…O Príncipe, de Maquiavel

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Ao falar do livro O Príncipe, inevitavelmente se fala de Maquiavel, cuja popularidade é tal que aparece dicionarizado através do adjectivo maquiavélico, conhecido pelo aforismo “o fim justifica os meios”, expressão que nunca chegou a formular nestes termos, passando à posteridade por algo que nunca disse. Sendo O Príncipe produto do seu tempo, embora se considere ainda hoje, um texto intemporal, acaba por ser o resultado de uma vivência centrada na pessoa do autor e das circunstâncias sociais e políticas em que viveu. Nicolau Maquiavel (1469- 1527) nasceu em Florença numa altura em que a cidade e a península itálica viviam um período de grande instabilidade e turbulência. A Itália estava dividida em vários estados organizados em torno das principais cidades. Milão, Veneza, Florença, os Estados da Igreja, o reino de Nápoles e outros menores, conquanto almejassem a sua independência, estavam, constantemente, à mercê dos mais fortes Estados europeus, como a Espanha e a França. Os espanhóis dominavam o reino de Nápoles e os franceses, após intervenções armadas de Carlos VIII e Luís XII, dominavam Milão e partilharam durante algum tempo o poder em Nápoles. Desde 1434 que Florença era governada pela família Médicis. O seu regime foi interrompido em 1494 pela chegada das tropas francesas de Carlos VIII. Até 1496, Florença conhece uma espécie de república teocrática, sob a influência do pregador dominicano Savonarola. Após a queda de Savonarola (1452-1498), a república mantém-se durante mais de 16 anos, tendo o dominicano sido queimado na fogueira por ordem do papa Alexandre VI em 23 de Março de 1498. Maquiavel tem um papel importante neste teatro conturbado numa Itália que só alcançará a sua unificação por volta de 1870, graças ao esforço de homens como Garibaldi (1807- 1882). As suas missões diplomáticas junto da monarquia francesa, da Santa Sé e do império germânico, proporcionaram-lhe o conhecimento e a importância suficientes para ser alvo dos Médicis quando reconquistaram o poder em 1512, com a ajuda das tropas espanholas. Maquiavel é preso, torturado e afastado da vida política activa. Durante os 10 anos que se seguem dedicou-se a escrever, sobretudo sobre história e filosofia política, acabando por reconquistar o favor da família Médicis, voltando a participar na política activa nos dois últimos anos de vida. Numa carta datada de 10 de Dezembro de 1513, dirigida ao seu amigo Francesco Vertori dá conta da sua vida de exilado no refúgio campestre de San Casciano, afirmando que está a compor um opúsculo, De Principatibus, “onde penetro o mais profundo que consigo neste assunto, discutindo o que é um principado, que tipos de principado há, como se conquistam, como se mantêm, e porquê se perdem” por isso dedica ao Magnífico Giuliano (de Médicis), embora na dedicatória que saiu a público conste “Nicolau Maquiavel ao Magnífico Lourenço de Médicis”. Para ser mais preciso, dedicou o livro, publicado postumamente a Giuliano de Médicis que estava prestes a subir ao poder em Florença. Depois de Giuliano ter morrido, emendou a dedicatória para Lorenzo de Médicis, seu sucessor. Publicado em 1532, cinco anos após a morte de Maquiavel, redigido em toscano, acessível à maioria dos leitores, com vinte e seis capítulos introduzidos por um título em latim, cedo é alvo de polémica, sendo condenado pelo Papa Clemente VIII (1536-1605) e colocado no índice dos livros proibidos em 1559. Maquiavel terá escrito O Príncipe com dois objectivos: Influenciar os destinos de Florença e da Itália, ameaçada pelas divisões internas e pelos perigos externos representados pela Espanha e pela França; conseguir recuperar uma posição de conselheiro junto do príncipe, então no poder da cidade de Florença. Da leitura de O Príncipe, extrai-se uma ideia fundamental que se compatibiliza com os manuais didácticos que ensinam os monarcas a administrar o território sob o seu poder, sendo a filosofia de Maquiavel fundamentalmente sobre o poder. De entre os muitos leitores que apreciaram o livro, quer louvando-o ou considerando-o um manual para tiranos, é possível enumerar Frederico, o Grande, Luís XIV, Napoleão, Bismarck e Hitler. Escrito a partir do que os homens fazem e não do que devem fazer, privilegiando sempre o poder e o modo como proceder com esse poder que lhe é proporcionado, poderíamos citar como exemplo o capítulo XIV que tem por título “Do que respeita ao Príncipe no tocante a guerra”, onde Maquivel escreve: Portanto um príncipe não deve ter outro objectivo nem outro pensamento, nem tomar a peito outra matéria, que não seja a arte da guerra e a organização e a disciplina militares, pois trata-se da única arte que pertence aos que comandam e têm grande poder que mantêm não só os que de estirpe são príncipes, como também, não raro, permite alcançar tal dignidade a homens de condição simples. Em contrapartida, verifica-se que os príncipes perdem os seus estados quando se dedicam mais às voluptuosidades do que às armas. (…) O príncipe que não é entendido na arte da guerra, além de outros inconvenientes, jamais será estimado pelos seus soldados ou poderá fiar-se neles. (…) Por outro lado, em vez de estar ocioso na paz deverá aproveitar esse tempo para acumular um capital que lhe possa valer na adversidade, a fim de que, quando a fortuna lhe virar as costas, esteja apto a resistir. Tendo sempre como prioritário a questão do poder, Maquiavel afirma que a religião e a moral não têm lugar no espaço político, excepto na medida em que sirvam fins políticos, sendo instrumentos de poder e força de coesão social. O valor de uma instituição ou de um governante devem ser determinados apenas pelo êxito prático, sinónimo de aquisição e manutenção do poder político. No capítulo XV subordinado ao tema “Das coisas pelas quais os homens e sobretudo os príncipes, são louvados ou vituperados”, afirma: Mas sendo meu intento escrever coisa útil a quem entende, pareceu-me mais conveniente ir direito à verdade efectiva das coisas que à sua imaginação (…) Daí ser necessário a um príncipe, para poder preservar-se, aprender a poder não ser bom e a usar ou não usar dessa faculdade consoante a necessidade. Ainda no capítulo XV, é possível extrair que o príncipe deve possuir a sensatez necessária para evitar a infâmia dos vícios capazes de lhe fazerem perder os seus Estados. A leitura de O Príncipe, tal como a de muitos outros livros, abre-se na subjectividade de quem o manuseia. Conquanto dedicado a um príncipe e a ele dirigido, tendo em vista o pragmatismo da governação e, consequentemente, o poder, o conceito de príncipe pluraliza-se através da sua leitura, admitindo que cada um de nós, possa ser seu destinatário, aquele que melhor quer defender os seus interesses e as suas práticas, não havendo assim um indivíduo concreto como receptor, ou uma entidade que se reconheça na concretização de uma vontade supostamente colectiva, ou um partido político, como exemplo. Não é um texto datado, mas uma obra de arte chegada aos nossos dias, onde o salve-se quem poder, marca o modus operandi de muitos que almejam o poder e depois não o sabem governar, procurando a todo o transe, o melhor caminho para o conseguir. Tendo em vista a dicotomia ser e parecer e, consequentemente, a importância da imagem e o que se mostra à comunidade a que pertence, Maquiavel considera de grande relevância a manipulação que a política faz da imagem. O príncipe deve parecer bom, justo, generoso, ainda que, para conservar o Estado, tenha que ser exactamente o contrário. No capítulo XVIII, a que dá o título de “Como os príncipes devem honrar a sua palavra”, escreve Maquiavel: Um príncipe não precisa, consequentemente, de ter todas as qualidades enumeradas, mas convém que pareça que as tem. Atrever- -me-ei, até, a dizer que, se as tem, e as respeita sempre, o prejudicam. Mas, se fingir bem que as tem, ser-lhe-ão proveitosas, assim como lhe será proveitoso fingir-se compassivo, fiel, humano, íntegro e religioso e sê-lo, mas nas condições de se convier e não ser, saber e poder agir ao contrário. O Príncipe, embora o título nos remeta para um texto privilegiando a figura do governante, é na sua essência um conjunto de regras tendentes a instruir alguém cujo objectivo é a conquista do poder e a forma de o preservar. Mas se ao príncipe lhe são atribuídas e consignadas práticas de vida, é necessário, também, que características endógenas formatem o governante. A virtude é a grande qualidade que se exige que o governante possua, aliás já exigida nalguns diálogos de Platão, nomeadamente em Alcibíades. O bom príncipe é o que possui maior virtù, palavra bastas vezes repetida ao longo do texto, o que significa que se lhe exige que tenha um conjunto de qualidades pessoais, tanto inatas como adquiridas, sendo o grande objectivo a vitória e o sucesso que serão alcançados de qualquer forma, não havendo nada de errado se os processos utilizados não forem os mais claros. O mais importante não é participar, nem sequer fazê-lo bem, de acordo com as normas, o que interessa é fazê-lo melhor do que o adversário, ganhar, vencer, assegurar o ceptro. Relativamente à sua pátria, o príncipe não deve agir levianamente, nem se deixar invadir pelo medo, mas sim proceder de forma moderada, com prudência e humanidade para que o excesso de confiança não o torne imprudente e o excesso de desconfiança não o torne insuportável, questionando-se, depois, se será melhor ser amado que temido ou o inverso. Tratando-se de um livro de carácter didáctico, com o objectivo de ajudar através da assertividade de um discurso que deve ser bem aceite, alicerçado em exemplos de factos acontecidos, que não sofrem contestação, são muitos os conselhos que a experiência de Maquiavel dita. Muito pragmatismo é tido em conta. No capítulo V, “De que modo se devem governar as cidades ou principados que, antes de serem ocupados, viviam segundo as suas leis”, acrescenta Maquiavel: E aquele que se torna senhor de uma cidade habituado a viver livre e não a destrói, deve esperar ser destruído por ela, pois ela tem sempre como pretexto para as suas rebeliões o nome da liberdade e os seus antigos costumes os quais nem o tempo nem qualquer benefício permitirão que sejam jamais esquecidos. Parafraseando o capítulo VIII que tem por título “Daqueles que chegam ao Principado pela perfídia”, é possível que ao apoderar-se de um país, o ocupante deve pensar em todas as crueldades que precisa de fazer e praticá-las imediatamente, de uma vez, para não terem de voltar a recorrer ao mesmo processo. Convém fazer o mal todo de uma vez (…). Não sendo um misantropo, um príncipe deve, sobretudo, viver com os seus súbditos, de tal modo que nenhum acidente, de bem ou de mal, o obrigue a modificar o seu procedimento. Nesta sua prática com o outro, importante se torna a capacidade de fingimento, devendo ter o entendimento treinado para virar conforme os ventos da fortuna e a mutabilidade das coisas, não se afastando do bem, se puder, mas enveredando pelo mal, se for necessário. Porque a vida não se circunscreve exclusivamente a um conjunto de manifestações bélicas, em busca de um único objectivo que é a vitória, o príncipe deve, em certas épocas do ano, distrair e divertir o seu povo com festas e jogos, e como a cidade está dividida por ofícios ou por tribos, o príncipe deve interessar-se por esses agrupamentos, assistindo algumas vezes às suas reuniões, dar exemplos de humanidade e de magnificência, mas que nunca rebaixe a majestade do seu posto, pois ela jamais deve diminuir. Não sendo uma entidade omnipotente nem imensa, o príncipe tem necessidade de se aconselhar, quando quer e não quando os outros querem, evitando conselhos de quem não os pede. Assim, deve pedir conselhos, sem parcimónia, e escutar pacientemente todas as verdades, aconselhando-se com diversos, nunca se enfrentará com as mesmas opiniões. Mostrando como se age e administra o poder, postergando todos os conceitos de moralidade, dando lugar à crueldade e às políticas imorais, de acordo com os padrões convencionais, se essas forem as mais adequadas para levar a cabo os intentos do sujeito dominador. Feito, sobretudo, para governantes, O Príncipe visa os interesses do Estado, sobrepondo-se aos direitos humanos, podendo, mesmo, serem sacrificados, se necessário. Não será um bom príncipe aquele que for reticente na aplicação dos procedimentos que forem mais adequados para a circunstância. Um livro que atravessou o tempo, apreciado e menosprezado por muitos e a que não se fica indiferente. Não consta que os fins justifiquem os meios, tão só se lê que todos os meios são possíveis para se obter a vitória tão desejada, conquistando e consolidando o poder. E é assim que muitos ainda se mantêm. Aos déspotas não lhes faltou a leitura de O Príncipe. Se não o leram, seguiram-lhe as pisadas, andando por lá perto. Assim parece…

João Cabrita