Herói fútil de uma revolução inútil

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Cumprido que está o período de nojo, tempo em que após a morte de quem quer que seja devemos evitar comentários pouco abonatórios, podemos agora falar da desconcertante personalidade que foi Otelo Saraiva de Carvalho.

Abordemos os factos com realismo. Desapaixonadamente.

Era uma vez, um modesto major de artilharia que as circunstâncias levaram a que fosse ele o coordenador principal das forças militares que no dia 25 de Abril de 1974 marcharam sobre Lisboa e despuseram o governo, abrindo caminho à tão desejada democracia, mas que acabou por descambar num tão conturbado quanto descabido processo revolucionário.

Outro poderia ter sido o coordenador que não ele, porém, já que, face à conjuntura, a oficialidade insatisfeita o teria aceitado pacificamente.

Tratou-se, de resto, de uma elementar movimentação militar, envolvendo um limitado número de tropas, sem riscos de maior e que não requeria excepcional capacidade de coordenação, comando e direcção.

Operação urbana, sem inimigo nem manobra táctica, que apenas teve um momento de afrontamento no Terreiro do Paço, mas que Salgueiro Maia, o capitão que comandava a forças revoltosas no local, ousou resolver com superior serenidade e eficácia. Honras continuam a ser-lhe devidas por quem de direito, por esta e por atitudes subsequentes.

Acresce que a mítica operação havia sido longamente discutida e preparada durante todo o processo conspirativo que reuniu, em diferentes locais da capital, exclusivamente oficiais do quadro permanente, unidos por justificado espírito corporativo. Processo conspirativo de que a hierarquia tinha conhecimento mas não teve engenho, arte ou vontade para o debelar à nascença, o que teria sido possível.

Certo é que tal movimentação militar teve sucesso pleno, tanto que, felizmente, nem um só morto ou ferido causou.

Não é de espantar, por tudo isso, que o incensado coordenador do levantamento tenha sido entronizado, de imediato, como herói nacional.

Pior, porém, foi o que veio a seguir, quando a revolta eminentemente militar cedeu lugar às complexas e traiçoeiras maquinações políticas.

O modesto major de artilharia, ébrio de vaidade e vanglória, transfigurou-se num insano revolucionário, denominador comum de marxistas, leninistas, trotskista e anarquistas, e dos tolos que pretenderam converter o MFA num partido, sem doutrina nem lei, inevitavelmente totalitário.

Acabaram por envenenar todo o processo, abrindo caminho à descolonização injusta e trágica e pondo em perigo a democratização e a independência nacional. Em 25 de Novembro salvou-se o que se pode!

A história é, de resto, bem conhecida. A banca e os seguros foram nacionalizados, a reforma agrária pôs o Alentejo e o Ribatejo a ferro e fogo, com o falso lema de que a simples mudança da posse da terra beneficia quem a trabalha, no norte do país eram perpetrados actos violentos, designadamente assaltos a sedes de partidos de esquerda em protesto pelo que acontecia a sul. Posteriormente, bombistas passaram a matar inocentes sobe a égide do novíssimo libertador.

Instalou-se o caos. Extremaram-se posições. Três forças se aprestaram para o confronto decisivo: os otelistas, os gonçalvistas e os moderados. E dois potenciais focos de guerra civil ganharam fôlego: o que opunha forças totalitárias a forças democráticas e o que ameaçava rebentar no seio das próprias forças totalitárias. Inevitavelmente Otelo converteu- -se no bombo da festa e caiu na desgraça.

Uma pergunta fulcral se impõe, agora, para que um mais lúcido juízo histórico se posso fazer: e se não tivesse havido o 25 de Novembro, se o golpe das forças totalitárias não tivesse sido neutralizado pelas forças democráticas?

Constituir-se-ia Otelo no émulo europeu de Fidel Castro, como terá sonhado? Seria Portugal ocupado por soldados cubanos como aconteceu em Angola? Consumar-se-ia a sugerida matança de fascistas na praça de touros do Campo Pequeno? As forças militares e paramilitares que Otelo liderava entrariam em confronto fratricida com as forças fiéis ao PCP? Converter-se- -ia Portugal numa outra Cuba ou numa outra Albânia? A Nato interviria? E o Pacto de Varsóvia como reagiria? Hipóteses com elevado grau de probabilidade, note-se bem. Lamentavelmente, a punção revolucionária de Otelo, derrotado e humilhado em 25 de Novembro, não terminou aí, já que aparece associado, de imediato, às Forças Populares 25 de Abril, a organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Surpreendentemente, ou não tanto, Otelo terminou a sua mirabolante carreira política claramente arrependido e a elogiar o ditador Salazar.

Nenhum machucho político do momento, chame-se Eanes, Marcelo ou Costa, por melhores intenções que tenha, poderá determinar em que galeria da Historia Pátria, se na dos heróis se nas dos traidores, irá ser dependurado o seu retrato a óleo.

Talvez a História o consagre como o herói fútil de uma revolução inútil.

Paz à sua alma.

Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico

Henrique Pedro