Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Depósito dos bens de João da Costa

PUB.

Uma das profissões mais comuns entre a gente da nação era a de sapateiro. Mas não se pense que era uma profissão menos digna, do ponto de vista económico e social. Antes pelo contrário. Feita esta prévia observação, vamos apresentar duas famílias de sapateiros que se uniram, em vários casamentos e cujo prestígio cresceu, ao longo de gerações. Uma dessas famílias foi a dos Vinagres, de Vila Flor e outra dos Raba, de Bragança. Gonçalo Lopes Vinagre nasceu em Vila Flor, por 1594. Casou com Maria Lopes, da Torre de Moncorvo, assentando o casal a morada em Vila Flor, onde Gonçalo exercitava a arte de sapateiro, quando foi preso pelo santo ofício, em 1664. (1) Eles foram os pais de Inês Lopes, que vamos encontrar de seguida. Um irmão de Maria Lopes chamava-se Luís Lopes Tinoco e era casado com Catarina Martins. Viveram em Torre de Moncorvo e neste casal de Moncorvenses entronca a família dos Raba. (2) Por outro lado, temos a família de Mateus da Costa, sapateiro e sua mulher, Ana Furtada, que viveram em Bragança e foram os pais de João da Costa, o nosso protagonista, sapateiro de profissão. João da Costa era irmão de Isabel Rodrigues, a qual casou com Francisco Nunes, o Raba, igualmente sapateiro e morador em Bragança. Isabel e Francisco foram presos pela inquisição em 1660, acabando este por falecer na cadeia em 28.6.1660 … Mas a sentença apenas foi lida 23 anos depois, no auto-da-fé de 4.2.1685! (3) Fiquemos então em Bragança, nos anos de 1665, quando ali se desenvolvia uma vasta operação de limpeza da heresia judaica, lançada pela inquisição. Contava Inês Lopes os seus 18 anos e estava solteira, quando, em Fevereiro daquele ano, se meteu a caminho de Coimbra, a apresentar- -se no santo ofício para confessar culpas de judaísmo. (4) Foi mandada regressar a casa e mais tarde foi chamada para ser processada e sentenciada pelo mesmo tribunal, saindo no auto-da-fé de 26.5.1669, condenada em cárcere e hábito e sequestro de bens. O mesmo caminho seguiu João da Costa, em Outubro de 1668, quando contava 37 anos e se mantinha solteiro. (5) Regressou a casa para mais tarde ser chamado, saindo penitenciado em 23.3.1683, estando já casado com Inês Lopes. E além de sapateiro, João metera-se a tendeiro. Baltasar da Costa e Luísa da Costa eram filhos de João e Inês. Casaram com dois irmãos, Maria de Oliveira e Domingos Lopes de Oliveira, respetivamente, filhos de João Lopes (Vinagre), o Regalado de alcunha e Leonor de Oliveira, ambos nascidos em Vila Flor e que em Mirandela formaram casa. Eles não eram já sapateiros como os pais, mas fabricantes de tecidos de seda, uma profissão bem mais prestigiante. Todos eles, em nova operação de limpeza étnica, experimentaram também a justiça inquisitorial, com destaque para Domingos, aliás, Jacob, que foi queimado no auto de 16.6.1720. (6) Não vamos agora analisar os seus processos porque o nosso objetivo é o sequestro dos bens de João da Costa, que saiu penitenciado em 23.3.1683. Vejamos então o que pudemos apurar sobre a execução deste sequestro e a entrega do dinheiro que se apurou aos depositários do fisco em Bragança Gonçalo Pires, ferrador e Miguel Rodrigues. Antes de prosseguirmos, diga-se que a nomeação dos depositários do fisco competia à câmara municipal, cujo presidente era o juiz de fora, o qual dirigia também a execução dos sequestros. Por esse tempo, o juiz de fora em Bragança era o Dr. André de Morais Cardoso, natural de Freixiel, Vila Flor, licenciado em cânones (direito) pela universidade de Coimbra, em 1679. (7) Quanto aos depositários Gonçalo Pires e Miguel Rodrigues, não conseguimos elementos de identificação mas seriam homens de muito crédito e avultados bens, para garantir os depósitos do fisco, conforme exigência legal. A primeira entrega ao depositário Gonçalo Pires foi feita por Bastião Rodrigues, em 22.12.1683, na casa do juiz de fora e na presença deste, com Francisco Correia a escrever o respetivo auto. Bastião Pires arrematara uns bens móveis de João da Costa pelo valor de 66 000 réis, que entregou. Gonçalo Pires ficou apenas depositário de 64 724 réis, porque 436 rs ficaram na mão do juiz de fora por presidir ao inventário e numerar o livro da receita; 640 foram para o escrivão do auto e 200 rs foram para a compra do livro. Um segundo depósito foi feito em 1.4.1685, no montante de 6 250 rs, por José Correia em mão de Miguel Rodrigues. Uma terceira entrega de dinheiro foi feita por Pedro Afonso, depositário do fisco em Miranda do Douro, que os recebera de António Colmeeiro de Morais, na qualidade de herdeiro do falecido capitão de infantaria Vicente Sousa Pereira, que os devia a João da Costa. Este facto é bem elucidativo da minúcia dos confiscos por parte da inquisição. E não foi apenas em Miranda do Douro que o fico cobrou dívidas de João da Costa. Registamos mais de duas dezenas de localidades trasmontanas onde foram cobrados dinheiros em dívida a João da Costa. E até mesmo em Castela, nas localidades de Lobios e de Belmont, termo de Ourense. Esta relação de dinheiros entregues estende-se por 7 páginas do livro, contando-se quase duas centenas de devedores, no montante de 392 058 réis. Não é verba que espante, diga-se. As diligências da recolha, é que terão sido muitas e insistentes. Àquela quantia deverão acrescentar-se 31 864 réis que foram entregues, no ano seguinte, de 1686, ao depositário Gonçalo Pires, “novamente nomeado”. Entre aquelas duas centenas de pessoas que deviam dinheiro ao tendeiro João da Costa, contamos gente da nobreza, como Lázaro Jorge Figueiredo, o Dr. Lobo Maris, António Colmeeiro de Morais... Entre os 16 padres, de várias freguesias, algumas bem distantes, que aparecem a pagar dívidas, cite-se o reitor da igreja de Santa Maria, o reitor António de Távora e o reitor de Babe. Outra classe profissional com alguma representação é a dos militares, aparecendo meia dúzia de graduados e uma dúzia de soldados. E até aparece uma dívida de 2.900 réis, de um sargento de infantaria da praça de Miranda do Douro. De resto, não sabemos, por na relação aparecerem apenas nomes de pessoas e a quantia em pagamento. Raramente se identifica também a causa da dívida e, por isso, não podemos fazer uma avaliação, mesmo grosseira, das capacidades económicas de João da Costa, nem das características da sua “tenda”, já que apenas se referem meia dúzia de produtos como ferro, aço, milho serôdio, baetas, meias de seda, manteiga e açúcar. João da Costa tinha, pelo menos, duas casas. Uma delas, sequestrada pelo fisco, foi arrendada a António da Costa, seu irmão que, pela renda de 2 anos, pagou 9 mil réis. A outra terá sido arrendada por João da Costa, antes de ser preso, ao Dr. Francisco de Morais Sarmento que nelas fez benfeitorias no valor de 37 mil réis. Depois que a casa foi sequestrada, o fisco arrendou-a a Roque de Novais, para nela viver Inês Lopes, mulher de João da Costa. E então, quando se estava tratando da liquidação dos bens sequestrados a João da Costa, em 22.11.1685, em ato presidido pelo juiz executor do fisco, vindo da cidade de Coimbra, apareceu o Dr. Francisco Morais Sarmento e pedir o reembolso de metade do custo das benfeitorias, 15.415 réis, por parte de Inês da Costa que recebera as rendas. Esta pagou sim, mas apenas 840 réis, argumentando que lhe pertencia pagar apenas do tempo da sua meação. Sim, a inquisição condenou João da Costa em sequestro de bens. Mas a sua mulher tinha direito a uma parte e para defender os seus interesses nomeou procurador a seu sobrinho José Rodrigues Nunes, o Raba, que, na década seguinte seria também preso e condenado a sequestro. Veremos no próximo texto.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães