Tratado de Confisson

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J ulgou-se durante muito tempo que o primeiro livro impresso em português era Vita Christi, em caracteres góticos, com elementos decorativos e iconográficos em gravuras de madeira, cuja terceira parte apareceu a 20 de Novembro de 1495 no reinado de D. Manuel I, havendo ainda a considerar o Pentateuco, impresso em Faro, em caracteres hebraicos em 1487, além do Breviário Bracarense, de 1494, escrito em latim. Antes de 1965, era convicção generalizada que os primeiros livros editados em Portugal teriam sido os que atrás citámos, contudo, até hoje e até provas em contrário, o livro mais antigo impresso em português, em Portugal, terá sido o Tratado de Confisson, em Chaves no dia 8 de Agosto de 1489, conforme indicação no cólofon (dizeres com que os primitivos tipógrafos indicavam, no final das obras, a data e o local da impressão). O facto de ter sido impresso em Chaves e não noutro local de maior importância deve-se à circunstância de, segundo o Professor Pina Martins (1920-2010), o mais ilustre estudioso da cultura portuguesa do Renascimento, a localidade se encontrar na rota de peregrinação de Santiago de Compostela e se situar nas proximidades das cidades espanholas de Salamanca e Zamora, onde a tipografia já existia e de onde irradiava uma cultura que atingiu algumas terras de Portugal, principalmente as que se situavam perto da fronteira. A indicação no cólofon da origem parece não suscitar dúvidas quanto ao local de impressão, embora o livro possa ter sido impresso em Espanha por um mecenas, desejo de ver associado àquela empresa o nome da sua terra portuguesa. Além disso, a utilização da língua portuguesa é já uma prova de que a obra deve ter sido impressa por tipógrafos nacionais, ou ainda, a hipótese de o livro ter sido impresso na própria vila flaviense por um tipógrafo itinerante vindo de Salamanca ou de Zamora. A hipótese mais plausível é a de que o livro tenha sido impresso em Chaves, numa tipografia de limitados recursos, por um impressor de Chaves que tenha adquirido em Zamora os restos de material tipográfico dispensado por António de Centenera, grande industrial de tipografia que, entre 1482 e 1492, exerceu a sua actividade como impressor. O Tratado de Confisson está dividido em três cadernos, com uma mancha tipográfica a duas colunas de trinta e oito linhas por coluna, com espaços brancos para as letras capitais, indicadas por minúsculas. O exemplar descoberto em 1965 encontrava-se em discreto estado de conservação, com duas manchas de humidade na parte superior e inferior dos fólios, devendo-se as mesmas a um fungo que está progressivamente a atacar o papel, que corre sério risco de se deteriorar se não se tomarem oportunamente as indispensáveis providências. Destinar-se-ia o livro a manual de peregrinos-penitentes, uma vez que toda a peregrinação era um acto penitencial. Dirigindo-se fundamentalmente aos confessores, também se dirige, numa segunda parte, aos penitentes. A primeira parte do livro é formada por disposições gerais e particulares para uso do confessor, dirigindo-se a segunda parte, quantitativamente mais volumosa, aos penitentes. Pode-se afirmar que o Tratado de Confisson é um livro que seguindo os cânones católicos vigentes na época, é também um texto doutrinário, de carácter comportamental, de bem viver e conviver, evitando a todo o transe, situações pecaminosas que colidam com os preceitos do catolicismo. O autor procura intencionalmente suscitar um arrependimento ou contrição que não seja derivado do medo das pessoas, mas do profundo e íntimo desgosto por haverem cometido uma ofensa gravíssima contra quem não hesitou oferecer a sua vida por cada homem e por todos os homens. A segunda parte é essencialmente formada por dois capítulos, onde são reconhecidos todos os desvios pecaminosos à lei divina estabelecida para o homem que crê, contemplando cerca de trinta páginas, num total de 61 colunas, representando mais de 50% de toda a obra. O inquérito confessional começa pelos pecados capitais e vai-se processando lentamente através do exame dos pecados segundo os estados, das violações dos mandamentos, das obras de misericórdia, terminando com a enumeração dos casos de impedimento por absolvição. São vários os temas abordados tendo em conta os comportamentos pecaminosos sujeitos a absolvição ou a condenação e por isso objecto de atenção por parte do tratadista. A primeira reflexão diz respeito à obsessão indecorosa da relação entre homem e mulher, no que respeita especificamente ao sexo, não merecendo nenhum outro pecado uma atenção tão cuidada e um estudo tão minucioso, uma reprovação espiritual tão categórica, chamando a atenção para a gravidade do acto, dentro e fora da união matrimonial, não deixando lugar a dúvidas acerca do puritanismo que grassava na época. Há, ainda, a considerar as relações sexuais entre esposos, em domingos, dias santos e na quaresma, ou em lugares sagrados, e a definição da ortodoxia da união entre marido e mulher exigindo a intenção de procriar. Outros pormenores a suscitar a curiosidade do confessor, relacionando-se com os relativos à beleza ou à fealdade da mulher a quem o penitente se uniu em pecado, ou se o fez em jejum ou depois de comer. A condenação da usura e do simples empréstimo com direito a juros por parte do prestamista; a reprovação de práticas supersticiosas e dos jogos de azar; a imposição eclesiástica do repouso dominical. Os jogos do azar são igualmente condenados sem ambiguidade. Recorrendo instantemente ao confessor, lembra que não é aconselhável os adultos dos dois sexos e os mancebos irem a romarias e andanças. O melhor meio para ser virtuoso e agradecer a Nosso Senhor é ficar muito bem-comportado na sua própria aldeia, ou na sua vila, ou na sua cidade pois romarias pelo mundo são outras tantas ocasiões de pecado. O que se condena não é o cantar bem, ou pregar bem, o ter muitos discípulos, o ter bons livros, mas a vaidade que pode nascer da consciência de actos bons. O dormir durante a oração e o pensar em condições profanas, assim como sentir o peso da missa e das longas homilias não deixa de ser reprovável. Aos pirómanos é também recomendado o “repouso” força de um ano “na terra do ultramar”; o incendiário, longe da sua terra, passará a não ser perigoso e o ultramar daquele tempo, mesmo no norte de África, não deixava de ser um exemplar correctivo. A corrupção eclesiástica é tema que não lhe escapa. O autor que deve ser um eclesiástico, coberto pelo anonimato, sublinha, por vezes, os pecados dos eclesiásticos e religiosos para os quais são cominadas penas severas. A crítica chega a atingir a comunidade dos cristãos e a própria igreja. Como se se penitenciasse, escreve: Pequei porque quando me deito na cama nem quando acordo de noite não dou graças a Deus nem me encomendo a ele, não tenho em mim boas preocupações nem bom pensamento mas torpes e desonestos e embebedado no sono como porco. Sendo um texto, onde são apontadas as debilidades do Homem, susceptíveis de serem condenadas, não deixa de elogiar o Homem, tal como fez Giovanni della Mirandola, em Discurso sobre a Dignidade do Homem, em 1486, afirmando a sua dignidade quase divina, não só por haver sido criado à imagem de Deus, mas por habitarem dentro do homem, virtudes, que só ele, entre todos os seres da Terra, possui. Convocando toda a comunidade cristã para a prática da confissão, tendo em vista a absolvição dos pecados, evitando situações pecaminosas, o Tratado de Confisson apela ao espírito de pobreza dentro da comunidade eclesiástica que deveria dar o exemplo de pobreza evangélica. A crítica da avidez, por parte dos eclesiásticos, e o escândalo pelas grandes despesas feitas nos mosteiros, quando no mundo há tantos pobres que precisam de comer, beber e vestir-se, são temas que não passam despercebidos ao autor do Tratado que se conservou no anonimato até aos nossos dias. Pina Martins está convencido de que o autor do manual terá sido um franciscano, até porque uma crítica social deste tipo encontra-se na parenética franciscana, não apenas na heterodoxa, mas também na que segue a mais rigorosa ortodoxia. Prática desta natureza teve-a Santo António de Lisboa, em sermões por si escritos, chegados até nós. O pessimismo patente no texto não é radical, inserindo-se numa linha pedagógica tendente a conduzir a comunidade temente a Deus, a boas práticas. Os diabos e as penas infernais surgem realisticamente a cada passo com ameaças para quem viola a lei do amor. A imitação de Cristo, imposta a todos os homens como imperativo de um mandamento fraterno, é garantia suficiente para a redenção do cristão arrependido que procura seguir os preceitos evangélicos. O Tratado de Confisson pretende transmitir aos confessores e aos confitentes um conjunto de práticas que purifiquem de um modo mais ou menos radical todos aqueles que seguem a religião católica transformando-os em correctos discípulos de Deus. Depois de uma fase preambular, onde são contemplados os pecados referentes à inveja, ira, avareza, luxúria e gula, para além de advertir que, primeiramente, deve ser feito o sinal da cruz, recorda, ainda, se o penitente deixou de saber o Padre Nosso e o Credo em Deus, por negligência. Seguem-se os dez mandamentos, pretexto para um conjunto de perguntas, contemplando cada um dos mandamentos, como, por exemplo: - como crê em Deus; se obrou em dia de domingo; se furtou para si mesmo; se mandou furtar; se consentiu no furto; se disse que amava alguém e não era assim; se falou coisas em vão; se cobiçou coisa que não era sua; se cobiçou mais do que lhe Deus deu; se comungou em pecado mortal; se é destruidor do que lhe Deus deu. Porque o Tratado de Confisson não visa exclusivamente os que pretendem confessar-se, mas também aqueles que têm como múnus a própria vida sacerdotal, são muitas as perguntas que lhes são dirigidas, como por exemplo: Olhou as mulheres com má intenção; olhou as coisas torpes assim em si ou em outrem; teve muito prazer em comer boas carnes ou em beber bons vinhos; teve prazer em bons cheiros; tomou com as mãos coisas desonestas e afins. Tendo o Tratado como objectivo contemplar todos os caminhos que procuram conduzir a Deus, acrescenta mais sete perguntas que se devem fazer aos religiosos, considerando, todos aqueles que praticam a religião, quer clérigos ou laicos, seguidores dos preceitos da religião: Se tomou ordens por simonia ou furtivamente por boas palavras; se errou no sacrifício ou se fez limpamente; se rezou bem suas orações; se utilizou as coisas da igreja em maus usos; se reparte com os pobres os bens que lhe Deus deu ou reparte com os seus maiores; se dá louvores a Deus pelos benefícios que lhe deu e se ouve com vontade as coisas de Deus. Vivia-se numa época em que se começa a vislumbrar alguma contestação que consistia em manifestações de desagrado lideradas por Lutero (1483-1546), que conduziriam à reforma protestante. Destarte não admira que o tratadista se preocupasse com outras áreas para além da confissão, dando a conhecer uma regra que o confessor deve ter, ao pregar a todas as pessoas: Saiba o confessor da pessoa que se lhe confessa, de que estado é, que ofício tem, para que vive; se pagou bem a Deus as dízimas e as premissas como dever; se fez alguns votos que não cumprisse; deve perguntar às mulheres, que se confessam, se fizeram ou deram algumas coisas a seus maridos ou a outros homens; deve perguntar a cada uma das pessoas se são casadas; se são casadas, há quanto tempo e se tiveram outro casamento. Tendo como objectivo contemplar uma doutrina que leve à prática toda a ritualidade cristã, não deixa de registar o texto que serve de modelo à confissão geral a ser feita por todas as pessoas, que se inicia da seguinte forma: Eu mesquinho pecador e errado, confesso-me a Deus e à Virgem Santa Maria e a todos os santos e santas da corte celestial e a vós meu pai celestial, de todos os meus pecados e maldades que eu fiz e disse(…) Recorda as catorze obras de misericórdia, dividindo-as em espirituais e corporais, havendo, ainda, a considerar, segundo o tratadista, as coisas com que a Deus apraz: Ser obediente a Deus e a seu prelado; manso com os seus companheiros, amando-os; não se irritar contra eles por nenhum motivo, ainda que não seja culpado; quando for sempre, vá rezando ou cuidando em Deus e saia de onde ouvir falar; quando ouvir dizer mal, desfaça se puder, se não retire-se; afaste-se da vista das mulheres, não repare para a sua formosura; nunca esteja ocioso, ocupe- -se sempre nalguma obra; quando lhe pedirem por caridade alguma coisa, dê sempre que tiver, e se não, dê-lhe boa resposta; em lugar de cobiçar riqueza, lembre a pobreza que prometeu a Deus; quando lhe repreenderem considere-se sempre culpado; não queira ser louvado pelo bem que fizer. O tratadista considerou, ainda, os casos em que o sacerdote não tem poder para absolver, se não houver poder do arcebispo, salvo em artigo de morte, como por exemplo: Os que dormem com virgem por força ou por engano; os que dormem com suas parentas. Ler, admirar e transmitir são tarefas que nos competem enquanto utilizadores do livro e comunicadores implícitos do que nos é proporcionado. Sem termos lido quanto Pina Martins escreveu, a nossa admiração por esta figura vem de há muito, quando demos conta da sua mestria como docente na Faculdade de Letras na Universidade de Lisboa. Ilustre investigador, possuidor da maior colecção de incunábulos do país, não era difícil chegar a um dos seus livros, cujo estudo legou à posteridade. Lê-lo é tentar reaver algo que faz parte de nós. Partimos à leitura de uma obra nascida à nossa ilharga. Em Chaves brotou o Tratado de Confisson que o Professor expandiu e apresentou no dia 19 de Dezembro de 1974, em edição diplomática, sustentando uma tese de doutoramento defendida na Sorbonne, perante um júri sob a presidência do grande sábio Marcel Bataillon. E foi através do alfarrabista de Alcobaça, Tarcísio Trindade, que em 1965, graças ao trabalho de Pina Martins, ficámos a saber que o texto mais antigo escrito em português tinha sido publicado em Chaves em 8 de Agosto de 1489. E a língua não mais parou. Afinou-se. Pluralizou-se. Tornou-se adulta e viçosa. Cresceu nas gramáticas e nos dicionários. Amadureceu nos livros, disputou-se com a castelhana e afirmou-se. Sofreu tratos de polé. Defensores não lhe faltam. Ela é nossa. A nossa língua, tal como António Ferreira (1528-1569) lembra em carta dirigida a Pero de Andrade Caminha:

Floreça, fale, cante, ouça-se e viva

A portuguesa língua, e já onde for,

senhora vá de si, soberba e altiva!

Se téqui esteve baixa, e sem louvor,

Culpa é dos que a mal exercitaram,

Esquecimento nosso, e desamor

João Cabrita