Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- O clã dos Rodrigues Ferreira

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Em memória de Teófilo Vaz. Foi o Teófilo que nos convidou a escrever para o jornal, confessando que era seguidor das nossas crónicas no Terra Quente. Com esse convite, diremos que é o primeiro responsável pela investigação das raízes judaicas de que aqui vimos dando conta desde há 4 anos e meio, em 236 números do jornal. Preparávamo-nos para enviar este texto ao Teófilo quando tivemos a triste notícia da sua morte. Curvamo-nos perante a sua memória. Não foi apenas a sua família que ficou mais pobre. Foi o jornalismo, foi a cultura Trasmontana. Saibamos nós honrar a sua memória, continuando a trilhar os caminhos que ele nos abriu. Que a terra lhe seja leve.

Entre os 9 judaizantes presos naquele dia 5.11.1714, contaram-se dois filhos de Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues. Antes de seguirmos o acontecimento, olhemos um pouco para a família. Pedro Cardoso era natural de Vinhais, filho de Diogo Cardoso, curtidor e Mécia Álvares, ambos presos em 1658 e penitenciados no auto de 23.5.1660. (1) Esperança Rodrigues, era natural de Bragança, filha de Henrique Rodrigues, também curtidor e Beatriz Fernandes. Aquele era já falecido em Setembro de 1662, quando Beatriz contava 38 anos e se apresentou na inquisição, a confessar culpas de judaísmo, sendo mais tarde chamada para ouvir sua sentença no auto de 26.10.1664. (2) O mesmo caminho seguiu Esperança Rodrigues, que acompanhou a mãe em ambas as viagens, sendo ainda solteira, de 14 anos de idade. Também solteiro e a morar em Vinhais, estava Pedro Cardoso quando foi preso pela inquisição, em 1660, saindo condenado em cárcere e hábito no auto de 9.7.1662. (3) Casados, Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues estabeleceram morada em Bragança. E estabeleceram-se também como tendeiros. Era uma profissão mais limpa e prestigiante que a dos pais, curtidores. Esperança e Pedro criaram 12 filhos, uma poderosa dinastia comercial, que se ligou a outras importantes famílias da nação hebreia de Bragança, como a dos Raba, dos Ledesma, dos Pissarro e dos Lopes da Silva. (4) E tornaram-se fabricantes de seda, ato revelador da ascensão social dos curtidores e tendeiros. Maria Henriques, uma das 7 filhas de Pedro e Esperança, casou na família, com Diogo Ferreira, seu tio paterno, também fabricante de sedas, preso pela inquisição de Coimbra, em cujos cárceres faleceu em 5.6.1699. (5) A ligação à família Ledesma foi estabelecida com o casamento de Luísa Josefa Henriques, com o Dr. Gabriel Ledesma, então já viúvo de Angélica da Silva. E foi exatamente em Agosto de 1713, com a prisão do Dr. Gabriel Ledesma e de António Rodrigues Ferreira, (6) seu cunhado, tecelão de mantos de seda, que começou a tormenta dos filhos de Pedro e Esperança na inquisição. Aos 25 anos, António continuava solteiro, como solteiros se mantinham seus dois irmãos Manuel e Francisco Rodrigues Ferreira, que foram igualmente presos no ano seguinte, em Novembro de 1714, integrando a “leva” a que nos vimos referindo. (7) Os 3 moravam na rua dos Oleiros, juntamente com as 3 irmãs solteiras, e eram vulgarmente chamados os irmãos Cardoso. E também na Rua dos Oleiros era a casa de Gabriel Ledesma, onde se reuniam em sinagoga, como testemunhou Domingos Pires, criado que foi do Dr. Ledesma, perante o comissário Roque de Sousa Pimentel: - Disse que sabe por ver, que alguns cristãos-novos desta cidade se ajuntam às noites uns em casa dos outros, porque na rua aonde ele testemunha mora viu que vão para casa do médico Gabriel Rodrigues Ledesma, morador na mesma rua António Rodrigues Ferreira e seu irmão Francisco Rodrigues Ferreira, cunhados do mesmo médico (…) e os dias em que fazem os ditos ajuntamentos é nas sextas-feiras e sábados pelas 8 para as 9 horas da noite, e as cerimónias que fazem não sabe, porém que assistiu em casa do dito médico, por tempo de um ano, que cerram as portas e não admitem cristão-velho algum e ainda os próprios criados mandavam para fora de casa ou para a loja. (8) Do ponto de vista profissional, já vimos que os irmãos Cardoso eram fabricantes e mercadores de sedas, competindo esta última tarefa sobretudo a Francisco Rodrigues Ferreira, o líder da empresa familiar, que se tornou conhecido por “trazer cargas de mantos” de Bragança para vender em Lisboa, “aonde estava 8 a 9 meses efetivos” em cada ano. Aliás, acabaria mesmo por estabelecer morada em Lisboa, ”aonde não só se achava nas arrematações das comendas vagas das três ordens militares, mas ainda em vários tribunais, como são a Junta dos 3 Estados, a Casa de Bragança, o Conselho da Fazenda e Casas de Fidalgos particulares, onde arrematavam vários negócios”, adquirindo “grande crédito e cabedal, com o que se fez conhecido em todo este reino”. Partilhando a casa, também trabalhariam juntos os irmãos e irmãs que ficaram solteiros e terão acumulado um enorme capital, construindo um poderoso grupo económico, em cuja órbita gravitavam interesses de muita gente, do clero e da nobreza, incluídos. E isso explicará por que apareceram conhecidos padres e fidalgos, 3 familiares e um comissário da inquisição, como testemunhas de defesa dos irmãos Cardoso. Veja-se, a título de exemplo, uma declaração de Francisco Xavier de Sousa, fidalgo cavaleiro, escrivão da câmara de Bragança: - O réu é o melhor reputado entre as pessoas da nação. Ou o do comissário do santo ofício, licenciado José Morais Antas: - O Réu, Francisco Rodrigues Ferreira o conheço por falar com ele muitas vezes, assim nesta cidade como em Lisboa e outras partes e nunca lhe vi fazer coisa alguma que tivesse laivos de cerimónia judaica. (9) Deixemos, porém, o processo inquisitorial e voltemos a Bragança à prisão de Manuel e Francisco Rodrigues Ferreira e aos 2 dias que ficaram “depositados” em Bragança enquanto se preparava a leva para Coimbra. Manuel Ferreira foi depositado em casa de Sebastião Gomes, cristão-velho, rendeiro, morador na rua da Costa Pequena. Francisco Rodrigues Ferreira, esse foi entregue ao sargento-mor António Malheiro da Cunha, fidalgo-cavaleiro por alvará de 18.4.1694, morador na rua da Alfândega, filho de Baltasar de Morais Sarmento. (10) Assistiu-se então a um contínuo vai e vem de gente de uma casa para a outra, sobretudo durante a noite, em visita a um e outro dos irmãos, devendo agrupar os visitantes em 3 categorias. Antes de mais, a mãe, os irmãos e os amigos cristãos-novos, a maioria dos quais já antes tinham passado pelas cadeias do santo ofício. Obviamente que iriam ajudar a concertar a defesa dos réus, pois todos se denunciavam uns aos outros, devendo coincidir os depoimentos, no tempo, no modo e nos participantes de eventuais cerimónias e declarações de judaísmo. Naturalmente que cada um arranjaria uma desculpa, para o caso de serem questionados. Assim, um tio deles, que antes passara pelas cadeias da inquisição, diria que foi ao sapateiro encomendar sapatos novos para a viagem até Coimbra e depois lhos foi a levar. Notou-se depois um conjunto de 3 padres, curas de diferentes igrejas da cidade. Possivelmente foram mostrar a sua solidariedade e prontificar-se a servir de testemunhas de defesa. Diriam que foram chamados pelos presos que lhe encomendaram a celebração de missas, sinal de devoção cristã. Compreende- -se que apareçam depois como testemunhas de defesa dos mesmos réus, abonando o seu bom comportamento cristão. Um terceiro grupo era constituído por gente da maior nobreza da cidade. Certamente que lhe deviam favores, porventura deviam-lhe dinheiro e tinham contratos para acertar. Não se estranharia, por isso, que depois aparecessem igualmente como testemunhas de defesa. Claro que tudo isso era contrário aos regulamentos da inquisição, que proibiam qualquer contacto com os prisioneiros. Disso haveremos de falar.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães