A queda e o riso são indispensáveis e humanos

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É uma questão infantil, os joelhos esfolados, as palmas das mãos arranhadas. Uma questão que me surgiu estranhamente duma grande atualidade. Acaba de cair e despois dos choros, quer saber. Porquê que te ris? Sim, sim, riste-te - percebo eu na sua expressão- por me ver cair. É verdade e lamento-o desde logo por tê-lo feito, mas é uma situação irresistível. Como as quedas de Charlot no cinema. Cair, é a talvez a prova mais simples, mais nua, da nossa humanidade. Na mais pequena infância quando ainda mal nos mantínhamos em pé. Na plena noite do Princípio quando o dia cai. Na imensa noite do universo. Antes da gravidade. Antes das maçãs e das pedras que nos caiem em cima. Em qualquer queda, ao mínimo falso passo, é um pedacinho do nosso fim que se desenha, que nos lembra algo. Digo à criança que também eu, caio muitas vezes, e que todos nós, caímos. E se me rio quando vejo alguém cair é porque a pessoa atingiu um limite, o meu, o nosso. Junta-se brutalmente a qualquer coisa que tem a ver com a nossa fragilidade, com a nossa mortalidade. Quando caio, aproximo-me, nem que seja por alguns segundos, do nosso próprio fim, do fim de todos nós: cair no túmulo. Cair é aproximar- -se do solo, da terra, do pó. É recordar-se de repente que somos feitos para cair. A terra torna-se o lugar donde levantamos o olhar para o céu imaginando que caímos aqui, entre tantos outros. E porque te riste? Repete-me a criança. Quando vejo alguém cair vejo a sua pequena sombra desajeitada atrás do seu elã de homem direito. Respondo-lhe: não tenhas medo de rir. A maior parte dos corpos caiem quando os largamos! Mas responde a criança, o fumo que sobe a partir do fogo não cai! Nem o pedaço de madeira que flutua na ribeira. Respondo: imagina o mundo em que as pessoas nunca caíssem. Parecer-nos-íamos todos com estranhos cosmonautas flutuantes, largados no espaço negro e estrelado. E nada seria igual, sem graça nenhuma. Nunca mais a vida seria um lugar onde cair. Uma vez a criança consolada, reconheço voluntariamente: preferíamos levantar-nos, erguer-nos, pelo menos ficar direitos, mas a verdade é que caímos! O riso nasce a partir desta angústia. Alguém afirmava que o riso é essencialmente contraditório, ou seja, que é ao mesmo tempo duma grandeza infinita e duma miséria infinita. Ser humano é aprender a conjugar os dois: grandeza e miséria. Só no céu angélico é que os seres estão seguros de não cair. Há assim para nós a necessidade de cair para nos podermos levantar ou levantarmo-nos novamente. É o que se designa empirismo, ou a experiência. Fazer a experiência do nosso equilíbrio na terra, é a nossa tarefa humana, a nossa condição. Daí a indispensável presença entre nós dessas figuras trémulas, vacilantes e únicas. Para aprender a tornar-se alguém benevolente perante o que resta do fardo na ligeireza geral, como se a gravidade fosse uma graça, um dom, como se a graça tivesse de repente a densidade específica duma criança que tropeça. E o nosso riso faz a experiência dos nossos limites, entre o céu e a terra. A terra torna-se então o lugar a partir do qual podemos contemplar o céu mas na condição também de saber rir da nossa falta de jeito. Através do riso conseguimos libertar-nos das forças do medo que nos habitam e que estão sempre prontas para acordar os nossos moinhos, os nossos fantasmas. O riso torna- -se dessa forma a única expressão aprazível da nossa soberania.

 
Adriano Valadar