À VOLTA DO MUNDO

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Há as “palavras-chave” e há os “chavões”. O início do ano propicia-se ao uso de umas e de outras. O decurso do tempo vai delapidando a brutalidade das palavras, tornando as palavras-chave mais consistentes, ao mesmo tempo que os chavões são remetidos para o silêncio, sendo retirados do baú discursivo sempre que os ciclos se repetem e, à falta do melhor, lança-se mão do que já existe, seja a “Páscoa feliz”, o “Feliz aniversário” ou as “Boas férias” com que se sonha o ano inteiro.
Dois mil e dezoito começou a afastar-se dos “clichés” favorecido pelas novas tecnologias que oferecendo “emojis” e mensagens cintilantes, subtraem a criatividade e geram discursos impessoais em troca do grafismo atraente e da redundância da mensagem, chegando-se ao cúmulo desta incluir um texto onde pede para ser partilhada. Não é por isso de estranhar que a mesma pessoa receba as mesmas felicitações duas, três ou mais vezes conforme o número de amigos e os gostos sejam semelhantes. Conclui-se por isso que, a este nível, tudo se mantém, o que muda é apenas a forma como chega o conteúdo.
Às imagens dos fogos-de-artifício sucedeu uma outra tirada na mesma altura e no mesmo lugar, no exato momento em que os foguetes iluminavam os céus e as trevas cobriam a terra. Era meia noite nas areias de Copacabana. Lucas Landau, fotógrafo a trabalhar para a agência Reuters, captou através da sua objetiva a imagem de um menino negro, de nove anos, sozinho, a assistir ao fogo-de-artifício enquanto, ao fundo, uma multidão vestida de branco se abraça e comemora a chegada do novo ano. Deve ter sido a fotografia que mais comentários suscitou querendo, uns, ver nela a metáfora da pobreza e do racismo que grassa em Terras de Vera Cruz, onde quinhentos anos de convivência inter-racial e quase duzentos do grito do Ipiranga não conseguiram por fim a este fenómeno. Outros, embora menos, viram poesia naquele abandono, limitando a análise a apenas uma criança deslumbrada, numa noite de verão, na praia de Copacabana a assistir à passagem de ano, como apenas as crianças conseguem vê-la. Por mim, alinharia na segunda interpretação envolta numa estética contemporânea onde os contrastes convergem numa tela ímpar. Infelizmente, há muito tempo, ensinaram-me a ver para lá do evidente, “do outro lado do espelho” – como me diziam, e por esse prisma vejo mesmo solidão, abandono e fome e onde alguém vê uma criança “encantada com o fogo-de-artifício” eu vejo um olhar triste, de alguém com fome e frio e sem ninguém para o amparar.
Mais ao lado, somos presenteados com King Jong-Un e Donald Trump a travar-se de razões sobre quem tem o botão maior, como se nesta situação fosse relevante o tamanho. Os contornos desta novela picaresca deveriam servir para deixar no ano velho o ar sisudo que afugentou o sorriso dos nossos rostos, sobretudo, se a estes dois “botões” acrescentássemos o “botãozinho” do extraterrestre imortalizado na voz de Amália. Carlos Paião, o compositor, atribuiu a esse pequeno comando a capacidade de o E.T. a falar o que, em abono da verdade, serve os mesmos fins no que respeita aos dois anteriores protagonistas. Contudo, neste caso, mais do que colocá-los a falar, serve para outros falarem deles o que, na esfera política é sempre conveniente. Agora, escolher o dia em que o mundo teima em comemorar o Dia Mundial da Paz para colocar na agenda a eminência de uma guerra nuclear é de tão mau-gosto que apaga qualquer esperança num ano melhor, em que as convergências dos líderes mundiais pudessem servir para superar as misérias e os conflitos que grassam há mais ou menos tempo, ceifando vidas, adiando projetos e arruinando sociedades.
Por isto, lá teremos de voltar aos chavões que circulam por aí e nem sempre com a devida vénia aos seus autores: “Se queres mudar o mundo, começa por mudar-te a ti mesmo.” – Mahatma Gandhi. De facto, perante a voragem do tempo e a irreflexão dos loucos, a cada um resta apenas olhar para si e reinventar-se sem perder o essencial.

Raúl Gomes