A Organizar a leva dos presos para Coimbra e proceder ao sequestro dos seus bens implicava algumas diligências que, por vezes, se arrastavam por vários dias. Veja-se, a título de exemplo, o que escrevia para Coimbra o comissário Miguel Ferreira Perestrelo, em Março de 1714: - Foram as 6 pessoas presas em uma segunda-feira, pelas 10 horas do dia e como uma delas, que era Manuel da Costa, estivesse na vila de Azinhoso, que dista desta cidade 10 léguas, chegou a ela preso na terça-feira à noite ou na quarta, e dispus a jornada para domingo, no qual chegou ordem para as segundas prisões e dilatei a jornada, para não fazer duas levas; e como havia de mandar a Santa Valha, foi necessário esperar mais alguns dias e esta foi a causa da dilação. (1) Entretanto, era necessário arranjar dinheiro para comprar as cordas e os grilhões para segurar os presos e conseguir bestas para os transportar e para pagar as jornas aos “guardas” que os conduziam. Vejamos um caso concreto, datado de 1652: o rol de despesas efetuadas com a prisão de Henrique Dias da Costa, (2) natural e morador em Torre de Moncorvo: A Manuel Coelho de Azevedo de 12 dias da Torre a esta cidade – 1500 réis. De 3 homens que o acompanharam no mesmo tempo – 1 200. Da cavalgadura e da do fato - 2 370. Dos ferros deste preso - 300. Dos 3 dias que o familiar gastou para ir a Bragança prender o dito - 1 500. De 2 homens que o acompanharam no mesmo tempo - 840. De uma mula em que veio até à Torre - 360. Do gasto de comer até à dita vila - 120. Da Torre até esta cidade - 533. (3) Obviamente que poucas pessoas se dispunham a alugar as suas bestas, para serem conduzidas por estranhos. É que, os animais, como as pessoas, têm os seus tiques e as suas manhas e só os donos os conhecem e tratam bem. Por isso, muitas vezes não era fácil conseguir as bestas necessárias, tendo os homens da inquisição de as tomar pela força, com recurso à justiça d´elrei, em feiras ou nos próprios alojamentos. Por outro lado, em Bragança, até havia dificuldade em mobilizar familiares do santo ofício para conduzir as levas, como já se viu. A propósito destas dificuldades e constrangimentos, veja- -se a seguinte informação do comissário Manuel Camelo de Morais: - Dei ordem a dispor o que me ordenastes nela e se prenderam os 9 presos que o familiar Pedro Esteves entregará nessa inquisição, e suposto me mandavam fizesse as prevenções de bestas e familiares prontos para a leva dos presos, me não foi possível em vista das muitas repugnâncias, assim a respeito do dinheiro da leva que era necessário para os gastos dela, por o juiz de fora desta cidade o não dar dos presos (…) e por esta causa e do familiar dela se deter, houve mais dilação do que eu tinha disposto (…) Eu lhe dei para a leva 10 moedas de ouro, de que deixou recibo. (4) Havia, pois, “muitas repugnâncias” da parte do juiz de fora em dar o dinheiro e da parte dos familiares em levar os presos e com eles o dinheiro estipulado para sua alimentação na cadeia. Esta última verba vinha logo indicada no mandado de prisão e que, geralmente, variava entre os 20 e os 50 mil réis. Obviamente que tudo devia sair do bolso dos prisioneiros. Mas não seria fácil apanhá-lo, pois que o dinheiro é fácil de esconder. Vendiam-se então os bens necessários, a começar pelos bens perecíveis: cereal que havia nas tulhas, batatas, vinho e outros géneros que se encontravam nas adegas, animais que havia nas cortes… De seguida, vendiam-se outros bens móveis e, faltando estes, iam os de raiz. Claro que, como em 1713 escrevia o escrivão do fisco Francisco Correia, sempre que podiam, os familiares do preso “limpavam a casa e ultimamente nem um preso tem ido sem haver roubo na casa em seus bens, ou seja feito pelos da casa ou pelos guardas” que o iam prender. Isso mesmo se depreende do comentário feito pelo comissário Manuel Camelo de Morais, em carta para Coimbra, acompanhando a remessa de um prisioneiro: - Do inventário que se fez, não consta mais do que 1300 réis que tem de bens, que todos são pobres, como se vê das certidões que remeti do escrivão do fisco a Vª Senhoria no correio passado. (5) Começámos esta série de textos falando de uma carta enviada de Bragança para Coimbra dizendo que os depositários dos prisioneiros deixavam estes falar com seus familiares. E falámos de uma outra carta, escrita por Francisco Correia, notário do fisco, informando que muitos dos bens mandados sequestrar aos presos, desapareciam como fumo. Recordemos um extrato daquela carta: - Como vejo as prisões serem feitas cada vez pior, com tão má forma e disposição, que os bens dos presos os furtam ou lhe ficam outra vez em casa, por isso me decidi fazer este aviso, levado pelo zelo do santo ofício e dos bens do fisco (…) Ultimamente, nem um preso tem ido sem haver roubo na casa em seus bens, ou seja feito pelos da casa ou pelos guardas que se lhe põem. (6) Não sabemos se outras mais cartas ou informações chegaram a Coimbra e que levaram os inquisidores a instaurar um processo sumário para averiguar a verdade dos factos. Nada encontrámos também sobre esse processo, a não ser o despacho do inquisidor António Portocarreiro, do teor seguinte: - Pelo sumário que se fez sobre os descaminhos dos sequestros e bens confiscados, pareceu ao inquisidor se transladasse o dito sumário, no que somente toca ao fisco e se enviasse ao juiz dele para que proceda contra os que se acham compreendidos em tais descaminhos. Coimbra, 11 de Maio de 1715. (7) Não encontrámos o sumário referido, mas descobrimos nos Arquivos da Torre do Tombo um “Livro de receita dos depositários Gonçalo Pires, Miguel Rodrigues e António Mendes de Madureira - Agentes em Bragança” (8) cujos registos são datados entre 1683 e 1719. Da existência e análise deste e outros livros semelhantes, se mostra que em Bragança existia um depositário do dinheiro e dos objetos de ouro e prata resultantes do sequestro e venda dos bens dos presos. Tal depositário, se obrigava por sua pessoa e bens a entregar o dinheiro à ordem do juiz do fisco, todas as vezes que lhe fosse pedido e a entregá- -lo em Coimbra, juntamente com uma certidão justificativa dos mesmos dinheiros, passada pelo notário do fisco, que, em Bragança, naqueles anos, se chamava Francisco Correia. Para além do juiz, do escrivão e do depositário do fisco, devemos referir a intervenção do juiz de fora no sequestro dos bens dos prisioneiros. Era ele que dirigia os sequestros, competindo-lhe que os bens se não perdessem, que os bens perecíveis se não estragassem e que as casas e propriedades fossem mantidas e rendessem para o santo ofício. Para isso nomeava depositários e dava de arrendamento aqueles bens. Mas antes, tinha de fazer- -se um inventário dos mesmos bens e nisso intervinha um escrivão do judicial. Fiquemos então na página 34 deste livro, onde se ficaram escritas as verbas para alimentos, tiradas dos inventários de pessoas que foram presas em Bragança no dia 11.4.1685: Do inventário de Clara Gonçalves, mulher de Gaspar Rodrigues – 2 000 réis, da venda de uma terra; e dos móveis – 5 300; e levou para alimentos – 10 000. Do inventário de Jerónima Ledesma, mulher de Fernando Fonseca – Deu de depósito 25 000 réis; e levou para alimentos – 15 000. Do inventário de Brites Nunes, mulher de José Dias - Dos móveis – 12 000 réis; E levou para alimentos – 10 000. Dos inventários de Brites Nunes, viúva de Roque Rodrigues e sua irmã Isabel Rodrigues – Dos móveis dos inventários - 16 500 réis; levaram as presas 10 000. Do inventário de Catarina Pereira, filha de António Rodrigues Raba, casada com Lourenço Rodrigues, que também foi preso, alguns dias antes – De seus móveis 42 500 réis; de renda de casas e vinha, por tempo de um ano – 12 000; e mais 5 500 réis, que deu em depósito; e levou a presa para alimentos – 20 000. Do inventário dos bens de Isabel Rodrigues, mulher de Rafael Rodrigues Cachicão – Levou 15 000 réis. Do inventário de Mécia de Castro, solteira, filha de Gabriel Rodrigues e Isabel de Castro – Dos bens móveis – 4 000 réis; levou a presa 10 000. Do inventário de Filipa Nunes, mulher de Pascoal Lopes – Dos móveis – 26 000 réis; leva a presa 10 000. Do inventário de Isabel Rodrigues, mulher de João Gonçalves, o Marrana – Deu de depósito – 25 000 réis; leva a presa para alimentos – 15 000. Do inventário de Isabel Rodrigues, por ela e seu marido, António Rodrigues Peinado, preso também uns dias antes – Dos móveis – 46 000 réis; das rendas das casas e vinhas – 14 000; leva a presa 20 000. Como se vê, trata-se de verbas relativamente pequenas e, como dizia o comissário, todos parecem pobres. As aparências, no entanto, não enganavam os inquisidores e os bens dos presos seriam bem escrutinados, levando, por vezes, alguns anos, a recolha dos mesmos. Disso haveremos de dar conta em próximos trabalhos. E também os presos e seus familiares procuravam maneira de esconder os bens, nomeadamente apresentando dívidas, por vezes até superiores aos bens que apresentavam.