem, conseguindo provar que aqueles três homens não mereciam qualquer crédito, que eram padres e que puxavam por ele conversas acerca das Escrituras, que depois deturpavam, e sendo ele cristão-novo e estando preso por judeu não era crível “que se declarasse com os ditos padres e lhes confessasse o que era (…) pelo que se deve julgar que os testemunhos dos ditos padres não são capazes de fazerem prova”.

Na verdade, Pedro Furtado nem sequer se chamava assim, pois o nome verdadeiro era Manuel Carvalho. E entre eles houvera grandes desavenças, ameaçando Francisco que o “havia de açoitar e meter num alguidar”.(7) Este padre era natural de Serpa, cura da igreja de Sambade, filho de António Machado, familiar do santo ofício. Foi preso por sodomia e se fazer passar por mulher.

O padre António da Fonseca, natural de Amarante, morador em Midões, viveu em Coimbra a maior parte do tempo. Dele faria o conservador da universidade o seguinte retrato: “embusteiro, fingido e suspeito da nossa santa fé”, e o escrivão de Santa Cruz o considerava “teólogo de larga consciência” cujas “práticas e conversações eram sempre picantes”.(8)

O padre Domingos Pires era natural de Soutelo Mourisco, Vinhais, pároco de Bouzende, junto a Bragança. Foi preso porque andava amancebado com uma moça e pedia aos fregueses que a “venerassem por santa”.(9)

Na defesa de Francisco surgiu entretanto um contratempo: o seu procurador abandonou o processo dizendo que “lhe parecia que este se defendia maliciosamente e entendia que ele era judeu (…) pelo que entendia do modo e dizer do dito réu ser este fino judeu”.

Apesar disso, a pena de Francisco, lida no auto-da-fé de 18.12.1701, foi relativamente leve: abjuração, cárcere e hábito a arbítrio e 60 mil reis para despesas do santo ofício.

Notas:

1 - Branca Gomes era filha de Francisco Rodrigues Brandão e Isabel Gomes, que foram morar para Viseu.

2 - Neste ramo da família ligado ao Dr. Manuel Mendes, contam-se vários médicos, formados também por Salamanca.

3 - Inq. Coimbra, pº 9984, de Vasco Fernandes Lopes, o Malrasca; pº 2439, de Mécia Fernandes; pº 10572, de Isabel Henriques.

4 - Idem, pº 6198, de Francisco Marcos Ferro.

5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do mundo, Sefardita e Marrano, pp. 89 – 99, ed. Lema d´Origem, Porto, 2014.

6 - Inq. Coimbra, pº 8521, de Manuel Henriques Lopes. Quando foi preso estava carregando um barco de azeites no porto da Figueira da Foz.

7 - Inq. Coimbra, pº 7622, de Pedro Furtado.

8 - Idem, pº 10318, de António da Fonseca.

9 - Ibidem, pº 3011, de Domingos Pires.

Falsehood

Fake news… De um momento para o outro uma expressão que não conhecíamos salta para o ar ou, como se diz agora, para o ciberespaço. E com o mesmo fascínio da rapaziada que se esfalfa para apanhar a cana de foguete caída no meio de umas touças, corremos sôfregos a apanhá-la para lhe chamar nossa, mostrarmos que estamos à la page e nada nos escapa do que se passa à nossa volta. O mesmo se poderia dizer de muitas outras, tais como austeridade ou crise.

No entanto nem ela nem aquilo para que aponta são realidades novas. A falsidade é parte inerente do mecanismo da vida. O predador tem que ser falso se quer apanhar a presa, e esta também se lhe quiser escapar. Se não fosse a falsidade nenhum de nós estaria aqui para tomar conhecimento dela. É certo que no universo humano o jogo do faz-de-conta se aprimorou de forma extraordinária. Curiosamente, chamou-se secretário à pessoa mais próxima do chefe porque o segredo, o fingimento, a astúcia, a mentira, andaram sempre estreitamente ligados a todos os tipos de poder. Mas não é necessário saber isto nem ir buscar sociedades ou polícias secretas, contrainformações, segredos de estado, de justiça e de família para o exemplificar porque, na verdade, nas nossas vidas pessoais quase todos vamos gerindo melhor ou pior diferendos confidenciais com a verdade.

Quando o velho Sócrates, há vinte e cinco séculos, fez a célebre recomendação “conhece-te a ti próprio”, estava no fundo a informar-nos de que por detrás das máscaras mais ou menos produzidas que exibimos existe outra realidade, muito mais verdadeira do que essa, que seria necessário conhecermos para conhecer (todo o universo). Portanto, assumia claramente que não somos o que parecemos, que as nossas vidas acabam por ser um teatro, uma representação.

Já mais perto de nós, em princípios do século que passou, um vienense de barbas brancas, Sigmund Freud de seu nome, foi mais longe. Jurou a pés juntos que o nosso comportamento é controlado por forças que desconhecemos, tão poderosas quanto irracionais. Era gravíssima uma das coisas a inferir das suas descobertas: a parte racional, consciente, não controla mais do que uma pequena porção dos nossos atos. Numa fórmula mais crua ainda, apenas somos senhores de uma parte reduzida daquilo que fazemos. Na época, a indignação e o escândalo não poderiam ser maiores, tanto assim que tudo foi feito para desacreditar, e depois esquecer, esse clínico de aspeto venerável. É que se tratava de uma machadada de vulto no orgulho de quem há muito se vinha denominando “animal racional” ou, com uma pompa que a ciência caucionava, “homo sapiens”. Mas pouco importou: a partir daí compreendeu-se que era extremamente difícil a um ser humano descobrir a sua própria verdade, quanto mais pretender atingir qualquer tipo de verdade. 

Todavia, já mil e novecentos anos antes, quando um dia tinham desafiado Jesus a que se definisse ele declarara simplesmente: eu sou o caminho, a verdade, a vida. Aquela palava do meio não deixa dúvidas de que ele via a fuga e a traição à verdade íntima como a fonte do padecimento humano, assim como a sua procura a única coisa suscetível de o poder salvar desse padecimento. E tendo em conta que também conhecia bem de mais a dificuldade da tarefa, tudo isso lhe inspirava uma infinita comiseração pelo ser humano.

De facto, a verdade pode provocar-nos calafrios. A sua recusa tem o potencial de nos fazer adoecer com gravidade. Quando por vezes ousa assomar sem ser chamada, desviamos a vista aterrorizados. Usamos de mil subterfúgios para lhe escapar. Criamos vidas que se situam entre a comédia, a farsa e a tragédia só para a esconder. Assassinamos se for preciso para que não seja conhecida e conste aquilo pelo qual a queremos substituir.

E então, no meio disto tudo, fake news... E toca de brincarmos com as duas palavrinhas novas como com um brinquedo que um tio trouxe do estrangeiro (quando os tios traziam brinquedos do estrangeiro). Virgem santa, chocarmo-nos por saber que há pessoas que publicam coisas falsas! Descobrimos então agora de repente que somos enganados, manipulados, instrumentalizados, coisa que sempre fomos e vamos continuar a ser. Mas não será isso apenas um simples retorno resultante de cada um de nós instrumentalizar, enganar, manipular?

O mel turístico e a regionalização

Afigurava-se-lhe que o seu currículo, até ali, demonstrava amplamente ser o candidato mais bem preparado para suceder ao detido Merlchior Moreira, no blasonado cargo de Presidente da Entidade Regional de Turismo do Porto e Norte de Portugal. Afigurava-se-lhe que a hegemonia da «sua» família socialista o iria apoiar e proteger de modo o exame eleitoral ser mero pró-forma, um aperitivo de vinho fino antes do suculento jantar de entronização. Raciocinava, era certo, que ninguém está na cabeça dos outros, ele próprio sabia quão volátil é palavra dada no circuito político, muitas recordações desse género guardava desde o seu primeiro mandato enquanto Presidente da Câmara de Miranda do Douro, benjamim posteriormente condecorado por Ramalho Eanes. Adiante!

Intensas e mastigadas palavras nos bastidores acordaram-no do sonho, avisaram-no da existência de outro candidato saído da mesma família, escorado na génese portuense, enfunado pela brisa do litoral, podendo reivindicar costado bragançano. E o currículo lembrou o sevilhano mirandês? Ora, o currículo! O rival foi deputado oriundo da Jota, coevo de Jamila Madeira, dele os anais parlamentares não rezam nada de relevante, ficaram as incursões nocturnas, no presente exerce burocraticamente um cargo na Torre dos Clérigos, estando a ler o dicionário e manuais de economia turística. Um espanto!

O transmontano sentiu um amargor a amolecer-lhe os cantos da boca, consequência de não ter sabido granjear outros esteios a sustentarem a sua propositura. O acontecido era grande culpa dos outros sem dúvida, mas também culpa dele e de quem lhe disse serem favas contadas. Saiu-lhe a fava, preta, favas tenras, verdinhas só na Primavera.

O Dr. Júlio Meirinhos teve de aceitar um lugar sem lustre num órgão consultivo, daqueles onde se colocam comendadores ao modo de jarrões de várias qualidades de louça, desde a porcelana ao barro de Pinela.

Lastimo este desfecho para o antigo membro do Leal Senado de Macau e Governador Civil de Bragança.

Este exemplo, mais um, cimenta a minha velha e firme recusa da regionalização a qual é muito querida nas bandas da Comissão Coordenadora e Desenvolvimento do Norte, cujo Presidente tal como Luís Braga da Cruz vê na dita regionalização a fórmula mágica capaz de num ápice resolver os problemas existentes no Porto e arredores, tal como Astérix derrubava romanos depois de ter tomado o xarope do druida.

O senhor professor Sousa tem todo o direito em erguer o pendão do regionalismo muito distante do outrora defendido pelo sincero amigo da sua região, refiro-me a Ferreira Deusdado, eu também ainda tenho o direito a defender posição contrária porque não sou do Norte, sou de Trás-os-Montes, parafraseando o meu saudoso amigo Afonso Praça.

Se tivermos em linha de conta as afirmações do Presidente da Câmara do Porto logo verificamos a sua disposição tentacular no princípio para o Porto tudo, para os vizinhos as migalhas, os acima de Baltar, nada. O senhor professor Sousa não navega em águas muito diferentes das do Dr. Rui Moreira, por tacitismo e realidade territorial procura atrair os autarcas do Nordeste, já os beira Douro é uma questão de pormenor, recentemente o município da Carrazeda de Ansiães transferiu-se dando a ideia de não estar só nesse propósito. Razão tinha o almocreve ao exclamar – onde há lúcaros, não há escrúpalos! – , por assim ser, repito o escrito durante a campanha do referendo: “os nordestinos ganham mais tendo como tutela o Terreiro do Paço, do que a Torre dos Clérigos”.

Enquanto do Professor Marcelo professar as dúvidas professadas no decurso de referendo estou descansado, o Senhor Professor Sousa terá de continuar a gritar até ficar rouco, o problema reside na possibilidade de o Presidente da República se converter tal como Rui Rio está (quase) convertido.

Eu sei, nós sabemos, da gula alfacinha, gula aumentada dada a insegurança e custo de vida noutras cidades europeias, apesar da voracidade lisboeta nós, os do interior, das serranias, do gelo, do fumeiro, dos lameiros primaveris, do Estio tórrido, do fumeiro, do folar, das trutas de pinta vermelha, os vindos do «reino maravilhoso», caso se interessem conseguem fazer medrar os seus direitos no seio da burocracia estatal. Inúmeros exemplos o atestam.

Os Nordestinos têm o dever de afirmarem a singularidade de terem chegado à capital desprovidos de padrinhos, de capital, de penduricalhos reluzentes, disfarçaram a pobreza estudando, afirmando-se, dizendo o evidente – podemos andar de socos, mas não somos brutinhos –, depressa demonstraram as qualidades de poderem ser burros, nunca de jericos. Entendem caríssimos capatazes do Porto?

Várias vezes, nestas colunas, critiquei Melchior Moreira, a crítica residia no facto de o antigo deputado privilegiar a «aulazinha» dos tempos de S. Bento em detrimento do Nordeste, na dele contava o litoral dos votos, o rio do vinho generoso e as arribas fronteiriças. Saiu sem honra e glória.

O noviço Presidente pode ribombar feliz e contente, porém não se esqueça de Marco Aurélio e a efemeridade da glória. Trago a terreiro Marco Aurélio porque os seus comentários filosóficos continuam na ordem do dia, caso queira conselhos acerca da política turística faça o favor de rumar até Delfos, o oráculo continua difuso e intrigante.